Capítulo 1 - Lancelot

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O barulho do atrito das taças de ferro era audível mesmo há metros de distância. Quem era de lá sabia, e quem não era supunha: havia festa no povoado. A tribo de Ariosto, nascida da fuga de uma guerra dos Eslovacos, hoje comemorava a suposta paz que reinava entre eles. E essa comemoração era, em si, muito especial.

- Silêncio! Silêncio e atenção! – Dizia um homem miúdo, em cima de um palanque de madeira – Hoje, as autoridades de Ariosto apresentam, oficialmente, o novo rei da tribo. Lancelot, da linhagem de Arthur, rei do antigo império.

Alguns, apenas aplaudiram, desatentos. Outros olharam no entorno para buscar de onde sairia o tal rei, que até agora não havia aparecido. De repente, de trás de um galpão de madeira, sai um homem esguio, de cabelos pretos e nariz comprido. Com um sorriso no rosto, o homem cumprimenta o público, que está sentado em mesas rústicas de madeira, bebendo um preparado alcoólico de água e mel e comendo aperitivos.

Sua aparência, diferente dos outros reis, não denotava soberba ou autoridade. Pelo contrário: parecia um camponês simples, sem muita experiência ou instrução.

- Saudações, povo de Ariosto – disse o homem, a gaguejar – é com grande respeito e devoção que me coloco à disposição de vocês, senhores e senhoras, para gerir nosso povoado – e continuou falando.

De fato, a população estava o analisando. Mas não era por maldade ou ambição. Durante muito tempo, o povo estava acostumado a avaliar governantes e, se não lhe agradassem, faziam uma votação imediata para substituição. Era assim que funcionava a democracia em Ariosto. Além disso, a posse do trono não era hereditária, ou seja: qualquer um que quisesse poderia se candidatar e submeter-se aos olhares analíticos do povoado.

- Há muito tempo estamos dependendo de governantes humanos, capazes de gerir apenas o que lhes é possível dentro de sua visão limitada – nesse momento, todos prestaram mais atenção ao que o homem falava.

"Como vocês sabem, há muito tempo, um homem especial passou por nossas terras. Ele tinha o amuleto de Triskle, símbolo equivalente a ligação direta com os deuses e facilidade para evocação. De acordo com nossa lei milenar, quem tiver o amuleto de Triskle pode governar imediatamente, sem a prévia aprovação do conselho ou da população.

E, graças a Deusa-mãe, este foi o melhor tempo para nosso povo. Éramos livres, e não fugitivos. Não nos preocupávamos com os Eslovacos, nem com a guerra humana, nem com a falta de prosperidade. O rei, empenhado em sua função e capacitado pelos quatro deuses da natureza, administrava o povo e conduzia suas habilidades e riquezas para um caminho seguro.

Porém, ao término de sua jornada por esta terra, o rei teve de dar lugar a um humano, cuja habilidade limitada acabou machucando a nossa tribo, e nos levando ao centro da guerra dos Eslovacos".

Neste momento, os olhos do povo se entristeceram. Muitos ficaram cabisbaixos, e era possível vê-los dando as mãos, como uma forma de consolo e companheirismo. Lancelot, ao perceber esses gestos, comoveu-se e tornou a falar com cautela.

"Muitos pais perderam seus filhos. Guerreiras perderam seus maridos. Quem sobreviveu, e está aqui hoje, sabe o quanto foi difícil ver aquela cena e saber que foi resultado do governo de um humano. Eu perdi minha família. E hoje, por meio da minha dor, estou aqui para fazer uma proposta diferente para vocês".

As sobrancelhas franziam-se, em tons de curiosidade e desconfiança. Mulheres e homens, que antes ouviam o discurso sem muita atenção, agora posicionaram-se firmes em suas cadeiras, prontos a ouvir o que aquele estranho tinha a falar.

- Estou aqui sim, para gerir nosso povo e cuidar de nossa segurança – disse o homem, ajeitando a voz para que fosse ainda mais audível – mas lhes faço uma proposta. Hoje, disponho-me, povo de Ariosto, a lutar, buscar e atravessar mares e desertos para achar o rei escolhido pelos quatro deuses da natureza. Vou em busca do outro dono do medalhão de Triskle e, quando encontra-lo, direi que há um povoado a sua espera, para ser direcionado e governado pela sabedoria divina dos deuses. Desta forma, tratei paz a Ariosto novamente.

Mulheres, homens e crianças se entreolharam. Uns esboçaram um sorriso, e outros buscaram, em seu próximo, compartilhar felicidade e esperança com o olhar. O novo rei, ainda no palanque, mas menos nervoso do que quando começara, esperava uma resposta do povoado.

De repente, todos começaram a sorrir, e, como se tivessem combinado, falaram em uníssono:

- Vida longa ao rei! Glória e honra aos deuses!

Aquela noite terminou com brindes e conversas. A chama da esperança estava acesa novamente. E ela tinha um nome: Lancelot.

Ariosto e o Amuleto de TriskleWhere stories live. Discover now