Capítulo 1 - Laura

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Estávamos no fim do inverno e a primavera começava a despontar pelos canteiros e praças de Amsterdam. Era um daqueles dias raros de sol que se tem aqui, pelos arredores dos países baixos. Nós passamos a maior parte do tempo com aquele céu cinzento e pesado querendo desabar em nossas cabeças, então, eu estava animada. Você deve imaginar como é para uma brasileira acostumada ao sol tropical das nossas terras tupiniquins, estar á tanto tempo longe de casa. Bem, não que eu tenha exatamente saudades de casa, para ser sincera, sair de casa foi minha grande carta de alforria, mas o sol, esse sim, me fazia falta.

Acordei um pouco antes do despertador – o que não acontecia com frequência – tomei um banho relaxante, penteei os cabelos no meu coque costumeiro, vesti uma saia lápis verde escura e uma blusa bege de seda fina com um padrão floral. Encarei a figura no espelho feliz, depois do monte de merdas com que tenho lidado desde a formatura, me sentir bonita e respeitavelmente profissional certamente contribuiria para um dia agradável no escritório. Calcei meus scarpins* pretos e peguei minha pasta. Enchi um dos potinhos de Mia com leite e o outro, que ficava ao lado da água, com ração para gatos.  Olhei para a almofada sobre o parapeito da janela e a vi ali, preguiçosamente procurando um raio de sol. Esticada sobre a almofada bordada, encarando os transeuntes pelo vão da cortina semiaberta. Se você nunca visitou Amsterdam, certamente irá estranhar o quanto o povo Holandês não se preocupa em ser observado.

Confesso que nos primeiros dias em que me vi em um apartamento tão pequeno que era possível ver toda a área comum pela janela da frente, eu estranhei e corri até a primeira loja de departamentos que encontrei em busca de uma cortina. Tarefa quase impossível – Holandeses não usam cortina. Nunca. Em lugar algum. Eles não se importam em serem vistos e menos ainda em ver os outros. Nesses quase seis anos em que me encontro por aqui, foram raras ás vezes em que percebi alguém de olho no meu apartamento – Que fica no térreo de uma ruela não muito movimentada, no Jordaan** - e percebi na hora que se tratava de um turista e não de um local.

Tranquei a porta da frente e dei uma ultima olhada em minha grande e gorda gata laranja, esticada ao sol, pensando em como ela tinha sorte de ter á mim. Ou seria eu que tinha sorte de ter á ela? Não sei. O fato é que formamos uma boa dupla, desde sempre.

Continuei caminhando até o ponto do tram***, observando o vai e vem de turistas nas ruas principais, maravilhados com a arquitetura e a beleza dos canais. Amsterdam é uma cidade encantadora. Mesmo morando aqui á tanto tempo, eu ainda não me canso de encarar a beleza da cidade.

Eu estava á alguns quarteirões do ponto quando uma brisa caramelada golpeou meu estomago com tanta força que eu tive que parar e me permitir um stroopwafel****. Eu simplesmente não consigo enjoar desse maldito biscoitinho holandês e atribuo á ele o fato de nunca mais ter perdido aqueles “três quilinhos” que todas nós queremos perder. Peguei meu biscoito, um copo de café daqueles com tampa, encaixei a alça da pasta de couro ao redor do antebraço, copo em uma mão, biscoito na outra e lá fui eu, ainda mais feliz, esperar meu transporte até a área comercial da cidade.

Que a Holanda é o país dos moinhos, praticamente todas as pessoas do mundo sabem, mas poucas delas pensam sobre as razões praticas disso – vento. Na Holanda o vento é constante. Sim, constante. Oscilando entre brisa e vendaval com a mesma velocidade em que alguém pisca. Estávamos num momento brisa, e de repente, um vendaval golpeou-me com força, soltando algumas mechas castanhas dos meus cabelos e me deixando momentaneamente sem enxergar. Eu estava ali, tentando colocar meu cabelo rebelde atrás da orelha com a mão que segurava o biscoito e equilibrando a pasta e o café quando me choquei contra algo duro. Não tive muito tempo para pensar ou reagir. Tudo que consegui foi perder o equilíbrio e lambuzar meu cabelo com o caramelo quente do biscoito, enquanto meus sapatos patinavam naquela lamazinha nojenta que se forma quando a neve derrete nas ruas e o sol não é suficientemente quente para secá-la. O copo se foi em direção ao muro de terno na minha frente e eu juro que quis impedir, mas não pude, eram os meus joelhos contra a calçada ou o café contra o terno do homem. Pensei que ele sentiria menos dor em sujar o terno do que eu sentiria em ralar os joelhos no cimento da calçada. Antes que eu tivesse certeza de que não cairia, senti sua mão firme em torno do meu pulso, sustentando-me e colocando-me em posição confortavelmente vertical novamente.

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