46. Terra Prometida

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— Isso mesmo, fique comigo. Pryia, cadê a droga da água?

Alguém sustenta meu pescoço, e, de repente, a salvação. Uma sensação gelada, líquido escorrendo: água enche minha boca, minha garganta, escorre pelo meu queixo, remove a poeira, o gosto de fogo. Primeiro eu tusso, engasgo, quase choro. Depois sorvo, engulo e sugo, enquanto a mão permanece sob meu pescoço e a voz não para de sussurrar palavras de encorajamento:

— Isso mesmo. Tome o quanto precisar. Você está bem. Está tudo bem agora.

Cabelos pretos e soltos, uma tenda a meu redor: uma mulher. Não, uma garota; uma garota de boca fina e tensa, com rugas nos cantos dos olhos e mãos ásperas como o tronco de um salgueiro e grandes como cestas. Eu penso: Obrigada. Eu penso: Mãe.

— Você está segura. Está tudo bem. Você está bem.

É assim que os bebês nascem, afinal: aninhados nos braços de alguém, sugando, indefesos.

Depois disso, a febre me domina de novo. Meus momentos de vigília são poucos, e minhas impressões, desconexas. Mais mãos e mais vozes; sou erguida; um caleidoscópio de verde acima de mim e desenhos fractais no céu.

Mais tarde sinto cheiro de fogueira e uma coisa fria e úmida ser pressionada em minha pele, há fumaça e vozes sussurradas, e uma dor lancinante na lateral do corpo, depois gelo, alívio. Uma maciez deslizando pelas pernas.

No meio disso tudo tenho sonhos, não me lembro de algum dia ter sonhos, sei o que são, mas nunca tive. Lembro que alguém me disse uma vez que sonhos são a janela da alma. Também não me lembro de almas. Os sonhos são cheios de explosões e violência: sonhos de pele derretendo e esqueletos queimados até virarem fragmentos pretos.

Quase todas as vezes que acordo ela está lá, a garota de cabelo preto, me mandando beber água ou pressionando uma toalha fria em minha testa. Suas mãos cheiram a fumaça e cedro.

E por baixo de tudo, por baixo do ritmo do despertar e dormir, da febre e dos calafrios, está a palavra que ela repete sem parar, fazendo-a penetrar em meus sonhos, afastar parte da escuridão que lá existe, puxar-me quando estou me afogando: Segura. Segura. Segura. Você está segura agora.

A febre enfim cede, depois de não sei quanto tempo, e acabo recuperando a consciência, agarrando-me a essa palavra, uma viagem de volta delicada e suave, como se fosse levada por uma única onda até a praia.

Antes mesmo de abrir os olhos, ouço pratos batendo e o murmúrio de vozes, sinto o cheiro de fritura. Meu primeiro pensamento é de que, de algum jeito, estou em casa, a diferença é que não tenho casa, não tenho família.

Um nome me vem com violência, abro os olhos de súbito e tento me sentar. Jordan. Quem é Jordan? Mas meu corpo não me obedece. Só consigo erguer a cabeça; parece que estou presa sob um bloco de pedra.

A garota de cabelo preto, que deve ter me encontrado e me trazido até aqui, seja lá que lugar for este, está de pé no canto, junto a uma pia grande de pedra. Ela se vira rapidamente quando me ouve me mexendo na cama.

— Calma — Diz ela, tirando as mãos da pia.

Seus braços estão molhados até os cotovelos. Seu rosto é astuto, extremamente alerta, como o de um animal. Seus dentes são grandes, o que faz sua boca ser grande também, e consequentemente, seu sorriso. Ela cruza o aposento e se agacha ao lado da cama.

— Você passou o dia inteiro inconsciente.

— Onde estou? — Pergunto com um gemido. Minha voz está rouca, percebo que não sei como é minha voz, se realmente é assim.

Flor da meia-noiteWhere stories live. Discover now