Meia noite eterna

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O meu pai gostava de contar sobre como era viver antes da noite eterna. Eu já tinha nascido quando aconteceu, mas ainda garotinho, não lembro bem daqueles dias. Naquele tempo, os problemas das pessoas eram diferentes dos problemas que temos hoje. Trabalhar, ganhar dinheiro, pagar impostos, contas, seguro, material escolar, trocar de carro... Olhando para trás, é como se fosse um sonho distante, e a realidade agora, a vida como ela é mesmo, um pesadelo. Hoje, nós temos que matar para sobreviver ou render-se e morrer de fome. Eu sequer consigo lembrar da cor do sol, da cor do céu durante o dia.

Quando o sol se pôs pela última vez, tudo mudou. As primeiras notícias vieram da Ásia. Noite eterna, foi como o fenômeno ficou conhecido. Basicamente, no dia 02 de dezembro de 2019, não amanheceu no Oriente. As pessoas acordaram pela manhã e ainda era noite. A internet parou de funcionar. Aliás, tudo parou de funcionar. O pior foi o que aconteceu pouco antes das comunicações cessarem, como um prenúncio do Apocalipse no melhor estilo bíblico. Primeiro os aviões que estavam em voo caíram. Peças de dominós desmoronando. Quando tudo indicava que mais nenhum castigo desceria dos céus, veio a chuva de satélites; toneladas de aço e metais desconhecidos riscando a atmosfera e caindo; alguns carregavam ogivas nucleares... Tão logo o Ocidente obteve informações da situação no outro lado do planeta, o caos começou. Saques, homicídios, depredações, aeroportos fechados, estradas interditadas, pessoas nas ruas, pisoteadas, gritando, esbarrando-se, correndo com os filhos nos braços. O desespero despertou o verdadeiro lado humano, aquele bem desprezível. Afinal, o que você faria se tivesse a certeza da ausência do amanhã? Se tudo aquilo pelo que você acredita e vive, simplesmente não importasse mais? Nenhuma responsabilidade mais? Nenhuma sanção? Nenhuma punição? Nenhum boleto? A população não sabia o que fazer com as últimas horas de sol, ou melhor, até sabia, até previsível inclusive; todos sabemos o que um ser humano encurralado e assustado é capaz de fazer.

Anoiteceu no Ocidente e muito esperou-se do dia seguinte. Cientistas, políticos, religiosos, intelectuais, artistas, cartomantes, astrólogos, charlatões. Todos discutiam e argumentavam sobre os acontecimentos, cada um com suas justificativas, cada qual com suas explicações. O Oriente estava incomunicável. Sobraram a especulação e o oportunismo.

O dia novo veio mas não o sol. Como era esperado e não menos temido, o dia não amanheceu, os aparelhos pararam de funcionar; também tivemos nossa chuva de aviões e satélites; as pessoas continuaram enlouquecendo e muita gente morreu. Muita gente se matou. Muita gente matou uns aos outros. Nem mesmo um simples relógio funcionou a partir de então. O mundo mudara do dia pra noite. Todo o conhecimento humano acumulado em milênios não significava mais nada, surgia uma nova ordem e ninguém fazia ideia de quem ouvir, seguir, instruir-se; como sobreviver. As pessoas perderam a noção de tempo, de espaço, das coisas, de certo e errado, de moral... De humanidade.

Quinze longos anos de escuridão se passaram. A população mundial reduziu drasticamente. Uma catástrofe maior que todas as doenças reunidas, todos os terremotos, todos os tsunamis, todas as guerras, somadas suas vítimas. Casas e cidades inteiras abandonadas, só não foram tomadas pelo mato, pois não havia sol para desenvolver as plantas. Porém, novas plantas surgiram e a Natureza continuou cumprindo seu papel.

Faz um ano que meu pai se foi. Minha mãe morreu durante o parto. Sempre me senti culpado... De que adianta vir ao mundo sem uma mãe para lhe dar proteção e amor incondicional? Meu pai se esforçou como podia, preparou-me e treinou-me pra esse novo mundo que ele também sofria para entender e viver. Sou dono de um boteco, centenário, às margens do porto da cidade, uma herança de família. Marinheiros, viajantes, criminosos e lunáticos, todos passavam por ali de tempos em tempos.

Você deve tá se perguntando, "como esse cara sabe disso tudo se as comunicações entre os países foram perdidas?", bom, morei minha vida inteira no porto, convivendo com os mais diversos viajantes. A noite pertence aos loucos, sendo ela eterna, somente os definitivamente muito loucos se aventuravam, trocavam informações, inventavam mentiras, aumentavam verdades, falavam e faziam atrocidades...

Meia noite eternaWhere stories live. Discover now