Nas Nuvens

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Eu lembro de quando eu era criança, tive uma fase entre 7 e 9 anos em que todo

aniversário, Natal e dia das crianças, além de quase todos os dias na hora do

jantar, eu pedia aos meus pais para viajar, pois queria muito andar de avião e ver

as nuvens de perto.


Quando eu tinha 10 anos meu desejo se concretizou. Chega até a ser engraçado agora, mas eu

consigo quase ver minha própria cara de frustração quando notei que era tudo

tão fechado no veículo e passar pelas nuvens dava sensação de vácuo. Eu perdi até o gosto

pela viagem da volta, e nas próximas vezes já nem lembrava mais daquela

vontade inicial.


Eu provavelmente nem pensaria nisso se não estivesse aqui vasculhando

arquivos de 2021 para a próxima reportagem. Já tem quase um ano que estou trabalhando aqui 

na torre. E vendo as nuvens aqui todos os dias desta forma aquela primeira experiência no 

avião fica parecendo uma fase mal construída de um vídeo game dos anos 2010.

Imagina demorar mais de 10 horas em vôo do Brasil à Europa? Na minha infância demorava. 

Agora eu consigo ver quase todos os países direto aqui da minha sala. Hoje o sol esta 

iluminando tudo e as nuvens estão tão claras que parece que eu nem estou sobre o vidro, mas 

diretamente nas brancas e suaves presenças que contrastam com o azul celeste deste céu de 

primavera.

Geralmente eu nem reparo muito, mas em dias bonitos assim da até uma certa preguiça de 

seguir para a tela holográfica para coletar material de pesquisa. Tecnologia da uber 

modernidade e eu ainda preciso conferir a pesquisa sozinha.

Estou mega curiosa para me conectar com estes jovens sobreviventes da grande crise 

energética de 2021. Que ano eu fui escolher para fazer parte do experimento espacial na orbita 

da Terra! Um momento assustador, mas ao mesmo tempo não passei por nenhuma das 

privações ou tragédias da Terra, e também não tenho entendimento real deste período.


Pablo tem 20 anos, Larissa tem 29. Então de certa forma eu sinto que se somar a experiência de 

ambos tenho uma perspectiva do que uma jovem de 25 como eu teria vivido. E esta é uma das 

minhas partes favoritas em trabalhar como repórter aqui na torre.


-Vanessa! Já estamos prontos para gravar a transmissão. Espero que já tenha separado tudo e 

esteja pronta para iniciar a conferência. Alias, eu assumo que esteja, porque não temos a opção 

de não. Geralmente a Clara é gente boa, minha mentora, introvertida, compenetrada. Mas 

agora  que vamos ter a primeira conferência entre dimensões ela esta uma placa solar de 

nervos. E eu entendo, mesmo sendo um teste interno, é a primeira vez que a torre vai sintonizar 

duas frequências ao mesmo tempo. E por algum motivo me escolheram para mediar isso. Sorte 

que as nuvens me ajudam a ficar em paz neste momento.


Este toque é inconfundível, o som que toma conta da sala toda e faz o espaço vibrar com um 

chamado que exige atenção completa e nem me deixa ficar irritada com a combinação pouco 

harmônica dos instrumentos em versão eletrônica.  O meu impulso é de ação, de ajeitar toda a 

sequência, deixar a cadeira flutuante na altura certa, certificar pela sétima vez que a 

transmissão esteja sincronizada nas três salas e que o áudio acompanhe a projeção holográfica 

das 2 dimensões em harmonia. Mas por dentro estou tremendo, um frio percorre a extensão do 

meu corpo fazendo com que as raízes de meus fios de cabelo formiguem e meus pés não me 

sustentem com a mesma firmeza enquanto caminho na direção do botão de controle da 

chamada. Mas eu sigo com minha partitura de ações de trabalho e aperto. 


Um chiado toma conta da sala e o holograma começa a tremer, eu procuro desesperadamente 

por algum controle que me ajude a estabilizar isso e já consigo imaginar a Clara e pessoal da 

sala de controle me xingando. Mas a imagem vai se compondo e pouco a pouco a estática vai se 

tornando a figura de um garoto, que pela expressão parece confuso e irritado, esta implicando 

com seu aparelho transmissor, e pelo visto não consegue ver a sala nem a mim.

-Pablo? Ei! Pablo! Consegue me ouvir?


Um estrondo toma conta de toda a torre e alguém até grita de susto na sala ao lado. Mas

esta tudo bem. Tirando meu coração que disparou, eu agora estou frente a frente com o

jovem, e tudo indica que ele pode me ver, só não pode me tocar porque é apenas sua projeção 

que esta aqui. E com suas roupas surradas e a barba por fazer ele parece mais velho do que a 

descrição, e parece perdido também. É melhor eu cumprir meu papel e mediar.

-Oi. Eu sou a Van, você é o Pablo de Humbra, certo?

-Isso. Prazer. Desculpe pela entrada brusca, aqui nem sempre a conexão funciona

tão bem. - Ele parece genuinamente preocupado. Mas faz parte do meu trabalho deixar os 

entrevistados tranquilos.

-Não te preocupa, esta tudo certo. Acho que já regularizamos. Se você não se

importar em começar, a Larissa ainda não conectou. Mas já estamos prontos.

-Beleza, tem uma questão especifica, ou eu só vou contando?

-Pensamos em vocês contarem a experiência de como foi vivenciar o processo da queda de 

energia. Pode começar do ponto que sentir que é melhor. Se puder contar um pouco de como 

estava sua vida antes do dia que a transição se materializou ajuda a compor melhor.

-Esta certo, bom uma das coisas que me vem a cabeça é como as notícias de

ecoterroristas tomavam conta da mídia.


Poxa, eu nem acompanhei quase este período, e as notícias pouco fariam sentido

lá onde eu estava orbitando na época. Isso muito me interessa. Estou com os ouvidos atentos.

Comunidades Horizontais 3.0Where stories live. Discover now