Two

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Denver, Colorado. 2016 anos depois

- Aguente mais um pouco, querida. É só um choquezinho e mais nada

    Ann estava deitada em uma maca, com as mãos e pés presos, debatendo-se na esperança de se soltar. As gengivas sangravam de apertar o cinto improvisado de mordaça. As sessões eram diárias e duravam cerca de meia hora. Ann estava internada desde os treze anos por dizer ver coisas e por matar acidentalmente Ellen, sua irmã mais nova. Ann alegava que sua irmã de cinco anos estava possuída e tentando lhe matar, ela sufocou Ellen até que parasse de se debater. Seus pais não tinham alternativa sem ser internar a garota. Mesmo quatro anos depois ela tinha os mesmos pesadelos, visões horríveis de pessoas sendo dilaceradas, gritos de dor e uma aldeia em chamas. Nestes pesadelos Ellen a guiava pelos escombros, levando a uma casa com a fachada rompida pelo fogo.

    Antes de começar a ver as sombras e ouvir vozes, Ann exibia para todas suas pinturas que impressionava a quem via. Tão jovem e com um talento para as artes tão enorme. Depois que foi internada, Ann continuou a pintar, só que não as paisagens e retratos e sim cenas de caos e devastação. A casa de seus pesadelos sempre tinha um destaque como se tudo girasse entorno daquela residência formando um padrão no qual os médicos não haviam descoberto o motivo.

    Ann passava maior parte do tempo dopada pelos remédios, e quando não estava ficava de frente ao jardim da clínica segurando o relógio que era de sua avó, a única que acreditava que ela realmente via sombras e ouvia pessoas gritando por socorro. Aos doze anos perdeu sua avó em um incêndio na qual por milagre saiu viva. Ann desacordou por conta da tóxica fumaça e foi encontrada intacta em meio ao fogo. Katherine não teve a mesma sorte e morreu carbonizada segurando o velho relógio de bolso. Ann guardava aquilo como um tesouro, a única coisa a qual sua sanidade se agarra, a lembrança de Katherine a conforta por saber que um dia alguém acreditou que ela não era insana.

    Os dias eram sempre o mesmo na Stanford Clinic Hills. Pessoas iam e vinham, nem todos eram loucos ou mentalmente incapacitados. Assassinos, molestadores e todo e qualquer tipo de marginal que alegava insanidade eram levados para lá. A ala de Ann era para os mais jovens, adolescentes e crianças com distúrbios mentais que os pais isolavam por não querer cumprir com a responsabilidade ou aqueles que realmente não podem conviver em sociedade. A única companhia não tão insana de Ann era Leigh, um rapaz diagnosticado com transtorno de identidade que tentou colocar fogo na própria casa para se livrar de suas múltiplas personalidades. Quando Ann foi transferida para Stanford, Leigh que a ensinou a esconder o remédio e cuspir fora para não passar tanto tempo dopada e também mostrou o caminho entre passagens para a biblioteca. O manicômio era um prédio velho usado na segunda guerra mundial para alocar presos de guerra, as passagens para um cômodo e outro eram várias. Algumas levavam de sala em sala e outras de um andar a outro, e Leigh conhecia todas. Estava há doze anos trancafiado naquele lugar, ele nunca teve amigos ou frequentou a escola. Suas lembranças foram varridas no momento em que pisou naquele lugar, desde então ele tem como casa somente aquele prédio velho e corroído. Com o tempo suas personalidades foram reduzidas pelo tratamento de choque até permaneceram somente três; Lee, Ken e Tom. Lee é sua parte carinhosa, tão amoroso como um abraço de mãe, Ken é um canastrão sedutor que acha que consegue o que quer e Tom é paranoico achando que está sendo vigiado a cada momento.

    Ann passava a maior parte do tempo com Lee e Leigh, conforme o tempo e o tratamento passavam, Tom e Ken se fundiam virando quase que uma personalidade só. Os dias na mesmice fizeram Leigh entrar na sala dos médicos e roubar um baralho de cartas para que ele e Ann pudessem passar o tempo, o castigo foi sessões de eletrochoque de quase uma hora, os médicos pararam somente para não responder a processo por fritar o cérebro do rapaz. Ann ouviu quando lhe jogaram no quarto e usou a passagem que Leigh havia ensinado para chegar ao lado. Ele tirou o baralho do bolso e sorriu, desmaiando no colo de Ann. Desde então formaram amizade para que os dois não ficassem mais sozinhos.

- Vamos terminar agora, só mais esse e pronto

    Depois da dor intensa, Ann só conseguia ver as luminárias de brilho intenso que quase a cegava, e logo após isso, tudo ficava escuro. Quando acordou em seu quarto Leigh já estava lá, sentado a beira de sua janela esperando ela despertar. A brisa fresca que entrava pela janela bagunçava os cabelos acobreados de Leigh que não tinha medo de estar com as pernas para fora do quinto andar. Ele sempre trazia chá e biscoitos, com a descoberta de uma nova passagem era mais fácil conseguir comida da copa sem ser pego.

- Bem-vinda de volta, Ann. Espero que não tenha sido tão horrível como da outra vez. Trouxe mais biscoitos, não tinha os amanteigados que gosta só os de...

- Obrigada, está ótimo assim. Você nem deveria se arriscar

- Ora, babaquice – Disse virando as pernas para dentro e sentando na cama – Você não tem que comer esse grude nojento que oferecem, nem deveria estar aqui.

Ann sorriu e aceitou os biscoitos, Leigh a confortava e ele tinha a quem cuidar.

    Depois de um certo tempo os efeitos colaterais eram quase mínimos. O corpo se acabou se acostumando com a dor e descarga elétrica constante. Depois de cada sessão Leigh levava Ann a biblioteca para que furtassem alguns livros que deixariam os dias menos desagradáveis.

- Veja, por aqui. Ontem enquanto você dormia achei outra passagem para a biblioteca por essa sala, é só apertar aqui em algum lugar... – Leigh procurava pelo botão instalado na lareira do enorme salão – Achei aqui está

   A porta se encontrava embaixo de uma lareira fajuta, um castiçal ficava pendurado a beira da escada que dava para o porão de passagens, só foi preciso acende-lo para que pudessem explorar aquela parte.

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⏰ Last updated: Nov 25, 2018 ⏰

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