Tabua - Romance Brasileiro - Capítulo I

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 Capítulo 1 - Lajedo das amarguras

– Oh Guina, traz a jaca-de-pobre pra dentro que o menino tá com fome! – meio-dia gritou minha mãe, Dona Letide.

Esse foi o tipo de frase que regeu a minha paupérrima infância em Lagedo do Tabocal, distrito de Maracás, a trezentos e cinquenta quilômetros da capital, lugar perdido na poeira do Centro-Sul da Bahia. Em 1981, aos meus nove anos de idade, não sei precisar quantas foram as vezes em que ouvi essa mesma resignada súplica, vinda da boca também faminta da minha sofrida mãe. A cada raiar do sol escaldante da nossa terra, a voz forte do locutor da Rádio Sociedade da Bahia pregava insistentemente uma tal de esperança que nunca conseguimos encontrar. Muito pelo contrário, dia após dia nós nos víamos cada vez mais à beira do abismo, a poucos passos de definharmos de fome. Aquela dor fina no estômago foi o que realmente marcou a minha mais tenra juventude, igualmente cheia de amargura, abandono e desespero.

O meu nome é Aguinaldo da Silva Santos, vulgo Guina. Tenho trinta e três anos, e sou um típico caboclo brasileiro, filho de mãe índia e pai branco. Essa é a minha saga, e porque não dizer, a saga de um retirante nordestino que graças a um golpe do acaso conseguiu se instruir, logo, prevalecer, pelo menos até o dia em que Deus quis. Hoje, com a cabeça apoiada no colo de um anjo em forma de mulher, relembro-me da minha história, em outras palavras, fatos memoráveis de um proveniente de locações esquecidas e judiadas, mais um dos incontáveis lugarejos pobres desse meu imenso e injusto Brasil, longe de ser varonil.

Lagedo do Tabocal, a minha terra mater, recebera esse nome, primeiro, porque é evidente no seu centro um enorme e maciço lajedo, cujo cume pode ser facilmente avistado de qualquer ponto da sua praça principal. O resto do nome, reza a lenda, se deve ao fato de que ali naquele mesmo local tenha vivido uma aldeia de aguerridos índios, provavelmente ancestrais de minha mãe, chamados de Mongoiós, cujas lanças e flechas eram feitas da madeira dos vastos bambuzais, ou “tabocais”, cultivados nas imediações do lajedo. Por isso, quando o primeiro branco lá chegou, possivelmente da mesma dinastia do Seu Mourinho, um dos mais ilustres usurpadores das redondezas, batizou o lugar de Lajedo dos Tabocais, que depois, em tempo modernos, modificou-se para Lagedo do Tabocal. E esse nome assim estagnou, bem como o desenvolvimento do distrito, que até hoje vive o mesmo deprimente e conhecido marasmo, eu não sei explicar por que cargas d’água.

Só sei explicar, e bem, que comi o pão que o diabo amassou por não ser rico, bem-nascido, ou pior, não parecer nem um pouquinho com os afortunados galãs das novelas de televisão. Este é o meu país, que não dá oportunidade a quem é como eu, moreno-escuro, nariz largo, cabelos ondulados, maltratado, e acima de tudo, detentor de um cruel e indisfarçável rótulo maldito largamente estampado na testa: zé-povinho. Contudo, o maior dos desgostos é saber que as terras tupiniquins são povoadas em sua maioria por gente como eu: negros, pardos, caboclos ou mulatos, reféns da velha “nata” dominadora – branca, ou pelo menos dita, branca.

Na manhã daquele dia, como em muitos outros, lembro que saí junto ao meu irmão mais novo, Lô, e fomos de badogues em punhos tentar arranjar algo para comer. Arremessamos todas as bolinhas de barro seco que havíamos preparado na tarde anterior, mas não obtivemos nenhum êxito. As lambus pareciam estar mais ariscas naquele execrável amanhecer. Voltamos para casa de mãos vazias, e igualmente vazias estavam as nossas duas únicas latas de farinha, ambas dispostas numa prateleira velha da nossa modesta cozinha. Se é que podíamos chamar aquilo de cozinha.

Minha mãe, já anestesiada pela mesma miséria vivida pelos seus ancestrais desde a chegada do homem branco ao nosso país, todas as vezes que se deparava com aquele rotineiro e infeliz estado de mais completa privação, não hesitava em conformada recorrer para o que parecia sempre ser a nossa última cartada.

Tabua - Romance Brasileiro - 2º Edição.Where stories live. Discover now