Aquela não é a Harriet

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Basta um segundo para mudar vidas inteiras. 

Lyle sentiu isso na pele mais do que uma vez. Na mais recente, um infrator momentaneamente daltónico ignorou o significado das cores e do posicionamento das luzes, abalroando o seu modesto e alugado veículo com uma poderosa HiLux num cruzamento movimentado, em plena luz do dia. Levaram-no para o hospital em vez da casa do irmão Logan e da sua família, como era suposto. Certamente que teria perdido o aniversário da sobrinha. O pior, contudo, é que talvez não sobrevivesse para ver o próximo.

Aquele era um desses momentos. Os rasgões que o relógio da divisão infligia no silêncio assinalavam outro conjunto de segundos que poderiam mudar vidas inteiras.

A porta tinha aberto há instantes. Naquilo que era uma sala de observações vazia, onde apenas um corpo deveria trocar calor com o ar gélido, havia dois focos de perda de radiação. Ele não estava sozinho.

— Lyle?

O timbre que penetrou os seus ouvidos, quase perfurando os tímpanos com o surgimento súbito, nunca o aterrou mais. A voz era doce, o som afável. As memórias evocadas, idílicas. Mas o formigueiro debaixo da pele que o percorria como uma longa e venenosa centopeia que arrastava as antenas antes das pata gordas e peçonhentas, em número quase infinito, marcharem pelo seu corpo até qualquer parte apetecível, talvez o coração ou o fígado, antes de o desfazerem em porções que saciassem o seu apetite carnívoro; esse formigueiro medonho denunciava tudo.

A familiaridade tinha desaparecido. A cumplicidade, a alegria e o prazer da sua companhia também, assassinados por um simples facto: aquela não era a Harriet, a sua Harriet.

O outro corpo, com passadas amortecidas pela borracha do calçado, deu a volta à secretária atrás da qual Lyle se agachava. Com a luz que se derramava da porta aberta para o breu do consultório, as feições da Dra. Harriet Reid tentaram apaziguá-lo com um sorriso. Um sorriso que o mortificou de tão cínico, amplo e reluzentemente macabro que era, o cheiro putrefacto das gengivas cinza e da língua mirrada e retorcida, mantida saudável por um qualquer encantamento, a provocar a ânsia do vómito ao mais velho.

— Ainda não deverias estar a pé, Lyle. Anda, eu levo-te ao teu quarto.

A mão delgada ameaçou invadir a bolha de espaço pessoal do homem que, recuando, tropeçou, sentindo o frio das lajes na pele áspera das nádegas antes de se levantar atabalhoadamente. Com o movimento súbito, as dores no corpo repercutiram pelos músculos, tendões e ossos, levando-o a soltar um gemido quando voltou a apanhar o jeito à gravidade. 

— Lyle? Está tudo bem?  

O corpo que tinha pertencido a Harriet estava em cima de si, as garras mal aparadas projetadas dos dedos cadavéricos a vincarem as dobras da pele, invocando finos riachos escarlate que tingiam tudo à sua passagem até se precipitarem para o solo. Do ponto de contacto, qual veneno que se alastra, a certeza das suas convicções irradiou pelo seu corpo em calafrios e tremores de pânico. 

Poucas tinham sido as vezes que tinha estado pele com pele com a criatura que tanto o cativara nos seus fugazes regressos à civilização, mas em nenhuma dessas vezes tinha sentido tamanha repulsa na boca do estômago.

— Soltem-me! — berrou, a garganta arranhada a parir a ferros a cria do seu desespero, ao mesmo tempo que os seus braços dormentes deferiam um gancho de esquerda na figura feminina antes de a empurrarem contra o caixilho da janela fechada.

Desencabrestado, a consciência ainda oscilante depois de tanto tempo inanimada, tropeçou nos próprios pés, o instinto de levar as mãos à frente para amparar a queda a única coisa a evitar que se tornasse parte do insípido papel de parede da divisão. Depois, cambaleante, não conseguiu impedir a colisão do seu ombro desfeito e enfaixado com a moldura da porta, obrigando ao reajuste doloroso dos estilhaços do cavername antes de virar para o corredor, as passadas açodadas a tentar mantê-lo a salvo. Atrás de si, a figura de Harriet recuperava a consciência e, estalando as articulações como galhos secos que quebram ou talheres metálicos que derrapam na loiça de cerâmica, partia no seu encalço.

Aquela não é a Harriet ✔Where stories live. Discover now