Bailarina

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Pela janela do apartamento admiro a vista da cidade. Em meio a tantas luzes, carros, pessoas, uma fina faixa de luz alaranjada começa a se formar no horizonte. O pôr do sol se inicia, banhando cada um dos elementos que compõem este lindo cenário contemporâneo. Eu sorrio, mesmo querendo chorar.

Acaricio a cabeça de Ben, que está aconchegado em meus braços. Não sei se ele entende a situação. Dizem que animais, principalmente cachorros, possuem sexto sentido. Acho que não é o caso de Ben. Ele ainda é um filhote, tão inocente e dócil que imagino ser incapaz de entender o que está acontecendo. E isso é de extrema utilidade agora.

Engraçado como em tão pouco tempo eu já sinto a sua falta. Sinto saudade não apenas do óbvio; lembro das rugas de preocupação em sua testa ao atender uma ligação do trabalho, os nódulos brancos em seus dedos cada vez que você segurava o volante do carro. Sua presença parece se esvair do cômodo e de todo este local que um dia chamamos de lar, a cada segundo que passa.

Tic, tac.

Me viro para encarar a sala, que está uma bagunça. O sofá foi arrastado, a mesa de centro está rachada e tem peças de roupa sua jogadas pelo chão. Não imaginava que sua ida seria tão dramática, mas, a quem eu quero enganar? Drama sempre foi seu nome do meio.

Ben se contorce no meu colo, inquieto. Suas patinhas estão sujas, e percebo que ele manchou minha camiseta branca. E por falar em sujeira, noto que a poça vermelha está aumentando, e o rastro dela desliza lentamente em direção aos meus pés. O crepúsculo já se instalou e começa a tornar a luminosidade cada vez mais escassa. Mesmo assim, consigo ver seu rosto, que me olha de um jeito estranho, pacífico, e isso me assusta. Por tantos anos enxerguei nada além de frieza nesses olhos, e agora a serenidade é quem me causa calafrios.

Caminho até seu corpo, que está deitado entre o sofá e a mesa de centro (ou o que restou dela). Faço menção de tocar seu cabelo, mas desisto. Seu crânio está irregular, com mechas úmidas caindo na testa e líquido carmim escorrendo por sua face. Para alguns, uma visão assustadora; para mim, você nunca esteve tão bonito.

Mais lembranças suas me vem à mente: o peso de sua mão sobre minha bochecha, seguido do ardor e marcas rosadas que você deixava para trás; a maneira que seus dentes se escancaravam para rir enquanto lágrimas quentes escorriam pelo meu rosto; a brutalidade de suas investidas cada vez que íamos para a cama.

Vão acreditar quando eu disser que foi legítima defesa, sei que vão. Coleciono marcas coloridas por todo o meu corpo, capazes de denunciar o que você fez comigo. Não desconfiarão que premeditei. Não saberão que me vesti inocentemente com poucas roupas para te provocar. Não detectarão a substância que pus no seu uísque.

Vou alegar que me defendi porque algo fugiu ao meu controle. A bailarina. Aquela de ferro e base de pedra que sempre ficou graciosamente apoiada sobre a mesa de centro. Ela clamava por justiça, pois estava cansada de assistir ao seu show diário de horror, onde eu era a protagonista. Fui incapaz de não ceder à vontade dela, que dançou em minhas mãos e saltou para a sua nuca. Seu corpo, já sofrendo os efeitos do veneno, pouco resistiu. Ela trançou as pernas pelos seus cabelos, acariciou suas orelhas e beijou seus lábios, numa sincronia perfeita. E naquele momento, eu sorri.

Nunca estive tão feliz.

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