POV Guilherme

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Flávia não retornou nenhuma de suas mensagens. Também não estava mais trabalhando na cafeteria. Talvez estivesse de férias - ele não saberia dizer. Ficou um dia inteiro esperando encontrar a garota naquele estabelecimento mas ela não apareceu, e não era como se ele tivesse repetido o feito por toda a semana.

Ele também não voltou a pisar lá, não tinha mais motivos. Não enquanto ela continuasse sumida.

Sentia a falta de Flávia em cada segundo. Ela era como um sol em sua vida: sempre presente seja nos comichões, seja nas cantadas, seja nas mensagens. E agora ele tinha literalmente nada.

Ocupou-se no meio tempo com a mudança. Foi desgastante enfrentar os disparates da mãe mas agora era um homem livre. Não revelou seu novo endereço em nenhum momento. Somente acenou ao pai que eles continuariam se encontrando no clube de tênis e, caso precisasse, sempre estaria a uma ligação ou mensagem de distância.

As tintas e todo o material que compraram juntos ainda estavam no mesmo local. Assim como a mancha suja no tapete. A quantidade de horas que ele encarou aquele ponto do apartamento era, no mínimo, absurda.

No horário de almoço na sexta-feira, Guilherme se trancou em seu escritório. Não aguentava mais o olhar de preocupação de seus funcionários nem as perguntas aguçadas de Joana. E foi em meio aos copos que testemunharam a história deles que ele sentiu a pele coçar novamente. Era ela.

'Once the last drop of rain has dried off the pavement
Shouldn't I find a stain, but I never do'

Flávia estava lhe dedicando uma música como fez na primeira vez que foi apresentada ao altarzinho - como ela nomeou a pequena exposição de copos. Guilherme desconhecia aquela música. Será uma nova?

'But like the dollar in your pocket, it's been spent and traded in
You can't change where it's been
Reminds me of me'

Os escritos continuavam e Guilherme precisou se livrar de toda vestimenta e se posicionar na frente do espelho. Seu celular notificou uma nova transmissão no canal da pink. Tinha ativado qualquer conta dela ou sobre ela em todas as plataformas que encontrou.

Lá estava Flávia, tão linda como sempre. Caracterizada como pink, um top e um short de lycra curto e toda a extensão de pele para usar como quadro enquanto a música nova tocava. A transmissão já estava lotada mas Guilherme sabia que aquilo era para ele.

'The best and worst day of June
Was the one that I met you'

Ela parecia chorosa, não mais em prantos, contudo foi o suficiente para quebrar Guilherme. Queria tanto parar de machucá-la.

'And I lived, and I learned'

Ela retirou a peruca cor de rosa. Ali não era sobre a pink e também não era um momento para se esconder.

'Had you, got burned
Held out, and held on
God knows, too long'

Uma montagem de fotos foi apresentada e a Flávia que ainda estava preenchendo o mural deu lugar a uma de corpo já tomado. Mas aquelas não eram suas frases nem sua letra. Era a dele.

'And wasted time, lost tears
Swore that I'd get out of here'

O público em geral não podia ver que ela continuava a escrever mas Guilherme sabia pois sua pele não parava de coçar. O vídeo dava ênfase em câmera lenta em cada pedaço do corpo dela e Guilherme acompanhou paralisado.

'And found out what it was to turn around
And see, that we
Were never really meant to be'

O rosto dela estava inchado, o nariz e os olhos vermelhos de tanto chorar. Guilherme seguia a música e sentia seu coração quebrar em pedaços, queria vomitar.

'So I lied, and I cried
And I watched a part of myself die'

A transmissão voltou a mostrá-la. Seus braços estavam preenchidos e ela terminava de fechar o torso. Guilherme tremeu ao focar em seus olhos, estavam resolutos.

''Cause no amount of freedom gets you clean
I've still got you all over me'

Alguém da área técnica conseguiu fazer um paralelo entre os dois momentos. Ela coberta pela própria mão e pela mão dele. Por fim, as imagens se fundiram.

'I've still got you all over me'

Flávia pegou um pincel do mesmo jeito que havia feito há quase uma semana atrás em seu apartamento e o dirigiu até o seu rosto.

'Still got you all over me'

O último verso foi lançado em forma de coração na exata bochecha que selou os destinos deles. Quão poético.

A transmissão foi encerrada e ele observou as pessoas reclamando no chat pois a equipe não a deixou lá gravada em nenhum canal. Ele olhou para si. O que tantos almejavam estava cravado em sua pele: a despedida dela.

Chorou sozinho até depois dos dizeres desaparecerem.

Era tarde quando conseguiu reunir forças para sair da clínica. Era mais tarde ainda quando chegou em frente ao seu prédio.

Uma figura o aguardava parada roendo as unhas. Guilherme se segurou para conter a vontade de abraçá-la e nunca mais largar. Ele não tinha mais esse direito.

- Parabéns por mais um sucesso.

A produtora dela tinha liberado a música e ela tinha bombado em todas as plataformas. Ele não entendia nada dessa área porém sabia que foi uma excelente resposta para quem estava retornando ao ramo.

- Você não se incomodou?

Ela mordia o lábio nervosa.

- Do quê? De todos lerem minha confissão? Acho que estava mais do que na hora de escancarar a verdade. Passei tanto tempo me escondendo, te escondendo.

Ela ficou alguns minutos encarando o chão. Guilherme também não conseguia sair dali. Logo que Flávia começou a abrir a boca, ele se preparou: seria agora a sentença de adeus.

- Você toparia fazer terapia comigo?

Ele ouviu certo?

- O quê?

- Terapia, como casal.

- Você ainda quer ser um casal comigo?

Ele não conseguiu se segurar. Flávia começou a gesticular agitada.

- Eu me sinto segura com você, com o Guilherme. Hoje, sabendo que é você no lado oposto da linha, sei que vai me responder. Sei que podemos construir novas lembranças em cima do passado, só gostaria de saber como deixar aquela dor para trás.

Guilherme a alcançou e agarrou suas mãos.

- Foi o que você tentou fazer com essa nova música, certo? Fla, eu faço tudo o que você me pedir para te ajudar a se curar.

Ela soltou um de suas mãos de seu aperto e a deslizou delicadamente sobre o coração dele.

- Mas você também está machucado, não é mesmo? Eu pude sentir nas suas palavras que o medo e a culpa te corroem há anos.

Ele sentiu suas mãos começarem a tremer fora de controle. Ela ficou na ponta dos pés e esfregou o nariz no dele carinhosamente.

- Eu também te escolhi e te quis muito além de uma conexão cósmica. Bom, há quem discorde e diga que tudo isso faz parte da conexão cósmica.

Ele deu o sorriso que ela lutou tanto para desenterrar meses atrás.

- Bom karma?

Eles se aproximaram e suas respirações se misturaram.

- Mas eu nem plantei aquela mudinha.

- Alguém deve ter plantado.

Guilherme podia jurar que os postes de luz da rua explodiram num festival de cores assim que seus lábios finalmente se encontraram segundos antes de fechar os olhos e se perder nela.

You All Over Me - FlaguiWhere stories live. Discover now