Carolina

112 5 2
                                    

Carolina era o nome dela. Fazia bolinhos de chuva e tinha cabelos brancos desde que nasci. Mas o nome era de menina nova. De menina de escola.

Naquela tarde ela veio me trazer pipoca. Uma pipoca engraçada, cheia de manchas marrons, que ela disse serem chocolate. Eu enfiei a mão na tigela, sem me importar muito com o sabor. Era pipoca, oras. Pipoca é uma das coisas que eu nunca recuso. “Obrigada, vó”, eu disse. Ela deu de ombros, botou um sorriso torto no rosto, e se virou para ir pegar as xícaras de chá. Tinha feito chá também.

Chá de cidreira. Meu favorito. “Puxa, vó, hoje você adivinhou, hein? Estava com uma vontade...”.

Ela continuou sem falar nada. Trouxe as xícaras, me deu uma, e se pôs a tomar o chá do meu lado. Eu me lembrei, por algum motivo, dos dias em que ela me levava junto com ela no mercado, na casa da filha - minha tia - ou em qualquer outro lugar. Íamos de ônibus e ela me mantinha no seu colo. Naquela época, minhas pernas não alcançavam o chão quando eu sentava nos bancos.

- Eu vou sair.

Foi o que ela disse, depois de tomar o último gole de chá. Eu estaquei. Como assim, ia sair?

- Não, vó. A senhora não pode sair. Não tem como sair, com as suas pernas desse jeito.

- Eu vou sair, menina!

Teimosa. Sempre fora. Mas não dava para sair. Fazia meses que ela não saía, aliás. Como ela se recusava a usar a bengala ou a cadeira de rodas o tempo todo, ela tinha que ficar em casa, costurando suas colchas de retalho ou fazendo seus tapetinhos de tricô. Eu entendia. Ela preferia fazer alguma coisa que julgava útil do que ser um peso a ser arrastado por aí. Não que ela fosse um peso – nunca foi, para ninguém – mas eu entedia seu orgulho, seu jeito de dizer que ainda estava viva. Que ainda havia coisas que ela podia fazer sozinha.  

Frente à força de sua afirmação, eu demorei para falar alguma coisa de novo. Proibi-la? Parecia ridículo. Proibir de sair uma pessoa que me trocara as fraldas e que já vira tantos invernos - 89, para ser exata - na vida?

- Vó, não dá...

Mas quando eu fui balbuciar alguma coisa, ela já estava na soleira da porta. Sua bolsa preta de couro no ombro, o casaquinho roxo, o sapatinho pequeno. Os pés não estavam tão inchados. Aliás... não estavam nada inchados. As pernas pareciam fortes de novo. Ela estava sem a bengala.

- Mas não é que você melhorou? Vó, o que a senhora andou fazendo, hein? Ginástica? Que beleza!

Dessa vez, ela deu um sorriso menos torto. Fez uma careta, como se tirasse sarro da minha afirmação, e disse:

- Eu vou sair. Não me espere.

E o telefone tocou.

Acordo do meu sono leve no sofá. Ainda é sexta-feira, dia 6 de setembro. Atendo.

- Filha, é a notícia que você já esperava. Ela descansou.

Desligo.

E assim Carolina foi, com sua bolsa preta, seu casaquinho roxo e seu sorriso torto, pegar um ônibus para o céu.  

CarolinaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora