O estranho casal do cemitério

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O escolhido, dependendo da natureza da história em que está envolvido, pode ser o príncipe que enfrenta dragões e tiranos para salvar uma princesa enclausurada no alto de uma torre; ou o camponês destinado a ser rei.

— Sou a escolhida para libertá-lo?! — assustou-se a jovem de olhos heterocromáticos,  olhando para o objeto imóvel que dialogava com ela.

— Sim, exato.

— E como eu poderia fazer isso?

— Eis ai a necessidade da realização de sete tarefas. Cada uma permitirá recolher um item que ajudará num ritual para que eu alcance a liberdade. E cabe a você recolhê-los para mim.

Anamélia não gostou muito daquilo, afinal nem desconfiava o que a pedra poderia querer. E também era uma noite muito fria, com ameaça de nevasca. Mas havia um anseio em seu coração sonhador.

— Prometo levá-la comigo ao meu mundo — acrescentou o objeto falante, tão bruscamente que por muito pouco a garota não teve um infarto.

— Sério?!

A alegria daquela promessa era muito radiante. Enchia a alma da jovem órfã de esperança e sonhos sempre presentes. Imagens de banhos de cachoeira com as fadas das águas ou os longos passeios ao lado dos elfos, tantas coisas passavam em sua mente imaginativa. E tudo estava apenas na aceitação das sete tarefas para auxiliar um erudito metamorfoseado em pedra.

— Qual é a primeira tarefa? — indagou, ansiosa para iniciar e acabar o quanto antes.

— Bem, vejamos — começou a pedra, naquela insensibilidade típica de todo mineral. — Há um cemitério não muito longe deste parque. Lá vivem duas criaturas horrendas, os ghouls. São monstros que se alimentam de cadáveres de todos aqueles que foram santos em vida, pois eles os invejam pelas virtudes que praticavam. Se um vivo os encontra, também o devoram; contudo, se uma pessoa se oferece para pentear os cabelos ou apará-los ou ser amamentado pela fêmea, eles concedem um único favor como forma de gratidão. Faça isso: corte e penteie os cabelos do macho e sugue os seios secos da fêmea, que contará sobre sua prole natimorta! Após isso, eles indagarão como podem retribuir suas gentilezas. Peça algumas lágrimas da donzela que morreu por amor há alguns anos, e insista nisso mesmo que eles apontem que os olhos da falecida murcharam e foram comidos pelos vermes! Quando notarem que você sabe o que quer, darão o que foi pedido.

Anamélia se arrependia de ter aceitado realizar as tarefas. A primeira já lhe parecia deveras repugnante e perigosa. O que não imaginar das seguintes, caso obtivesse êxito na inicial? Talvez ainda houvesse tempo de desistir, porém o desejo de ir a um mundo mágico era muito mais fascinante do que de permanecer naquele tão gelado e infeliz.

Embora hesitante e nauseada, a garota foi para o cemitério.

De volta ao parque, deixando para trás o bosque, sentiu o ar gélido da noite outra vez. Ajeitou o casaco; logo em seguida tirou o excesso de cabelo castanho com mechas douradas do rosto. E andou.

A cidade estava mergulhada num sono profundo, que poderia ser algo absoluto se não fossem os morcegos e corujas ali e acolá, resistindo com bravura ao frio do inverno. Ou aos vigias que se perdiam em meio às sombras conscientes que vagavam pelas ruas sem qualquer receio.

O portão majestoso do cemitério parecia outro limiar entre dois mundos. Na verdade, realmente era; entretanto, assim que Anamélia se espremeu para passar por uma brecha, não se deparou com as cores primaveris que viu no Bosque da Melancolia, e sim com o tétrico aspecto da morte. Lápides e túmulos pareciam possuir veias e artérias, pulsando um sangue ou num tom vermelho ou noutro mais escuro, quase negro; a neve era manchada por rastros rubro-negros, que iam de um sepulcro a outro, cuja maioria estava semiaberta, com alguns ossos roídos em volta. Fazia mais frio ali, e o cheiro de podridão era insuportável.

AnaméliaWhere stories live. Discover now