Aqueles Postais

נכתב על ידי BenMathias

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Stephanie volta para casa depois de dois anos de fuga. Fuga do medo que sentiu quando descobriu que amava o a... עוד

Capítulo 1 - De volta
Capítulo 2 - A mudança
Capítulo 4 - Coisa de Criança
Capítulo 5 - Como as pirâmides
Capítulo 6 - O beijo de uma rosa, onde tudo era cinza
Parou por que? Por que parou?

Capítulo 3 - Festa das Luzes

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נכתב על ידי BenMathias



Depois de sentir a areia úmida e geladinha da praia, eu comprei um coco e voltei para o taxi. O motorista, que acompanhou atento cada um dos meus passos, ali na sombra de um coqueiro, pareceu aliviado quando eu voltei, tendo cumprido o que eu tinha prometido: não demoraria. Foi só uma caminhada até as espumas das ondas. Eu precisava sentir novamente aquela água gelada de uma praia do Atlântico, num dia de muito sol. 'Não se preocupe, moço', eu pensava, enquanto voltava para o calçadão. 'Eu não pulei no mar e nem fugi da sua corrida...'

Quando me aproximei do carro, sorri de um jeito cúmplice para o motorista. Eu estava de volta: sã e salva. Ele sorriu de volta. Aliviado, eu acho.

- A praia hoje está uma maravilha – ele tentou puxar conversa.

- Está mesmo! Mas eu já consegui o que eu queria aqui: sentir a água e a areia geladinhas. E provar esta água de coco deliciosa. Hum... Mas agora, eu gostaria de ir ao Jardim Zoológico, por favor.

- Claro! É pra já!

- Que lindo, tudo isso aqui!

- A senhorita está visitando a cidade?

- Eu moro aqui. Bem, pelo menos, eu morei. A minha vida inteira.

- Ah, que bom! Então foi passear de férias? Está voltando, é isso? – o simpático senhor me olhava de quando em quando pelo retrovisor.

- Na verdade, é quase o contrário, senhor...

- Getúlio.

- Eu sou Stephanie. Então, senhor Getúlio, eu agora moro fora; trabalho no exterior. Na verdade, estou aqui de férias.

- Ah, que beleza! E chegou numa época boa. Muitos turistas vêm para cá para aproveitarem o verão, como a menina deve saber... Esta é a melhor época do ano!

- É mesmo. Esses dias de final de ano são sempre muito especiais para mim.

- Para mim também! Sabe, eu sou do interior. Vim para a capital há alguns anos. Para trabalhar; para tentar uma vida melhor nesta cidade grande. Eu cheguei aqui com catorze anos, logo depois das festas de final de ano. Vim morar na casa de um primo do meu pai. Acabei sendo criado junto com os filhos deles... Quando chega esta época, dá uma saudade de casa... A menina não pensa em voltar a morar definitivamente aqui na sua terra, não?

- É justamente nesta época do ano que eu também mais sinto saudade de casa, Seu Getúlio... é justamente nestes dias que eu mais tenho pensado em voltar...

- Aquelas festas com a família e com os amigos... os presentes, as árvores de Natal... tudo isso me dá uma saudade tão grande da minha terra e das pessoas que eu mais amo... faz anos que eu não os vejo...

- Sim senhor... – eu suspirei. – As luzes, as velas que se acendem no candelabro de vários braços...

Acho que Seu Getúlio não entendeu bem a minha última frase. Deixou o assunto morrer, fingindo ter que prestar atenção à uma manobra mais ousada de outro motorista, ali na pista. Percebeu que minha voz se perdeu no tempo. Aumentou o volume do rádio...

"Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells swing and jingle bells ring

Snowing and blowing up bushels of fun

Now the jingle hop has begun

Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells chime in jingle bell time

Dancing and prancing in Jingle Bell Square

In the frosty air..."

Talvez tenha até olhado pelo retrovisor e visto quando o meu rosto virou novamente para o montinho de cartões postais.

Eu peguei mais um postal da pilha que tinha ficado no banco e lembrei daquele ano em que faríamos dez... lembrei daquela Festa das Luzes...

"What a bright time, it's the right time

To rock the night away

Jingle bell time is a swell time

To go gliding in a one-horse sleigh..."

Dezembro tinha chegado mais uma vez e novamente os dias ensolarados do verão no hemisfério Sul ganhavam cheiros, cores, músicas e expectativas daquela época do ano que era a mais feliz para mim. O ar ficava com cheiro de férias: bronzeador, repelente, protetor solar, água salgada, areia de praia. As casas ficavam com cheiro de festas de final de ano: abacaxi, pêssego, melancia, canela, castanha, noz, panetone de chocolate. As fachadas ganhavam cores, brilhos, luzinhas pisca-pisca, festões, Papais Noel, bolas vidradas. Bem... quase todas as casas.

- Mamãe, por que a casa do Dimitri não está enfeitada para o Natal?

- Provavelmente porque eles não celebrem o Natal como nós, minha filha.

- Como assim!? Como pode alguém não celebrar o Natal!? E o Ano Novo!? Eles não comemoram também!?

- Eu acredito que comemorem o Ano Novo sim, querida. Mas eu tenho quase certeza que o novo ano, para os Kadishman, aconteça em outra data; diferente do dia 31 de dezembro, que é quando nós celebramos a véspera do ano bom...

- Eu não entendo nada do que a senhora está dizendo, mamãe! Por que eles são tão do contra?

Mamãe riu. Com aquela doçura e paciência que lhe era tão peculiar. Eu sempre achei que Dona Júlia era a mulher mais paciente do mundo. E hoje em dia, também penso que ela devia se sentir especialmente testada em sua paciência, por ter tido uma filha como eu: que desde os dois anos de idade, pelo que meus pais lembravam, questionava tudo a todo o tempo. E eu não me dava por satisfeita se uma resposta não me convencesse; ou se eu pensasse que diante de mim havia um mistério; algum fio de meada que tinha sido escondido... ah! Era começava uma investigação daquelas! Até que eu me desse por satisfeita com a solução do enigma!

Para tristeza de meu pai, já aos cinco anos eu descobri quem realmente era o Papai Noel. Foi uma grande desilusão para papai, quando eu acordei na madrugada natalina e observei ele colocar a boneca que cantava vinte e cinco musiquinhas ao lado da árvore enfeitada.

- O que você está fazendo aí, papai? Por que não é o Papai Noel que está colocando o meu presente na árvore?" - questionei com a testa franzida.

- Ah, o Papai Noel teve que voar rápido para o Polo Norte, porque o dia já está quase amanhecendo e ainda faltavam muitas crianças para ele visitar. Então ele pediu para eu ajudar ele colocando o seu presentinho aqui... - meu velho bem que tentou.

- Na-na-ni-na-não! O Papai Noel é você! Eu descobri!

Tadinho! Acho que se não fosse mamãe a socorrê-lo com um afago no ombro, papai teria chorado amargas lágrimas naquela noite: sua fantasia tinha sido derretida por aquela filha tão enxerida!

Mas mamãe sempre tinha paciência para os meus questionamentos. Tanto, que nem fazia força para tentar me convencer de alguma coisa qualquer. Ela tinha desenvolvido uma técnica: incentivava-me a ir buscar as respostas.

Foi assim que ela conseguiu contornar o fatídico desmascaramento do Papai Noel na versão patrocinada pelo refrigerante de Cola, que tinha vestido o bom velhinho de vermelho nos comerciais da década de 1940 na América. Mamãe conseguiu para mim um livro que falava sobre Santo Klaus, o religioso que presenteava crianças muito pobres na época de Natal, e que foi eternizado por sua generosidade e cuidado, com os órfãos e com os mais necessitados. Pronto! Sem mentir ou sem abafar a minha curiosidade visceral, mamãe reeditou na minha mente um Papai Noel que era um símbolo: a perpetuação do espírito de generosidade e cuidado que tinha sido trazida para nós pelas boas ações de um certo religioso chamado Klaus, que assim, ficaria para sempre como um mito para as gerações que vieram depois dele, mamãe me devolveu o Papai Noel.

A partir daquela pesquisa e da conversa com mamãe, papai ficou autorizado a continuar sendo o ajudante do Papai Noel verdadeiro: o espírito de amor fraterno do bondoso Santo Klaus.

Eu tinha, portanto, conseguido dois Papais Noeis: o mito e o meu próprio papai. Mais uma vez, mamãe conseguia fazer com que todos ficássemos felizes: papai continuaria tendo a visita do Papai Noel, e não teria que chorar por ver morrer a sua fantasia; eu aceitava dormir cedo para ser visitada pelo gesto de generosidade e carinho que coroava a noite de véspera de Natal para as crianças; e ela via seus maiores tesouros – a filha e o marido – crescerem em harmonia.

Foi assim que as minhas perguntas sobre os estranhos hábitos dos Kadishman não receberam uma resposta direta de mamãe. Ao invés de passar para mim o conhecimento e as impressões que eram dela, Dona Júlia incentivou-me, mais uma vez, a descobrir eu mesma tudo aquilo que eu queria saber.

- Por que você mesma não pergunta ao Dimitri, por que ele não comemora o Natal?

- É isso mesmo que eu vou fazer!

Naquele ano, Dimitri tinha sido matriculado na mesma escola que eu. Era de uma sala diferente da minha – ele era um ano mais avançado – mas ia e voltava no mesmo transporte escolar que já fazia há anos a rota para a minha casa.

Eu confesso que partilhar a viagem entre casa e escola – ou vice verso – com Dimitri não era a coisa mais simples do mundo. Ao longo daquele ano, o garoto calado dos grandes olhos azuis emoldurados por imensos aros pretos, continuou me causando sensações estranhas, pelo simples fato de ficar vez ou outra perto de mim. E me olhar fixa e silenciosamente nos olhos.

Eu até tinha colegas meninos. Os garotos da minha sala eram barulhentos, brigões, desmiolados. Eu nunca tive problema algum em lidar com os moleques. Falava sério com eles, aceitava algumas brincadeiras, ria de uma ou outra piada. Quando era preciso, até dava uns cascudos em algum engraçadinho – e logo, ficava bem claro para todo o bando que não se podia mexer comigo. Mas o Dimitri... o Dimitri me desconcertava! Não era o que ele fazia; era justamente o que ele deixava de fazer que me desestabilizava. Ele não precisava falar nada comigo – de fato, nós mal trocávamos qualquer palavra, ao longo dos meses – mas, bastava ele fixar aqueles olhos azuis profundos em mim, e logo a menina que era toca confiança, e que não temia os meninos, começava a suar; a sentir mariposas voarem no meu estômago; a sentir a boca ressecar...

Mas, eu não tinha medo dele! Vez por outra, inclusive, meu pai teve que ouvir minhas queixas indignadas contra aquele garoto. Eu chegava em casa e só falava "O Dimitri isso; o Dimitri aquilo; o Dimitri aquilo mais...!" Eram protestos seriíssimos. Mas, confesso que não lembro de qualquer das queixas graves que eu reportava... Só lembro do meu pai rindo e de mamãe acompanhando atenta as minhas reclamações.

Sei que uma coisa que me descontrolava era quando o Dimitri sentava ao meu lado no transporte escolar. Uma vez, só o fato de a perna dele encostar na minha ao longo da viagem, foi o bastante para meu coração parecer que sairia pela boca. Eu acho, que naquele dia, eu tive comichões pelo corpo todo!

E também tinha aquelas piscadelas!

Às vezes, quando eu ficava irritada; quando algo me contrariava – principalmente nas viagens de volta para casa – Dimitri não falava nada. Apenas me olhava e piscava os dois olhos, várias vezes, como se quisesse me provocar; me desestabilizar ainda mais. Ah, como aquilo me irritava!

Uma vez, uma tal de Simone, que estudava na mesma sala dele, estava dando em cima do Dimitri descaradamente. Ali no transporte! Ali na minha frente!

Já não bastava o fato de eles estudarem juntos, na mesma sala!?

Eu vi aquelas insinuações dela para ele e aguentei durante toda a viagem. No dia seguinte, as outras crianças já cantarolavam musiquinhas sobre eles, dizendo que eram namoradinhos. Eu acho que ela percebeu a minha irritação com aquela palhaçada toda; ou não. Mas o fato é que ela me provocou – de alguma forma que hoje eu nem lembro mais... Mas foi o suficiente para eu brigar com ela e dar um soco na abusada. Ela até sangrou. Acho que mordeu um dos lábios na hora que eu explodi para cima dela... Garota abusada! Bem, hoje eu até tenho vergonha disso; até me arrependi. Mas a culpada de tudo foi ela: ficou exibindo a sua nova conquista! E o Dimitri? Não falou nada! Nem que sim, nem que não! Não confirmou o namorico deles! Apenas olhou para mim, quando eu já estava prestes a explodir, e piscou aqueles dois olhos intensos. Piscou uma, duas, três vezes, na minha direção. Ah, eu bem que teria dado um soco nele também! Mas não consegui. Ele me desestabilizava só com um olhar!

Então: a curiosidade era maior do que o desarranjo que o Dimitri causava em mim. E, afinal de contas, eu não tinha medo dele!

Era isso mesmo! Eu descobriria, indo direto à fonte, por que a casa dos Kadishman não estava enfeitada para o Natal, e por que eles não celebravam aquela data festiva tão importante no final do ano!

Eu saí da cozinha, onde tinha acontecido aquela conversa com mamãe e cruzei a sala resoluta. Senti papai levantar a cabeça do jornal, quando ouviu minhas passadas fortes seguindo até a janela. Ele provavelmente ficou na dúvida entre perguntar aonde eu estava indo ou deixar para verbalizar o seu questionamento à minha volta. Mas, deve ter se surpreendido quando eu estanquei diante de janela.

- O que foi, filha?

- Lá do outro lado, pai. Olha aquilo.

Papai levantou e parou ao meu lado, bem em frente à janela. Olhou para fora, também. Sorriu em silêncio.

- O que eles estão fazendo, papai?

Do outro lado da rua, os Kadishman estavam ajeitando uma peça de metal, dentro da sua sala; posicionando-a no parapeito interno da janela, de modo que a coisa ficasse bem visível a quem passasse pela rua – ou que bisbilhotasse sua casa, a partir da janela, também. Seu Yuri, dona Zipora e Dimitri estavam bem compenetrados no ajuste daquela peça de metal que parecia um castiçal para muitas velas. De lá, eles olharam para a nossa janela. Eu senti o meu rosto arder, quente de vergonha. Mas, ao invés de fechar a cortina fazendo cara feia, por estarem sendo espionados, os Kadishman nos acenaram felizes. Papai retribuiu ao aceno, deu dois tapinhas no meu ombro, e voltou para o seu sofá e jornal.

- O que eles estão fazendo, papai? Aquilo é um castiçal?

- Castiçal tem encaixe para apenas uma vela, filha. Aquilo é um candelabro... Eles estão colocando um candelabro diante da janela, meu amor.

- E, olha papai! Eles estão acendendo uma vela!

- Hahahaha. Geralmente é para isso que servem os candelabros, meu amor.

- Acho que estão fazendo uma oração...

Eu fiquei um tempo parada diante da janela, hipnotizada com o que acontecia do outro lado da rua, na casa dos Kadishman. Depois de orar, eles se afastaram, acho que cantando alguma música bem alegre ou coisa assim. Eu só me afastei, voltando para junto do meu pai, quando Dimitri fixou seus grandes olhos azuis em mim, com uma expressão bem feliz. Ele ainda me desconcertava.

- Papai, por que, com tantos encaixes para velas, os Kadishman só acenderam uma? E foram embora depois de rezar?

Papai riu mais uma vez. Dobrou o jornal sobre os joelhos.

- Stephanie, se você quer mesmo saber os detalhes da celebração na casa do seu amiguinho, por que você não vai lá conversar com ele? Os Kadishman têm formas diferentes de celebrar datas importantes para eles. E as datas de suas festividades são diferentes das nossas. Então, por que não conversar com o Dimitri, a respeito?

- É isso mesmo que eu vou fazer, papai. Mas... não hoje.

Naquela noite, eu já tinha sido pega bisbilhotando a casa dos Kadishman; não aguentaria ser encarada pelo Dimitri novamente.

"Já é Natal na Líder Magazine..."

No rádio do taxi, uma propaganda qualquer anunciando a chegada do natal me fez lembrar de um jingle que embalavam as semanas que precediam aquela melhor época do ano, quando eu e Dimitri éramos pequenos. Olhei para fora do automóvel e vi postes e árvores enfeitados. A cidade, ainda que derretesse com o calor do verão sulamericano, não esquecia que guirlandas, folhas de pinhos e renas eram a alusão fácil para as festividades que tinham o bom velinho como embaixador secular. Renas aqui e improváveis bonecos de neve ali – com direito a narizes de cenoura – davam à cidade um aspecto de comercial de refrigerante de Cola. Aliás, os diretores de marketing que faziam planos fechados em salas com ar condicionado siberiano insistiam em mandar para as ruas carreatas formadas por fileiras de caminhões vermelhos tocando trechinhos de músicas orquestradas por sinos, que remetiam a comerciais com ursos polares simpáticos. Pobres motoristas suarentos dos caminhões: nada de salas climatizadas como na Sibéria; nada de ursinhos alvíssimos oferecendo refrigerantes geladinhos e um afago de pelúcia...

Era o engarrafamento, rumo ao jardim zoológico, e as propagandas no rádio do taxi, que já vinham mexer com a minha passividade de consumidora. De repente, eu queria que as coisas andassem mais rápido; que as ideias fossem arejadas, e o dia também. 'Vamos, Stephanie! Pergunta logo para o Dimitri o porquê daquele candelabro estranho e aquela única vela acesa, lá na janela!'

Mas eu não consegui atravessar a rua e perguntar. Nem na primeira noite, nem na segunda, nem na terceira... Eu só fiquei olhando; a distância.

Na primeira noite, os Kadishman acenderam uma vela no candelabro; na segunda, duas; na terceira, três. Os dias passavam com um insistente aumento do mistério. O que significava tudo aquilo? Eu continuava me perguntando. Quando será que eu teria uma chance – ou coragem – para buscar as respostas? Papai e mamãe apenas riam. Não facilitavam as coisas. Não desvendavam o mistério para mim. Eu continuava titubeando entre a vontade de saber o que era tudo aquilo e a falta de coragem de atravessar a rua e perguntar. E já estávamos no quarto dia das velas que aumentavam no candelabro que ficava diante da janela, e eu sem encontrar uma solução...

"Já é Natal na Líder Magazine..."

Foi quando, por acaso, eu e mamãe, Dimitri e a senhora Kadishman nos encontramos na loja de departamentos. Mamãe procurava um panetone com frutas cristalizadas, e a mamãe de Dimitri enchia as mãos com moedinhas de chocolate. Quando eu o vi, ali na gôndola, de costas para mim; totalmente concentrado nas prateleiras de doces, meu coração disparou. Mas, antes que eu fosse paralisada por aquele olhar penetrante do meu vizinho, inspirei fundo, dei passos resolutos e bati em seu ombro. Mamãe se assustou com o meu impulso repentino, mas se acalmou quando percebeu para onde eu estava indo. Eu cuspi as perguntas, antes mesmo que ele pudesse virar na minha direção.

- Dimitri, por que você e seus pais não enfeitaram a casa para o Natal? Por que vocês acendem velas em frente à janela, todos os dias? Por que cada dia tem mais velas?

O menino dos grandes olhos azuis penetrantes virou na minha direção. E, ainda que parecesse surpreso com a minha aparição – assim como a sorridente dona Zipora – respondeu, sem ter tempo para qualquer saudação.

- Eu, papai e mamãe não estamos comemorando o Natal; nós estamos comemorando a Festa das Luzes. Hoje será o quarto dia para acendermos as velas. E é muito divertido. Hoje à noite, além de quatro velas na Hanukkiyá, ainda vamos ter latkes, guefilte fish, borsht, sufganiyoth, cheesecake e moedinhas de chocolate nas apostas com o dreidel.

Eu devo ter feito uma cara de espanto daquelas! De tudo que o garoto falou, eu acho que só consegui entender 'moedinhas de chocolate'. Bem, acho que dona Zipora entendeu o meu desespero, porque logo se aproximou com um amplo sorriso no rosto e interrompeu o filho, segurando-o carinhosamente pelos ombros. Salvou-me da metralhadora de informações que foram disparadas na minha direção, sem qualquer tecla sap; sem qualquer legenda! Quando mamãe se aproximou de nós, as duas se cumprimentaram e a senhora Kadishman fez o convite:

- Dona Júlia, Stephanie! Que bom vê-las!

- Como estão: Dona Zipora? Dimitri?

- Estamos bem! Vejam, hoje nós celebramos o quarto dia da Festa das Luzes. É uma data comemorativa muito divertida para nós. Parece que Dimitri despejou um monte de nomes em cima da Stephanie, mas eu tenho certeza que o melhor será se ela mesma puder participar da nossa festa... Vocês gostariam de vir à nossa casa hoje para celebrar conosco uma noite de Hannukkah?

Eu não entendi bem a última parte, mas compreendi que mamãe aceitou o convite para a festa na casa dos Kadishman. E pelo que percebi, devia ser um festão: porque durava vários dias! Caramba! Se aquilo fosse o substituto deles para o Natal, eu acho que os muitos dias de festa já valeriam por Natal e Ano Novo juntos! Bem que papai tinha dito que eles comemoravam de um jeito diferente! Caramba!

As mães se despediram, combinando um horário. Dona Zipora falou alguma coisa que tinha a ver com a primeira estrela que aparecesse no céu. 'Quando Vésper apontasse no céu', disse, 'já será o início do dia seguinte.' Caramba! Quanta coisa nova!

Dei tchau para Dimitri. Ele deu aquelas piscadelas insistentes e acenou de volta para mim, com uma expressão de satisfação bem visível. Mas eu também estava contente: esta noite, quando a primeira estrela já anunciasse o dia seguinte, nós iríamos a uma festa – mesmo que cheia de coisas que eu ainda não entendesse... Eu estava prestes a desvendar aquele mistério!

Naquele dia, eu passei as horas numa ansiedade louca. Mamãe fazia o único doce que conseguia fazer: a gelatina com creme de leite batido. Papai lavava o carro na frente da casa, como se nada de diferente nos aguardasse à noite. Eu andava de um lado para outro, olhando de quando em quando para o candelabro que deveria receber quatro velas mais tarde. 'Por que em cada dia eles acendiam uma vela a mais? Será que as festas acabariam quando completassem todo o candelabro?', eu seguia me questionando.

Fui para a cozinha, tentar ajudar mamãe no preparo do doce. Fazer alguma coisa prática poderia fazer o tempo passar mais rápido. Mamãe riu de sua própria limitação:

- Sua avó fazia um manjar de coco maravilhoso. Eu gostava tanto!

- Essa era a minha sobremesa favorita nos Natais, mamãe. Quando vinha com pêssegos em calda, então... Hum... Por que a senhora não faz um manjar de coco para a festa desta noite?

- Eu não consigo fazer manjar como a sua avó fazia, meu amor. Eu não sei como ela fazia o doce ficar durinho; tão bonito e gostoso! Eu sempre deixo o mingau desandar! Meu manjar sempre vira uma mamadeira – e riu gostoso, entre encabulada e galhofeira.

Quando um dia reconheceu a sua limitação com os manjares, mamãe procurou uma alternativa culinária que conseguisse produzir com sucesso. Descobriu a gelatina batida com creme de leite. E desde então, aquela era a sobremesa que sempre a acompanhava.

Tudo bem: ajudar mamãe a bater creme de leite com gelatina de morango era melhor que não ter nada para fazer enquanto esperávamos a primeira estrela da noite aparecer no céu. Mesmo que ajudar mamãe significasse apenas pegar a batedeira no armário... rsrsr

Finalmente a hora chegou. Papai, mamãe e eu atravessamos a rua e batemos à porta dos Kadishman quando o sol estava para se pôr. Depois dos cumprimentos e boas vindas, eu me sentei ao lado de Dimitri, no balanço que ficava na varanda da frente. Ele mantinha aqueles grandes olhos azuis fixados no céu. E falou baixinho, num sussurro:

- A primeira estrela que aparecer vai trazer o novo dia. Vamos encontrar Vésper no céu.

E ficamos ali. Em silêncio. Olhando para o céu. Até que a perna dele encostou na minha. O coração acelerou. As borboletas voaram dentro do meu estômago. Eu dei um pulo. E gritei!

- Olha! A estrela!

- Vésper! Vésper! – Dimitri entrou correndo na casa. E seus pais fizeram festa para ele. Deram-nos moedinhas de chocolates. E chamaram-nos para perto da janela.

Papai e mamãe se aproximaram entre curiosos e respeitosos. Tinham uma curiosidade silenciosa sobre os costumes diferentes dos novos vizinhos, mas, ainda que não tivessem tantas informações sobre suas festas, não ousariam fazer perguntas que pudessem parecer indiscretas. Seu Yuri foi sábio: pretendendo repetir uma história para o filho e contar uma novidade para mim, acabou dando uma aula para todos nós, sem expor a ignorância dos mais velhos.

O patriarca dos Kadishman passou a mão carinhosamente no candelabro prateado, tomou uma vela e se virou para nós, as crianças:

- Bem-vindos a mais uma noite da Festa das Luzes. Durante oito dias, nós comemoramos a vitória de corajosos macabeus contra uns homens injustos que um dia governaram a Palestina e que tinham profanado o templo sagrado de Adonai – louvado seja o Seu nome – tentando impor as crenças erradas ao nosso povo.

Há muito, muito tempo, o conquistador Antíoco mandou o povo que morava na Palestina e que sofreu a invasão adorar seus deuses gregos; proibiu o retiro sagrado dos sábados; mandou que porcos fossem sacrificados no altar do templo.

O sumo sacerdote do povoado Modiin, chamado Mattathias e os seus filhos (que ficariam conhecidos como 'os martelos', ou 'macabeus'), começaram uma resistência e depois de muita luta, venceram os invasores...

Aquela história era emocionante. Dimitri acompanhava com olhos vivos as palavras do pai.

Seu Yuri contava uma história de invasões, conquistas, revoltas. Caramba! Ele conseguiu prender a nossa atenção: de crianças de dez anos. Mas também, quando olhei para papai e mamãe, percebi que eles quase não respiravam: queriam saber mais sobre aquela história de aventura!

Depois de uma pausa bem breve, talvez para ver se todos estávamos acompanhando as suas palavras, Seu Yuri continuou o relato.

- Depois de três anos de lutas, os macabeus venceram os invasores. Quando retomaram o controle de Jerusalém, resolveram purificar o templo que tinha sido conspurcado. E o que aconteceu depois, Dimitri? Você consegue contar para nós?

Meu amiguinho então se levantou e caminhou solenemente até perto do candelabro de prata. Foi só naquele momento, quando ele virou de costas para mim, que eu percebi que o menino dos imensos olhos azuis usava, assim como o seu papai, um chapeuzinho engraçado preso por um grampinho, bem grudado ao topo da cabeça. O menino se virou para nós de olhos fechados e pareceu buscar na memória a sequência dos eventos que devia narrar.

- Para purificar o templo, os hebreus deveriam rezar e deixar a Menorah acesa durante oito dias. Mas quando foram buscar o óleo para manter a Menorah acesa, perceberam que só tinha óleo suficiente para um dia.

Eles rezaram e acenderam a chama mesmo assim. O que aconteceu, então, foi um milagre. O óleo durou por todo o tempo da purificação.

Dimitri abriu os olhos e virou diretamente para mim. Parecia cansado com o seu esforço de lembrança, mas, ao mesmo tempo, orgulhoso por ter conseguido nos contar a parte mais importante da história. Dona Zipora sorria igualmente orgulhosa. Seu Yuri, feliz, concluiu:

- Esse milagre é celebrado anualmente pelo nosso povo em todo o mundo e, nesta época, nós usamos um candelabro especial, chamado Hanukkiyah, que possui nove braços. Uma das velas servirá para acender as demais.

No primeiro dia, a vela líder acende apenas uma das demais velas do candelabro; no segundo dia, duas; no terceiro, três... e assim por diante, até que um dia as oito velas sejam acesas. Este será o último dia de comemoração...

Vamos rezar e agradecer juntos pelo milagre: da vitória da luz sobre a escuridão da intolerância!

E todos nos colocamos diante daquele lindíssimo candelabro. Ouvimos a bênção e assistimos a chama da vela mestra dar vida às outras quatro velas, com um silêncio respeitoso e emocionado. Depois, os Kadishman puxaram uma musiquinha engraçada, que foi acompanhada por palmas de todos e seguimos para uma lindíssima mesa de jantar.

Aquela foi a primeira vez que eu ouvi Bon Jovi: Seu Yuki colocou 'The Chanukah Song' no som, pegou uma taça de vinho, ofereceu uma outra para papai e acompanhou os convidados até a sala de jantar, cantarolando junto com o roqueiro. Hahahah.

Ao lado de Dona Zipora, eu e mamãe aprendemos finalmente que os latkes eram um tipo de bolinho frito com batata ralada, os guefilte fish eram bolinhos de peixe e o borscht era uma sopa de beterraba. Tudo, juntamente com a tradicional gelatina rosada com creme de leite batido, de mamãe, esteve uma delícia!

Por fim, Seu Yuri trouxe para a mesinha da sala um dado que parecia um pião, e que chamou de dreidel. Contou para nós as regras de um jogo. O dadinho tinha quatro lados e quatro letras engraçadas – marcadas uma a uma nas laterais do piãozinho. Mas ele disse que eram N, G, H e S...

- Estas são letras do alfabeto hebraico: Nun, Gimel, Hei e Shin – mostrava-nos, enquanto falava – e representam a frase "Nes Gadol Haya Sham", que significa "Um grande milagre aconteceu lá"...

Ele então espalhou moedas de chocolate na mesinha. Distribuiu entre nós. E disse faríamos apostas com aqueles doces. Depois, quando rodássemos o dado, dependendo da letra em que o pião parasse, poderíamos não ganhar nem perder nada; ganhar todo o dinheiro da mesa; ganhar apenas a metade, ou repetir a aposta feita no início do jogo...

Aquela foi uma noite muito divertida!

E naquele ano, desvendava-se o mistério do porquê de os Kadishman não enfeitarem um pinheiro com luzes e não procurarem os chocotones de Natal. Mesmo não celebrando uma festa de final de ano igual à nossa, eles não estavam menos felizes. De jeito nenhum! Aquelas pessoas celebravam com luzes que se acendiam cada vez mais fortes, dia a dia, durante oito dias, relembrando um milagre de sua fé e partilhando com alegria ceias deliciosíssimas e tanto chocolate quanto a sorte trouxesse para eles nas voltas do dreidel. Estavam muito felizes!

Que recordações deliciosas, Dimitri...

Feliz Chanukkah!

"Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells swing and jingle bells ring

Snowing and blowing up bushels of fun

Now the jingle hop has begun

Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells chime in jingle bell time

Dancing and prancing in Jingle Bell Square

In the frosty air..."

go Yy

@b][Y8

המשך קריאה

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