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Aquele era o dia em que mil sonhos morreriam e um único sonho nasceria

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Aquele era o dia em que mil sonhos morreriam e um único sonho nasceria.
O vento sabia. Era o primeiro dia de verão, mas rajadas de vento frio atingiam a cidadela no topo da colina com tanta ferocidade quanto o mais intenso inverno, chacoalhando as janelas com maldições e serpenteando através de corredores gelados, como avisos sussurrados. Não havia como escapar do que estava por vir.
Para o bem ou para o mal, as horas estavam avançando. Cerrei os olhos diante do pensamento, sabendo que logo o dia seria dividido em dois, criando para sempre o antes e o depois da minha vida, o que deveria acontecer em um ato tão rápido que não haveria praticamente nada que eu pudesse fazer.
Empurrei-me para longe da janela, que estava embaçada pela minha própria respiração, e deixei as infinitas colinas de Morrighan com suas próprias preocupações. Estava na hora de encarar o dia.
As liturgias prescritas se passavam enquanto eram ordenadas, os rituais e ritos seguiam conforme cada um deles havia sido precisamente estabelecido, tudo um testemunho à grandeza de Morrighan e dos Remanescentes, seu local de origem. Não protestei. A essa altura, eu havia sido tomada pelo entorpecimento, mas então o meio-dia se aproximava, e meu coração galopava uma vez mais enquanto eu encarava o último dos degraus que separavam o aqui do lá.
Eu estava ali, deitada, nua, com a face voltada para baixo em uma mesa de pedra dura, com os olhos focados no piso abaixo de mim enquanto estranhos raspavam as minhas costas com facas cegas. Permaneci perfeitamente imóvel, embora soubesse que as facas que roçavam minha pele estavam sendo manejadas por mãos cautelosas. Os portadores das facas estavam bastante cientes de que a vida deles dependia de suas habilidades. A perfeita imobilidade ajudava-me a esconder a humilhação de minha nudez enquanto mãos de estranhos me tocavam.
Pauline estava sentada ali perto, observando, provavelmente com os olhos cheios de preocupação. Eu não podia vê-la, com apenas o chão de ardósia sob mim e meus longos cabelos escuros caindo em volta de minha face em um rodopiante túnel preto que bloqueava o mundo lá fora, exceto pelo raspar rítmico das lâminas.
A última faca foi mais abaixo, raspando a tenra parte côncava de minhas costas, logo acima de minhas nádegas, e lutei contra o instinto de puxá-la para longe, mas, por fim, me encolhi. Um ofego coletivo se espalhou pela sala.
“Fique parada!”, disse minha tia Cloris em tom de reprovação.
Senti a mão da minha mãe em minha cabeça, acariciando com gentileza meus cabelos.
“Mais alguns versos, Arabella. Nada além disso.”
Embora ela tivesse dito isso tentando me confortar, fiquei enfurecida com o nome formal que minha mãe insistia em usar, o nome de segunda mão que havia pertencido a tantas outras antes de mim. Eu gostaria que pelo menos neste último dia em Morrighan, ela jogasse a formalidade de lado e usasse o nome que eu preferia, o apelido carinhoso que meus irmãos me deram, encurtando um dos meus muitos nomes para apenas as últimas três letras: Lia.
Uma alcunha simples que eu sentia como sendo mais verdadeira em relação a quem sou.
A raspagem das facas cessou. “Está terminado”, declarou o Primeiro Artesão. Os outros artesãos murmuraram em assentimento.
Ouvi uma bandeja sendo ruidosamente colocada em cima da mesa ao meu lado e inalei o aroma de óleo de rosas, impossível de resistir. Pessoas arrastavam os pés ao meu redor para formar um círculo — minhas tias, minha mãe, Pauline, além de outras que haviam sido convocadas para testemunharem o ofício —, e preces murmuradas começaram a ser entoadas. Fiquei olhando enquanto o robe preto do sacerdote passava roçando por mim e sua voz erguia-se acima das outras, enquanto ele borrifava óleo quente nas minhas costas.
Esfregavam o óleo com seus dedos experientes, selando as incontáveis tradições da Casa de Morrighan, aprofundando as promessas escritas nas minhas costas, proclamando os compromissos de hoje e garantindo a todos seus amanhãs.
Eles podem manter as esperanças, pensei com amargura enquanto minha mente saltava fora de sincronia, tentando manter a ordem em relação às tarefas que logo teria diante de mim — aquelas escritas apenas no meu coração e não em uma folha de papel. Mal ouvi o discurso formal do sacerdote, uma ladainha em forma de cântico que falava de todas as necessidades deles e de nenhuma das minhas.
Eu só tinha dezessete anos. Não tinha o direito de nutrir meus próprios sonhos para o futuro?
“E para Arabella Celestine Idris Jezelia, Primeira Filha da Casa de Morrighan, os frutos do seu sacrifício e as bênçãos de...”
Ele continuava com a ladainha sem parar, as infinitas bênçãos e os intermináveis sacramentos requeridos, erguendo a voz e enchendo a sala, e então, quando achei que não poderia mais suportar, por um misericordioso e doce instante, ele parou. O silêncio ressoava nos meus ouvidos. Respirei mais uma vez, e então a bênção final foi concedida.
“Porque os Reinos ergueram-se das cinzas dos homens e estão construídos sobre os ossos daqueles que foram perdidos, e para lá haveremos de retornar se o Céu assim desejar.” Ele ergueu meu queixo com uma das mãos e, com o polegar da outra mão, borrou minha testa com cinzas.
“Então assim haverá de ser para a Primeira Filha da Casa de Morrighan”, finalizou minha mãe, pois assim ditava a tradição, e limpou as cinzas da minha testa com um pano embebido em óleo.
Fechei os olhos e abaixei a cabeça. Primeira Filha. Tanto uma bênção quanto uma maldição. E, se a verdade fosse conhecida, uma farsa.
Minha mãe colocou a mão em mim mais uma vez, a palma descansando sobre o meu ombro. Minha pele era aguilhoada com seu toque. Seu conforto veio tarde demais. O sacerdote ofereceu uma última prece na língua nativa de minha mãe, uma prece de proteção que, estranhamente, não seguia a tradição, e então ela tirou a mão de mim.
Mais óleo foi vertido, e uma baixa cantilena assombrosa de preces ecoava pela fria câmara de pedra, com o aroma de rosas pesando no ar e nos meus pulmões. Inspirei fundo. Sem querer, eu me deleitei com essa parte, com os óleos quentes e as mãos cálidas que transformavam submissão em laços. Laços que foram se formando e aumentando em mim durante várias semanas. A calidez aveludada aliviava a pontada ácida do limão misturado com a tintura, e, por um instante, fui varrida para longe pela fragrância floral, para um jardim oculto de verão onde ninguém seria capaz de me encontrar. Se apenas fosse assim tão fácil...
Mais uma vez, esta etapa foi declarada como finalizada, e os artesãos deram um passo para trás, afastando-se de sua obra. Seguiu-se uma audível tomada de fôlego enquanto os resultados finais nas minhas costas eram visualizados.
Ouvi alguém arrastando os pés para chegar mais perto de mim. “Atrevo-me a dizer que ele não vai ficar olhando para as costas dela com o restante da moça à sua disposição.” Risadinhas espalharam-se pela sala. Minha tia Bernette nunca foi das que seguram a língua, nem mesmo com um sacerdote presente e os protocolos em jogo. Meu pai dizia que herdei minha língua impulsiva dela, embora hoje eu tivesse sido avisada para controlá-la.
Pauline pegou-me pelo braço e me ajudou a levantar. “Vossa Alteza”, disse ela enquanto me entregava um lençol macio para que eu me cobrisse, poupando o pouco de dignidade que ainda me restava. Trocamos um rápido e deliberado olhar, que me reconfortou imensamente, e, em seguida, ela me guiou até o espelho de corpo inteiro, dando-me também um espelho de mão prateado para que eu também pudesse ver os resultados. Coloquei meus longos cabelos para o lado e deixei o lençol cair, de modo a expor a parte inferior das minhas costas.
Os outros ficaram esperando em silêncio pela minha resposta. Resisti à vontade de inspirar. Eu não daria essa satisfação à minha mãe, mas meu kavah de casamento era lindíssimo. Realmente me deixou pasma. O feio brasão de armas do Reino de Dalbreck havia sido feito de um jeito surpreendentemente belo, o leão rosnando domado em minhas costas, os intricados desenhos graciosamente circundando suas garras, as vinhas serpenteantes de Morrighan em fios entrelaçados, entrando e saindo, com harmoniosa elegância, escorrendo em um V que descia pelas minhas costas, até as últimas e delicadas gavinhas que se prendiam e desciam em espiral pelo leve afundamento na parte inferior da minha coluna. O leão tinha honra e, ainda assim, estava subjugado.
Minha garganta apertou, e meus olhos arderam. Tratava-se de um kavah que eu poderia ter amado... que poderia ter me orgulhado de portar em meu corpo. Engoli em seco e imaginei o Príncipe pasmo, boquiaberto, quando os votos estivessem completos e o manto de casamento fosse abaixado. Aquele sapo lascivo. Mas concedi aos artesãos o que lhes era devido.
“Está perfeito. Agradeço a vocês pelo trabalho e não tenho dúvida de que o Reino de Dalbreck haverá, deste dia em diante, de ter os artesãos de Morrighan na mais alta estima.”
Minha mãe sorriu com meu esforço, sabendo que, vindas de mim, estas poucas palavras saíram a duras penas.
E, com isso, todo mundo foi conduzido para fora dali, com as preparações remanescentes a serem partilhadas apenas com os meus pais e Pauline, que me auxiliaria. Minha mãe trouxe a roupa de baixo de seda branca do guarda-roupa, um mero suspiro de tecido, tão fino e fluido que parecia desfazer-se em seus braços. Para mim, tratava-se de uma formalidade vazia, pois a vestimenta cobria muito pouco, sendo tão transparente e útil quanto as infindas camadas de tradição. O vestido veio em seguida, cujas costas tinham o mesmo V das minhas, emoldurando o kavah que honrava o Reino do Príncipe e exibindo a adesão de sua nova noiva.
Minha mãe apertou os cadarços na estrutura oculta do vestido, puxando-os com tanta força que o corpete pareceu aderir-se sem esforço nenhum à minha cintura, mesmo que não houvesse tecido cobrindo minhas costas. Era um feito de engenharia tão notável quanto a grande ponte de Golgata, talvez ainda mais, e eu me perguntei se as costureiras haviam lançado um pouco de magia no tecido e nos fios. Era melhor pensar nesses detalhes do que no que traria a próxima hora. Minha mãe virou-se cerimoniosamente para encarar o espelho.
Apesar do meu ressentimento, eu estava hipnotizada. Era realmente o vestido mais bonito que eu já tinha visto na vida. Excepcionalmente elegante, sendo a renda Quiassé dos rendeiros locais o único adorno em volta do baixo decote. Simplicidade. A renda fluía em um V, descendo pelo corpete do vestido de modo a espelhar o corte nas costas. Eu parecia uma outra pessoa nele, mais velha e sábia. Alguém com um coração puro que não continha segredo algum.
Alguém... que não era como eu.
Afastei-me, caminhando sem tecer comentário, e fiquei olhando pela janela, com o suspiro baixinho da minha mãe acompanhando-me aos calcanhares. Ao longe, bem ao longe, eu via o solitário pináculo vermelho de Golgata, sendo sua única ruína decadente tudo que sobrara da outrora gigantesca ponte, que se estirava sobre a vasta enseada. Logo, ela também não haveria mais de existir, seria totalmente engolida, como acontecera com o restante daquela imensa construção. Até mesmo a misteriosa magia da engenharia dos Antigos não conseguia desafiar o inevitável. Por que eu deveria tentar?
Senti meu estômago se revirar e voltei meu olhar contemplativo mais para perto da base da colina, onde carroças movimentavam-se pesadamente na estrada bem lá ao longe, embaixo da cidadela, seguindo em direção à praça da cidade, talvez carregadas de frutas, ou flores, ou pequenos barris de vinho dos vinhedos de Morrighan. Belas carruagens puxadas por corcéis igualmente belos adornados com fitas também pontilhavam a via.
Talvez meu irmão mais velho, Walther, e sua jovem noiva, Greta, estivessem sentados em uma daquelas carruagens, com os dedos entrelaçados, a caminho do meu casamento, mal conseguindo desgrudar os olhos um do outro. E provavelmente meus outros irmãos já estavam na praça, lançando sorrisos para jovens meninas que os atraíam. Lembrei-me de ter visto Regan, com olhos sonhadores, falando aos sussurros com a filha do cocheiro há poucos dias em um corredor escuro, e Bryn flertando com uma nova menina a cada semana, incapaz de se fixar em apenas uma. Três irmãos mais velhos que eu adorava, todos livres para amarem e casarem-se com quem escolhessem. E as meninas também eram livres para escolher. Todo mundo era livre, inclusive Pauline, que tinha um namorado que voltaria para ela no final do mês.
“Como foi que a senhora conseguiu, mãe?”, perguntei-lhe, ainda com o olhar fixo nas carruagens que estavam de passagem lá embaixo. “Como foi que viajou todo o caminho de Gastineux até aqui para casar-se com um sapo que a senhora não amava?”
“Seu pai não é um sapo”, respondeu ela em um tom austero.
Girei-me para ficar cara a cara com ela. “Um rei, talvez, mas um sapo mesmo assim. Você está querendo me dizer que, quando se casou com um estranho que tinha o dobro da sua idade, a senhora não pensou nele como sendo um sapo?”
Os olhos cinzentos de minha mãe repousaram com calma em mim. “Não, não pensei. Era o meu destino e o meu dever.”
Um suspiro de cansaço irrompeu do meu peito. “Porque a senhora era uma Primeira Filha.”
Minha mãe sempre esquivava-se com esperteza do assunto da Primeira Filha. Hoje, no entanto, com apenas nós duas presentes e sem nenhuma outra distração, ela não tinha como desviar. Vi que ela ficou rígida, seu queixo erguendo-se como o de um bom membro da realeza. “É uma honra, Arabella.”
“Mas eu não tenho o dom da Primeira Filha. Não sou uma Siarrah. Dalbreck logo vai descobrir que não sou a posse de valor que acreditam que eu seja. Esse casamento é uma farsa.”
“O dom pode vir a tempo”, ela respondeu com fraqueza.
Não discuti. Era sabido que a maioria das Primeiras Filhas tinha seus dons revelados por volta da época da primeira menstruação, o que já havia acontecido comigo havia quatro anos. Nenhum sinal de dom havia sido demonstrado em mim. Minha mãe agarrava-se a falsas esperanças. Virei-me, voltando a fitar o mundo afora.
“E mesmo que o dom não venha”, continuou minha mãe, “o casamento não é nenhuma farsa. Esta união é muito mais do que apenas uma posse de valor. A honra e o privilégio de ter uma Primeira Filha em uma linhagem real é um dom em si, que carrega história e tradição. Isso é tudo que importa.”
“Por que Primeira Filha? Como a senhora pode ter certeza de que o dom não é passado para um filho? Ou para uma Segunda Filha?”
“Isso já aconteceu, mas... não é o que se espera. E não é a tradição.”
E é tradição perder o dom também? Essas palavras não ditas pendiam como uma navalha afiada entre nós duas, mas nem mesmo eu seria capaz de machucar minha mãe com elas. Meu pai não a havia consultado em questões de Estado desde o início do casamento deles, mas eu ouvi as histórias de outrora, de quando o dom dela era forte e o que ela dizia fazia diferença. Isto é, se tudo fosse mesmo verdade. Eu não sabia mais ao certo.
Eu tinha pouca paciência para essas bobagens. Gostava das minhas palavras e do meu raciocínio simples e direto. E estava tão cansada de ouvir sobre a tradição que tinha certeza de que, se essa palavra fosse pronunciada em voz alta mais uma vez, minha cabeça explodiria. Minha mãe pertencia a outra época.
Ouvi ela se aproximando e senti seus braços cálidos circundando-me.
Minha garganta ficou inchada. “Minha preciosa filha”, sussurrou ela junto ao meu ouvido, “se o dom haverá de vir ou não, pouco importa. Não se preocupe com isso. Hoje é o dia do seu casamento.”
Com um sapo. Eu tinha visto de relance o Rei de Dalbreck quando ele veio preparar a minuta do contrato — como se eu fosse um cavalo sendo negociado para o filho dele. O Rei era tão decrépito e torto quanto os dedos dos pés artríticos de uma idosa, velho o bastante para ser pai do meu próprio pai.
Corcunda e lento, ele precisou de ajuda para subir os degraus até o Grande Salão. Mesmo que o Príncipe tivesse apenas uma fração da idade dele, seria um idiota degenerado e banguela. Só de pensar nele encostando em mim, e ainda...
Estremeci só de pensar em mãos velhas e ossudas acariciando minha bochecha, ou amargos lábios ressequidos encontrando-se com os meus.
Mantive meu olhar contemplativo fixo janela afora, mas nada vi além do vidro.
“Eu não poderia ao menos tê-lo inspecionado primeiro?”
Minha mãe, que me envolvia com os braços, deixou-os cair. “Inspecionar um príncipe? Nossa relação com Dalbreck já é tênue, na melhor das hipóteses.
Você queria que insultássemos o Reino deles no momento em que Morrighan está nutrindo a esperança de criar uma aliança crucial?”
“Eu não sou um soldado no exército do meu Pai.”
Minha mãe aproximou-se de mim, esfregou minha bochecha com a mão, e disse, em um sussurro: “Sim, minha querida. Você é”.
Senti um calafrio descendo pela espinha.
Ela me deu um último abraço apertado e recuou. “Está na hora. Vou buscar o manto de casamento no cofre”, falou ela, e partiu.
Cruzei o aposento até meu guarda-roupa e escancarei as portas, deslizando a gaveta inferior para fora e erguendo uma bolsinha de veludo verde que continha uma pequena adaga incrustada com joias. Aquele fora o presente dos meus irmãos no meu décimo sexto aniversário, presente que nunca tive permissão de usar — pelo menos, não abertamente —, mas a porta dos fundos dos meus aposentos tinha as marcas da minha prática secreta entalhadas.
Apanhei alguns pertences, embrulhei-os em uma camisola e prendi tudo com uma fita para que ficassem seguros.
Pauline voltou após se arrumar, e entreguei a ela a pequena trouxa.
“Vou cuidar disso”, disse Pauline, uma pilha de nervos com as preparações de última hora. Ela saiu da câmara no exato momento em que minha mãe voltava com o manto.
“Vai cuidar do quê?”, minha mãe perguntou.
“Dei a ela mais algumas coisas que quero levar comigo.”
“Os pertences de que você precisa foram enviados em baús ontem”, disse ela, enquanto cruzava o aposento em direção à minha cama.
“Eu me esqueci de alguns.”
Ela balançou a cabeça em negativa, lembrando-me de que havia pouco espaço na carruagem e que a jornada até Dalbreck era longa.
“Darei um jeito”, foi a minha resposta.
Ela colocou com cuidado o manto em cima da minha cama. A roupa tinha sido vaporizada e pendurada no cofre para que nenhuma dobra ou marca maculasse sua beleza. Passei a mão ao longo do curto tecido suave, felpudo e aveludado. O azul era tão escuro quanto a meia-noite, e todos os rubis, todas as turmalinas e safiras circundando suas bordas eram como estrelas no céu noturno. As jóias se provariam úteis. Ditava a tradição que o manto deveria ser colocado nos ombros da noiva tanto por seu pai quanto por sua mãe, e ainda assim minha mãe havia voltado sozinha.
“Onde está...?”, comecei a perguntar, mas então ouvi um exército de passadas ecoando no corredor. Meu coração afundou ainda mais. Ele não estava vindo sozinho nem mesmo para isso. Meu pai entrou nos meus aposentos flanqueado pelo lorde Vice-Regente de um lado, pelo Chanceler e pelo Erudito Real do outro e diversos subordinados de seu gabinete logo atrás.
Eu sabia que o Vice-Regente estava apenas fazendo seu trabalho, pois ele havia me puxado para um lado pouco depois de os documentos terem sido assinados e me disse que apenas ele havia argumentado contra o casamento. Mas ele era, no fim das contas, um homem rígido no dever, tal como o restante deles. Eu desgostava especialmente do Erudito e do Chanceler, algo de que eles estavam muito cientes, mas eu sentia pouca culpa em relação a isso, visto que sabia que o sentimento era mútuo. Eu ficava com a pele arrepiada sempre que estava perto deles, como se tivesse acabado de caminhar por um campo cheio de vermes sugadores de sangue. Era bem provável que eles, mais do que ninguém, estivessem felizes em se livrar de mim.
Meu pai aproximou-se de mim, beijou minhas bochechas, e recuou um passo para me olhar, soltando, por fim, um suspiro vindo do coração.
“Você está tão bonita quanto sua mãe no dia do nosso casamento.”
Eu me perguntava se a incomum demonstração de afetividade era para aqueles que estavam presentes. Raramente vi um momento terno entre meus pais, mas então, por um breve segundo, vi os olhos dele passando de mim para minha mãe e permanecendo por um breve momento nela, que o fitou em resposta. O que estava se passando entre eles? Seria amor? Ou arrependimento pelo amor perdido e pelo que poderia ter sido? A incerteza em si preenchia um estranho vazio dentro de mim, e uma centena de perguntas vieram aos meus lábios, mas com o Chanceler, o Erudito e um séquito impaciente nos olhando, senti relutância em fazer qualquer uma daquelas perguntas. Talvez fosse essa a intenção do meu pai.
O Guardião do Tempo, um homem baixo e gordo com olhos esbugalhados, sacou seu sempre presente relógio de bolso. Ele e os outros conduziram meu pai pelos arredores como se fossem eles que regessem o Reino e não o contrário.
“Não temos muito tempo, Vossa Majestade”, disse ele, lembrando meu pai.
O Vice-Regente deu-me uma olhadela simpática, mas assentiu, concordando com o Guardião do Tempo. “Nós não queremos deixar a família real de Dalbreck esperando nesta grandiosa ocasião. Como o senhor bem sabe, Vossa Majestade, isso não seria bem recebido.”
O encanto e os olhares contemplativos chegaram ao fim. Minha mãe e meu pai ergueram o manto e colocaram-no em volta dos meus ombros, prendendo o fecho no meu pescoço. Então, meu pai ergueu o capuz e voltou a beijar minhas bochechas. No entanto, dessa vez, com muito mais reserva, apenas cumprindo o protocolo. “Neste dia, você serve bem ao Reino de Morrighan, Arabella.”
Lia.
Ele odiava o nome Jezelia porque não havia nenhuma antepassada minha chamada assim, não havia precedente de lugar algum, foi o que ele disse, mas minha mãe havia insistido sem dar nenhuma explicação. Neste ponto, ela permanecera inflexível. Fora provavelmente a última vez em que meu pai concedera aos desejos dela. Eu nunca teria ficado sabendo disso se não fosse minha tia Bernette, e até mesmo ela pisava em ovos em relação ao assunto, ainda um tema espinhoso entre os meus pais.
Procurei por algo no rosto dele. A efêmera ternura de apenas um instante atrás se fora, e seus pensamentos já se haviam voltado para as questões de Estado, mas mantive meu olhar contemplativo, nutrindo a esperança de obter mais. Nada. Ergui o queixo, ficando mais alta. “Sim, eu de fato sirvo bem ao Reino, exatamente como deveria fazê-lo, Vossa Majestade. Afinal de contas, sou um soldado do seu exército.”
Ele franziu o rosto e olhou com ares inquisitivos para minha mãe, que balançou a cabeça de leve, dispensando o assunto em silêncio. Meu pai — Rei em primeiro lugar, e pai em segundo — ficara satisfeito em ignorar meu comentário, porque, como sempre, outras questões eram de fato mais prementes. Ele se virou e saiu andando junto com seu séquito, dizendo que me encontraria na abadia, com seu dever em relação a mim agora realizado.
Dever. Outra palavra que eu odiava tanto quanto tradição.
“Você está pronta?”, perguntou minha mãe quando os outros saíram do aposento.
Assenti. “Mas tenho que resolver uma questão pessoal antes de partirmos.
Encontrarei a senhora no salão inferior.”
“Eu posso...”
“Por favor, mãe...” Minha voz falhou pela primeira vez. “Eu só preciso de uns poucos minutos.”
Minha mãe demonstrou compaixão e ouvi o eco solitário de seus passos enquanto ela se retirava, descendo o corredor.
“Pauline?”, sussurrei, dando uns tapas fortes em minhas bochechas.
Pauline entrou no meu quarto pelo vestíbulo. Nossos olhares se cruzaram, sem necessidade de palavras, entendendo claramente o que havia à nossa frente, cada detalhe do dia já destrinchado numa longa noite em claro.
“Ainda dá tempo de mudar de ideia. Você tem certeza do que quer fazer?”, perguntou Pauline, concedendo-me uma última chance de voltar atrás.
Certeza? Meu peito estava esmagado com a dor, uma dor tão profunda e real que me levou a imaginar se corações eram literalmente capazes de se partir. Ou seria o medo me perfurando? Pressionei meu peito com a mão, tentando aliviar a pontada que sentia ali. Talvez fosse este o ponto em que seria impossível retornar. “Não há volta. A escolha foi feita por mim”, respondi.
“Deste momento em diante, para o bem ou para o mal, este é o destino com que terei de viver.”
“Rezo que seja para o bem, minha amiga”, disse Pauline, assentindo para indicar que compreendia minha situação. E, com isso, nós nos apressamos a seguir pelo corredor arqueado e vazio em direção aos fundos da cidadela, descendo depois pela escadaria dos criados. Não passamos por ninguém, pois todo mundo ou estava ocupado com as preparações na abadia, ou à espera na frente da cidadela pela procissão real em direção à praça.
Saímos por uma pequena porta de madeira com grossas dobradiças pretas e nos deparamos com a ofuscante luz solar, o vento chicoteando nossos vestidos e jogando meu capuz para trás. Avistei o portão dos fundos da fortaleza, usado somente para caças e saídas às escondidas, já deixado aberto, conforme foi ordenado. Pauline conduziu-me por um chiqueiro lamacento até o sombrio muro escondido da estalagem das carruagens, onde um cuidador de cavalos de olhos arregalados com dois animais selados estavam à nossa espera. Quando me aproximei, seus olhos ficaram ainda maiores, por mais impossível que isso parecesse. “Vossa Alteza, a senhora deve pegar uma carruagem que já está preparada”, disse ele, engasgando nas palavras enquanto elas saíam aos tropeços de sua boca. “A carruagem está à sua espera perto dos degraus frontais da cidadela. Se a senhora...”
“Os planos mudaram”, falei com firmeza, enquanto pegava punhados do meu vestido, erguendo-os para que pudesse pisar com segurança no estribo. O menino de cabelos loiros e bagunçados ficou boquiaberto enquanto olhava mais uma vez para o meu antes imaculado vestido com a bainha já embebida em lama que agora manchava também as mangas, o corpete de renda e, pior, o manto de casamento incrustrado de joias de Morrighan.
“Mas...”
“Ande logo! Me ajude!”, falei, irritada, tomando as rédeas das mãos dele. O rapaz obedeceu, ajudando Pauline também.
“O que devo dizer...?”
Não ouvi mais o que ele falou, com os cascos dos cavalos em galope dispersando todos os argumentos do passado e do presente. Com Pauline ao meu lado, em um ato rápido que nunca poderia ser desfeito — ato este que punha fim a mil sonhos, mas dava à luz um desejo —, saí em disparada, buscando a cobertura da floresta, sem, em momento algum, olhar para trás.

 Com Pauline ao meu lado, em um ato rápido que nunca poderia ser desfeito — ato este que punha fim a mil sonhos, mas dava à luz um desejo —, saí em disparada, buscando a cobertura da floresta, sem, em momento algum, olhar para trás

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J menos que recontemos a história, os relatos serão passados de pai para filho, de mãe para filha, pois, sem apenas uma geração que seja, história e verdade ficariam perdidas para sempre.
—Livro dos Textos Sagrados de Morrighan, vol. III —

Crônicas de amor e ódio- Trilogia (Livro I)Where stories live. Discover now