001.0 METAHUMANO

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O frio azul do oceano se estendia parcialmente em sua visão. O medo real era de ter dormido e não voltado à vida, não estar no paraíso e saber que toda sua breve vida havia se resumido àquela visão mórbida do mar. Levantou o braço esquerdo consciente de que sua sensibilidade estava intacta depois da noite passada em que sentiu seu corpo desfalecer e se chocar contra a superfície de um livro qualquer que havia achado na sessão de literatura estrangeira. Seu corpo tremia de frio e seu estômago dava leves pontadas imprevisíveis.

Um som muito natural de uma porta se abrindo rompeu o silêncio gutural daquele quarto gélido. A imagem de um homem muito desleixado instaurou-se no arco da porta. Estava agarrado a uma jaqueta de couro aparentemente aconchegante, seus óculos estavam descuidados em seu rosto escultural, o pelo moreno de sua barba desgrenhada cobria levemente o canto de seus lábios. Apesar do descuido era realmente belo em sua simplicidade, como um tradicional argentino seria, talvez mutado por genes estrangeiros.

一 Peço sinceras desculpas por não me apresentar. Me chamo… 一 por um segundo havia esquecido de seu próprio nome 一 Ferdinando. 一 seu nome saiu assustado. 一 E não se preocupe com os custos do hospital. 一 sorriu nervoso.

O rapaz não estava preocupado.

Hospital. O garoto divagou em seus pensamentos. O cheiro almiscarado do quarto e o cítrico do desinfetante lhe causava uma sensação de paz inviolável em contrapartida ao desgosto e mal-estar da medicação. Não era um quarto comum como os que havia ficado nas outras vezes. As paredes beges o lembravam do quarto na casa de sua mãe onde passara os últimos quatro anos depois da morte do pai.

一 Meu no… 一 sua voz falhou. 一 Ambrosius! 一 o esforço fora evidente no momento em que exclamou seu próprio nome.

一 Não se esforce. 一 Ferdinando aproximou-se. 一 Você está desnutrido, parece que não se alimenta adequadamente há dias.

E realmente não se alimentava, não por falta de alimento, mas pela repulsa irracional de chegar perto de um prato decente de comida.

Ambrosius percebeu, com a aproximação de Ferdinando, as finas rugas que se formavam ao redor dos jovens olhos daquele homem o qual não se recordava de onde o conhecia. Apenas sorriu e evitou o cruzar de olhares para que não fosse enterrado num túmulo de embaraço. Sentiu seu próprio rosto avermelhar-se trazendo a cor novamente a suas bochechas pálidas. O novo medo era de confiar demais naquele homem que misteriosamente o trouxera àquele quarto e o bancara naquele hospital.

一 Antes de você perguntar de onde eu sou. Estava na biblioteca a procura de um livro minutos antes de eu ter te… 一 hesitou 一 de terem te socorrido.

Ferdinando cruzou os braços sobre o peitoral apertando seu tórax levemente, por um instante o garoto vislumbrou a surrada camisa desabotoada espremer-se e relaxar sobre o corpo daquele que estava contido nesta. Por algum motivo constrangedor Ferdinando estava mais tenso que o normal, muito mais que os instantes em que esperava na porta.

一 Você me trouxe aqui? 一 perguntou, mas seu corpo o traiu enrubescendo. Seus braços ainda fracos alcançaram seu rosto em chamas. Um sorriso nervoso se estampou em seus lábios rosados 一 Digo… imagino que alguém me trouxe até aqui… não que tenha sido você, mas… qualquer um.

一 Eu te trouxe. 一 a voz ligeiramente rouca de Ferdinando saiu rápida demais para ser apreciada. Ferdinando exclamou temendo o desconcerto nítido no rosto de Ambrosius. O garoto inclinou-se sobre a maca, puxou os lençóis que estavam sobre si e colocou as pernas para fora sentindo o calor delas transitar para o ambiente frio do cômodo. 一 A direção do Colégio me pediu para ficar te supervisionando por hoje, em troca disso ganhei um dia de folga. O médico já deu alta então… 一 olhou de soslaio para as pernas finas e longas de Ambrosius e engoliu em seco 一 vou te levar para tomar café em casa e te explicar sobre algumas providências.

A Leveza dos Teus OlhosWhere stories live. Discover now