002.0 BÍLIS

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一 Só podem ser as bromélias! Estavam marcadas para às 14 h, pelo visto resolveram entregar mais cedo. 一 Lúcia só podia esperar pela surpresa a priori inexpressiva do professor inerte sobre o sofá.

Ferdinando torceu o lábio inferior num gesto de reprovação.

一 Algum funeral? 一 a intenção era uma piada, Lúcia não a recebeu deste modo, ao contrário, espantou-se com o tom da palavra.

一 Ave Maria! Cruz credo, Senhor... são flores da festa de aniversário da empresa do teu pai.

Glória Caprisco, mãe de Ferdinando, nunca deixava um evento tão importante como este passar em branco e todos os anos fazia questão de comemorar o aniversário da Fábrica de automóveis da família Caprisco, uma das pioneiras na América do Sul. Os carros Capri enchiam a boca dos orgulhosos compradores argentinos e os bolsos daquela família tão tradicionalmente arraigada às raízes italianas.

一 Eu sinceramente não me lembrava dessa festa. Agora... agora estou tão ocupado com Ambrosius que nem posso parar para controlar isso.

Ambrosius saltou do sofá.

一 Não se preocupe comigo, senhor. Vejo que há muito trabalho aqui, aliás... está na minha hora de ir para casa. Tenho uma mãe preocupada me esperando 一 mentiu. A verdade era que sua mãe estava se recuperando de mais um de seus comas alcoólicos. 一 Penso que há uma linha de ônibus que passa na Villa Sarmiento e...

一 De forma alguma, marquei uma consulta com Andreas Aparizzia. É um terapeuta infantil, mas muito atencioso e experiente em casos de transtornos e... 一 corou. 一 Eu sei que você não é uma criança, mas é o melhor que conheço e...

一 Eu vou 一 ele sorriu. 一, mas gostaria de telefonar para minha casa, pelo menos tentar.

Ambrosius se esticou a fim de trazer a disposição física ao seu corpo novamente. Sentiu uma pontada de vontade de voltar ao banho quente e aos lençóis macios do quarto extra da mansão. Esperava não sentir novamente o mal-estar que sentira na biblioteca, o desmaio, a sensação de morte iminente. Sentiu sua barriga gélida.

Ferdinando sentiu o silêncio naquele diálogo provocar uma sensação desconfortante dentro dele, como borboletas se debatendo dentro de seu estômago. Suas expressões, o enrubescer das maçãs de seu rosto e as palavras desconcertantes o estavam traindo naquele momento. Havia pensado muito pouco sobre a noite que se passou, o episódio na biblioteca e seus planos mórbidos serem destruídos por um garoto que ele mesmo nunca vira antes no Colégio. A magreza de Ambrosius o causava arrepios porque ele sabia que compartilhavam de uma vontade mútua de terminar com a própria vida e o esqueleto marcando a pele branca, seu intento era tocá-la e trazê-la para perto de si de modo que pudesse nunca mais se separar do corpo deslumbrante do garoto.

一 Está na hora. 一 Ferdinando acenou para que Ambrosius encerrasse a tentativa de telefonar para sua casa. O garoto, obediente, tornou o telefone ao gancho e cobriu o rosto desapontado com uma das mãos. 一 Não se preocupe, depois da consulta te deixo lá.

Ele não queria deixá-lo. Algo em seu corpo pedia que o garoto ficasse mais do que o planejado.

Entrou no carro depois que Ambrosius se ajeitou sobre o assento, agradeceu a Deus pelo tempo nublado, sentiu o cheiro inebriante de um perfume de flores acalentando sua alma fria. Seus dedos brincavam com as chaves no bolso, puxou a do carro pronto para colocá-la na ignição e continuar seu dia numa tentativa de viver a normalidade da ocasião, exceto pelo ato aparentemente inconsciente do homem mais belo que já vira em sua vida, seu coração se apertava ininterruptamente. Seus olhos caminharam pelo braço daquele jovem inocente que segurava trêmulo seu braço prestes a puxar a ignição.

A Leveza dos Teus OlhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora