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Naquela noite tive poucas ou nenhumas horas de sono. Longos períodos de lucidez e olhar fixo no teto confundiam-se com curtos momentos alucinados em que a via num clube nocturno, no meio de dezenas de pessoas, todas sem rosto, a dançar. Então ela olhava-me e agarrava-se a um desses seres sem cara e ria-se. Não se ria para mim. Ria-se de mim.

Outras vezes estávamos de volta á minha sala como na primeira vez. Eu dizia-lhe o que sentia por ela e ela ria-se de mim novamente. As gargalhadas começavam timidamente mas iam aumentando de intensidade e volume até se tornarem ensurdecedoras e aí eu acordava.

Ela evitou-me enquanto lhe foi possível. As SMS teriam o mesmo efeito se nunca tivessem sido enviadas de todo e as chamadas alternavam entre a rejeição e o voicemail.

Tive que montar uma vigília à porta dela mesmo à polícia americano dos filmes. Estava mais do que claro que me estava a desprezar, talvez à espera que caísse em mim e a deixasse em paz. Ou quem sabe acordasse uma manhã e achasse que tudo tinha sido um sonho. Mas enganava-se. Depois de tantos anos na friendzone, conseguira sair dela para um novo local que parecia o paraíso mas que, em boa verdade, se revelara um tormento de ciúme, lágrimas e noites sem dormir. O pior de tudo é que não se ficou por aí.

Na fatídica noite eu voltei ao apartamento dela. Toquei a campainha e, claro, que não obtive resposta. Pensei de repente na Micas e perguntei a mim próprio se a pequena velha ainda achava que estávamos prestes a ser vizinhos.

Voltei para o carro. A noite prometia ser longa.

Poucas vezes arredei os olhos da garagem. Escrutinei cuidadosamente cada carro que entrava ou saia daquele portão. Algures entre as 4 e as 5 da madrugada o carro dela chegou. Um mínusculo carro amarelo, inconfundível, parou em frente à garagem e, enquanto o portão subia, a luz do interior da garagem permitiu-me distinguir duas silhuetas no interior do veículo.

Duas.

"Puta!", exclamei para ninguém.

Saí do carro e corri para a porta do prédio. Carreguei na campainha da Micas com o máximo de força que consegui, como se a força que fazia fosse proporcional ao som: mais força no botão, mais alto o toque. Enquanto torturava o botão, podia ouvir o portão da garagem a fechar. Finalmente a velha respondeu:

"Quem é?" disse numa vozinha quase inaudível. De certeza que estava a dormir.

- Micas! É o Alberto, o namorado da Vera... Sinto muito mal por a estar a incomodar a esta hora... Mas a Vera ligou-me sobressaltada com alguma coisa e a chamada caiu. Saí de casa a correr e deixei lá a chave daqui... Ela não responde! Preciso mesmo de ver o que se passa...

Aquilo saiu-me tão bem que até eu pensei que estava a dizer a verdade.

"Oh Deus!!" disse a estúpida da velha.

A porta abriu-se e eu, vendo que o elevador já estava ocupado, sprintei escadaria a cima para chegar primeiro.

Ao chegar lá acima, a velha já estava à porta.

"Micas!" gritei "Vá para dentro. Acho que está alguém lá dentro com ela... Pode ser perigoso."

A velha assim fez sem questionar. "Ainda bem que és tão burra..." Pensei eu.

O elevador parou e um casal saiu abraçado. Ele era enorme. Não apenas alto mas também musculado. Das curtíssimas mangas da t-shirt saiam braços grossos como troncos que pareciam poder arrancar-me a cabeça facilmente. Mas não tive medo. Eu estava ali para ela, não para ele.

Ela agarrava-o pela cintura como se ele pudesse fugir. Vinham aos risinhos. "É de mim", pensei... "Vêm a rir-se de mim!". Mas quando me viram, os risos sumiram-se.

ConfessoDonde viven las historias. Descúbrelo ahora