Capítulo 71

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  Pela manhã, antes mesmo do sol nascer entres as colinas verdejantes, nós já estávamos em uma carruagem a caminho da casa de meus pais.
  A viajem era longa, as estradas estavam extremamente danificadas, e o frio estava intenso. Não bastava estarmos em um dos dias mais frios do ano, como também o sol resolveu não colaborar. A chuva intensa estava fazendo com que a terra solta nas estradas virasse lama, fazendo a carruagem deslizar vez ou outra.
  Eu e Ian estávamos em silêncio. Eu não me sentia confortável com ele ali tão perto, era estranho ter alguém que você quer muito tocar e conversar ao seu lado e não poder fazer nada disso.
  Em algum momento, eu acabei dormindo e sonhando com os momentos que tive com Ian. Senti seu cheiro e seu calor, e vi sorriso de menino e seus olhos azuis como o mar.
  Acordei com um solavanco, e me senti perdida.
  Quando percebi o que se passava, eu vi que estava deitada no ombro de Ian.
   Me afastei imediatamente, com medo do que essa proximidade poderia nos causar, ou melhor, me causar.
- já estava na hora! -disse Ian com um sorriso.
  Fiz uma massagem em meu pescoço dolorido e o encarei de cara fechada.
- você babou na minha camisa nova! -disse Ian franzindo a testa.
  Olhei imediatamente para onde estava deitada e não vi nada de errado com a camisa dele. Só estava um pouco amassada.
- mentiroso! -falei mau humorada.
  Ele deu de ombros e sorriu.
- nada como uma discussão básica para iniciar o dia bem. Ou melhor, terminar o dia bem!-disse ele olhando pela janela.
  A chuva nos atrasou mais do que o previsto, era noite e pela janela da carruagem eu não conseguia distinguir as formas na noite, apenas o barulho da chuva era ouvido onde repousava.
- estamos chegando! -falei avistando velas e lareiras acesas nas janelas das casas da vila.
  Fiquei em silêncio por um minuto. Não sei se estou preparada para o que está por vir.
- Helena?
  Olhei para Ian, mal podendo enxergar seu rosto na escuridão.
- está tudo bem?- perguntou ele.
- não, mas vai ficar!-falei olhando pela janela.
- Sabe que estou aqui. Não sabe?
- sei! -respondi com um sorriso fraco.
  Eu pensei que já havia chorado tudo que tinha para chorar, mas descobri que minhas lágrimas ainda estavam rolando quando finalmente chegamos em casa. Minha casa.
- Tantas vezes pensei em uma maneira de voltar...  -sussurrei parada em frente a porta de casa.
  Eu e Ian estávamos na varanda já há alguns minutos, mas eu não conseguia bater na porta.
- E agora estou aqui sentido que esse não é mais meu lar!- falei franzindo a testa.
  Ian colocou a mão em meu ombro para me dar forças enquanto eu secava minhas últimas lágrimas e batia na porta.
  Uma garotinha de cabelos loiros acinzentados, com espessos cachos em torno de um rosto de porcelana, abriu a porta.
  Vi seus olhos brilhantes de felicidade primeiro, mas em seguida, percebi que Louise estava com os olhos úmidos, seu rosto estava vermelho e ela estava visivelmente mais magra. Apesar dos pontos negativos, ela havia crescido bastante e seus cabelos estavam mais longos e sedosos do que a última vez em que nos vimos.
- Louise! -exclamei.
- Helena!
  Ela me abraçou apertado enquanto eu ficava de joelhos para ter a mesma altura que ela.
- senti tanto sua falta! -disse ela chorando.
- eu também minha pequena! -respondi.
  Tocamos os nossos narizes um no outro em um antigo gesto de afeto que nós tínhamos.
- você está tão linda! -sussurrei passando as mãos em seus cabelos.
- e você também! - disse ela cutucando minha capa de inverno.
  Louise se separou de mim e sem pensar duas vezes pulou em Ian que a segurou surpreso.
- VOCÊ VEIO! -gritou ela.
  Me levantei e observei Ian ajeitar Louise em seus braços. Mesmo grande daquele jeito, Louise ainda parecia ter sete anos.
- mas é claro que eu vim. Tinha que rever minha bela dama! -disse Ian lhe dando um beijo na testa.
- pensei que não fossem voltar nunca mais! -disse Louise triste.
  Abracei ela no colo de Ian e ao mesmo tempo acabei o abraçando também. Ele me lançou um olhar que me fez afastar.
- mas é claro que eu iria voltar! -falei pra ela.
- você veio se despedir do papai? -perguntou ela com lágrimas nos olhos.
- também! -falei retirando uma mecha de seu cabelo de seu rosto.
- ele está morrendo Lena! -sussurrou ela.
- eu sei meu anjo. Você tem que ser forte. Pela mamãe! -falei com tristeza nos olhos.
- tudo bem! -disse ela escondendo o rosto no pescoço de Ian.
  Ian era forte, mas já faziam alguns minutos que ele estava segurando Louise no colo, e já estava arfante por ter que suportar o peso de uma garota de dez anos por tanto tempo.
- Lou, vem pro chão! Ian está cansado! -pedi.
- tudo bem! -disse ela descendo.
  Ela pegou a mão dele e me ignorou. Louise parece gostar mais dele do que de mim.
  Ri da situação. Se ela soubesse...
- onde está a mamãe? -perguntei preocupada.
- está com o papai! -disse ela.
- vamos entrar? -chamei.
  Caminhamos para dentro de casa arrastando nossas coisas.
  Olhei em volta e suspirei.
  Era tudo exatamente como eu me lembrava. Lareira espalhando seu calor por toda a sala onde vários vasos de cerâmica pintados por mim estavam espalhados com arranjos de flores rosas claras. O sofá vinho com dourado, os quadros na parede, o cheiro de café, as janelas embaçadas, as escadas em espiral e o tapete felpudo onde Joseph brincava.
- JOSEPH! -exclamei indo até ele.
  Me sentei no chão e o abracei. Ele não deveria se lembrar muito bem de mim, mas eu me lembrava daquele menininho de cabelos loiros acinzentados, grandes olhos marrons e pele de porcelana. Ele estava maior e já sabia andar e estava falando algumas palavras. Seus dedinhos gordinhos tocaram meu rosto em uma espécie de reconhecimento e eu só pude sorrir pra ele.
- estava com saudades! -falei beijando a cabeça dele.
  Ouvi passos vindos do topo da escada, e logo vi minha mãe.
  Eu sorri pra ela e pude ver seu sorriso em resposta.
  Ela desceu as escadas e correu para me abraçar com força.
- senti tanto a sua falta! -disse ela chorando.
- eu também! -sussurrei.
  Ela se afastou e me olhou minuciosamente, acariciando meus cabelos e tocando meu rosto como se ela ainda não tivesse acreditando que eu estava em casa.
- você está tão bonita! -disse ela.
  Sorri com o elogio, a final eles eram raros vidos dela.
- sabia que você viria. Você tem um bom coração! -disse ela com um suspiro dolorido.
  Ao se afastar de mim, pude notar vários fios brancos em seus lindos cabelos. Seus olhos estavam pesados e sua pele tinha profundas olheiras. Seu rosto estava mais fino e seu olhar não estava mais brilhante como o de costume. Até suas roupas que eram sempre impecáveis estavam amassadas e manchadas.
- mamãe! -sussurrei desgostosa.
- Querido! -disse mamãe se lembrando de Ian.
- Senhora Eleonor, é um prazer lhe reencontrar! -disse Ian beijando a mão de minha mãe.
- sinto muito não ser em uma ocasião tão feliz! -disse minha mãe.
- Sinto muito por tudo isso! -disse Ian.
- obrigada por ter vindo. Está sendo muito difícil para todos nós.
- imagino que sim. Acabei de perder meu pai. Sei exatamente o que estão passando! -disse Ian solidário.
- sinto muito! -disse minha mãe.
- E o pai? -perguntei suavemente, minha voz quase sumindo.
  Minha mãe me encarou por alguns segundos antes de dizer:
- está na mesma. Não come, não quer ver ninguém...
  Fiquei em silêncio.
- ele está acordado. Quer ver ele agora? - minha mãe hesitante.
- pode ser depois? Estou exausta e com fome!-falei tentando evitar o inevitável.
- claro! A casa é sua, fique a vontade. - disse minha mãe.
- tudo bem!
- desculpe não poder oferecer um jantar, eu estou muito envolvida com a saúde de Alberto. Louise está fazendo o que pode, mas fico com medo que ela se machuque sozinha na cozinha.
- não se preocupe Senhora De Castro. Entendo perfeitamente! -disse Ian compreensivo.
- Louise? Pode levar Joseph para tomar banho? -pediu minha mãe.
- mas eu queria ficar com eles...
- pode deixar que eu faço isso mãe! -falei.
- não, Louise vai. Depois pode vir conversar com sua irmã. - disse minha mãe.
  Senti algo estranho em suas palavras, ela queria conversar em particular.
  Depois que Louise subiu com Joseph, minha mãe se sentou e fez um sinal para que também no sentassemos.
- pretendem ficar quanto tempo? -perguntou minha mãe.
- vamos embora depois de amanhã! -respondi sem rodeios.
- tão rápido? -a voz da minha mãe tremeu.
- sim. O casamento está próximo! -disse Ian.
- ah, é verdade. - lembrou-se ela.
  Minha mãe ficou em silêncio por um tempo, parecia estar procurando as palavras certas.
- qual o problema mamãe? - perguntei desconfiada.
- bom, desde que seu pai adoeceu... Ele parou de se preocupar com as contas da casa e com os negócios da família! -disse ela constrangida.
- estão sem dinheiro? -perguntei preocupada.
- não! Não é isso!- disse ela com as bochechas vermelhas de vergonha.
- Senhora De Castro, se tiver precisando de dinheiro... - começou Ian.
- não meu filho, não é isso! Guarde seu dinheiro, você vai precisar para construir sua família! -disse minha mãe sorrindo para ele.
  Meus olhos e os de Ian se encontraram momentaneamente, mas o contato não durou muito.
- então qual é o problema mamãe? -perguntei.
- como eu já disse, dinheiro não é o nosso problema! É que como tudo aconteceu tão rápido, eu... Eu só fiquei envolvida com seu pai. As dívidas foram se acumulando e agora os cobradores estão batendo a nossa porta.
- não está dando conta de cuidar do papai e das finanças? -perguntei.
- exatamente! - disse ela envergonhada.
- mamãe...
- Louise está se virando como pode e está cuidando de Joseph, mas me sinto mal por não poder dar atenção a eles. É que... Seu pai tem pouco tempo! -disse ela aos prantos.
  Abracei minha mãe em uma tentativa de lhe dar conforto.
- estou tão envergonhada! -disse ela.
- não tem que se envergonhar Senhora De Castro. Sabemos como está atarefada, ninguém vai te julgar por isso. Tenho certeza que Louise entende o que está acontecendo. Ela não é mais nenhuma criancinha! -disse Ian afagando o ombro da minha mãe sem jeito.
  Minha mãe olhou nos olhos dele e sorriu. Naquele momento percebi que ela já não se sentia tão culpada por esse casamento. Se ela soubesse a verdade...
- você é um bom rapaz Ian! -disse ela acariciando o rosto dele. -Tenho certeza que serão muito felizes!
  Meus olhos se encheram de lágrimas, mas me recusei a deixar que escapassem.
- Senhora De Castro, tenho certeza que Helena não se importará de ficar mais alguns dias! -disse Ian me olhando.
  Não entendi o que ele queria que eu dissesse então fiquei quieta.
- Eu também ficarei se não se importar. Vou cuidar dos negócios da família e pagar as dívidas enquanto Helena toma conta da casa e dos irmãos! - ofereceu Ian.
- eu não posso pedir isso a vocês! -disse minha mãe.
- mamãe, não precisa pedir! -falei.
- vocês fariam isso? -perguntou ela mal contendo as lágrimas.
- com prazer! -disse Ian sorrindo.
- obrigada! Fico aliviada com vocês por perto! -disse ela com um suspiro.
- não se preocupe, tudo ficará bem! -falei.
- claro que sim. Vou ver como seu pai está. Acomode Ian. Tenho certeza que ainda se lembra da casa!
- claro mamãe.
- mais uma vez, obrigada! -disse ela antes de partir.

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