Fogueira de São João e Seu Antonio

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Durante todos os anos da minha vida, inclusive os que ainda nem sabia que era gente, nos reuníamos na casa de Vovô para comemorar o seu aniversário com uma crepitante fogueira e comidas à base de milho.

Ele fazia anos no dia de São João, em  24 de junho, e tínhamos a nossa particular festa junina, com direito a balõezinhos feitos em casa com papel de seda e que mal se erguiam vinte metros no ar, e todas aquelas coisas comíveis e bebíveis boas demais!

Sim, também tínhamos uma fogueira. E não  qualquer fogueira. Uma fogueira, digamos assim, ecologicamente correta, o máximo que esse antagonismo era permitido.

Para compor essa tradição familiar, era posta em cena uma outra: a de juntar, por um ano, palitos de fósforos.

Essa missão cabia a toda família, mais precisamente às mulheres da família, entre filhas e noras do vovô. O velho tinha cinco filhas e seis noras, daí eram doze casas a juntarem, por 365 dias, palitos de fósforo. E como sempre se usa mais de um palito por dia, pode-se somar, aí por baixo, mil palitos de fósforo por casa em 1 ano.

Então, a fogueira que era a comemoração de São João e Seu Antonio, tinha no mínimo doze mil palitos que, infelizmente, queimavam rápido demais. Mas o que aquela fogueirinha 75% ecologicamente correta representava para nós ia muito além dos poucos minutos que ela permanecia acesa.

Pois que, aqueles mais de doze mil palitos, era a tradição da nossa família e, até onde sei, exclusivíssima nossa! E o fato de se fazer questão de juntar os palitos ao invés de simplesmente jogá-los fora, era a materialização da boa vontade de todos, do amor e da consideração que tinham por Vovô Tonho.

Mas o tempo passou. Depois da morte de Vovó Tereza, a nossa tradição começou a perder força. Como se vovó fosse o elo mais forte dessa corrente e o elo principal que mantinha todo o restante junto, a nossa enorme família constituída por doze casas distintas, começou a se aniquilar.

Filhas e noras começaram a se separar de seus maridos; a mudarem para regiões mais distantes; a se interessarem por outras coisas. Um filho e uma nora morreram tempos depois da Vovó Tereza, deixando três viúvos na família, contando com vovô. E nós, seus netos, reféns das ilusões de modernidade da juventude, não demos prosseguimento à tradição de décadas.

Porém, a fogueirinha de palitos de fósforo ainda insistia e persistia, como uma verdadeira heroína da resistência, contando agora com alguns poucos milhares de palitos e um diâmetro bastante reduzido, mas ainda viva e repetida ano após ano.

Agora que não sofro mais os ardores ilusórios da juventude, resolvi amadurecer e retornar às raízes familiares, e também contribuo com a minha reduzida porção de palitos.

***

Dizem os antigos que a noite de São João é a noite mais fria do ano. Nunca parei para notar isso,  mas soube que essa data coincide com o solstício de inverno não à toa, portanto, é a noite mais fria, afinal a Terra está o mais distante do Sol.

As fogueiras, então, servem para aquecer o pessoal que não deixa de participar das festas por causa de um friozinho. Mas essa tradição e outras coisinhas hoje disfarçadas de brincadeiras, remontam a tempos muito, muito antigos, coisa das civilizações de milênios atrás. Logo, a fogueira não foi inventada apenas para afastar os maus espíritos.

Bla-blas à parte. Sei que estou enrolando, então vamos voltar ao nosso 24 de junho de hoje e para a festa junina de aniversário do Vô Antonio.

A fogueirinha quase ecológica conta agora com uns três mil palitos juntados por mim, pela tia Maria e pelo próprio Vovô Tonho. E para que ela não ficasse tão chocha, passamos a juntar também as caixinhas dos fósforos. E contamos com algumas dezenas delas, empilhadinhas em círculo, formando uma barreira para os palitos que eram depositados no interior dessa muralha de caixinhas de papelão.

A noite de São João, se era a mais fria, também era a mais bela, com o seu céu limpinho e estrelado, com as estrelas luzindo como diamantes ao fogo. E mesmo com alguma dificuldade, a fogueirinha é acesa e logo o seu calor ardente e aconchegante abraça a nós três ali, em volta dela.

Na fogueirinha sempre havia um ou outro palito que não fora usado, indo parar por engano junto aos outros. Ele explodia em fagulhas minúsculas quando o fogo chegava até ele. Apesar da nossa fogueirinha ser compacta, com as  suas minúsculas achas, ela crepitava e aquecia como gente grande, e as fagulhas que subiam eram como fadinhas de fogo tentando se elevar até às nuvens.

Então, ficava a observar o meu avô, vendo como ele se absorvia pelas chamas bruxuleantes. Acredito eu, que ele ficava em verdadeira contemplação, em quase um estado de alteração de consciência. E me colocava também a observar as formas fantasmagóricas provocadas pelas chamas dançantes, fazendo uma composição de luz vermelha e escuridão.

E nessas formas de  luz e sombra que se movimentavam, eu acabava tendo uma nítida impressão de que não éramos apenas três ali em torno da fogueirinha. Não sei se era a minha imaginação que voava alucinada ou se havia alguma alteração de consciência em mim também, mas, mais de uma vez, vi a minha avó parada ao lado, um pouquinho atrás, do meu avô, dando-lhe a cumplicidade de sua companhia como sempre dera a ele durante os 60 anos em que permaneceram juntos.

Aquela visão permanecia pelo curto tempo em que eu conseguia manter os  olhos abertos, pois piscava mais vezes que o  normal por causa do calor ardente, e quando reabria os olhos na ânsia de apreciar mais daquela visão tão reconfortante dos meus avós novamente juntinhos, tudo que eu via era o Vô Tonho ainda parado, com as mãos  cruzadas sob a barriga proeminente e um semblante que denotava uma profunda meditação. E daí me partiam algumas considerações...

... de que nossos sinceros afetos jamais nos abandonam e nem os planos dimensionais são capazes de manter-nos afastados uns dos outros...

... de que o meu avô, naquela sua figura antiga, de barba longa e abundante, tão branca quanto os escassos cabelos, em oração ou meditação muito íntima diante do fogo, um dos antigos deuses da humanidade, era uma repetição de cena que vinha acontecendo há milênios e, até hoje, mesmo com o homem viajando pelo espaço ou desvendando o código genético da vida, tinha a sua continuação, mesmo que isso ocorresse de forma despropositada, inconsciente de que dava continuidade a algo que fora iniciado há, talvez, dois milhões de anos atrás, quando o homem descobriu como manipular o fogo.

Uma tradição de sobrevivência e reverência que permaneceu no cerne humano, jamais deixando que a sua chama se apagasse no instinto inconsciente do homem.

Amanhã, 25 de junho, se iniciará um novo ciclo ao tornar a juntar os palitos de fósforo para a fogueira do próximo ano. E isso me fazia tomar uma resolução muito importante.

Como no tempo de nossas mães, passar a cozinhar mais em casa e comer cada vez menos na rua, pois, só assim, conseguiremos juntar os palitos tão essenciais à nossa tradicional fogueirinha de São João e Seu Antonio.

FIM

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