Preto, branco, cinza e... isso é café?

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O pianista daltônico [piloto]

   Preto, branco, cinza, preto, preto, cinza, branco, cinza, cinza, branco, preto, branco, cinza, branco, branco, preto... todos os lugares, todas as coisas, todas as pessoas. Tudo... é tão igual. Nada mais tem cor. Tudo é opaco. Não há mais brilho. O som é abafado, a melodia se dissipou.

   Não vejo mais as cores. Não ouço mais nada, a não ser eles. Sinto-me encoberto por uma espessa bolha, tudo é preto, branco ou cinza e não há mais brilho em nada nem ninguém, o som está sufocado, seco e sem essência. Olho-me no espelho mas sou incapaz de ver esta bolha e nem aqueles que atormentam-me em meus dias. Mas mesmo não vendo uma diferença física em meu reflexo, confesso ter repulsa, medo, desespero e até ódio de encarar estes cinzas olhos cinzas envoltos por uma camada branco pálido e centralizados com um ponto preto obscuro.

   Não sei ao certo quando estas deturpações começaram ocorrer. Recordo-me apenas de quando tudo era brilhante, genial, colorido, melódico, vivo. E então, as coisas foram ficando cinzas, como se estivesse afundando-me numa vasta escuridão, que é infinita ao meu olhar mesmo sabendo que a um palmo de distância ela tende a findar. Tentei desvencilhar-me destas amarras, e acabei por encontrar um objeto que veio a calhar. Um piano. Quando toquei-o pela primeira vez ouvi um som abafado vindo de sua tecla branca mesclada a outras de mesma cor e outras opostas, a fronte de uma forma de madeira escura submerso num deserto cinza cujo a luz do Sol não existia. Sentei-me no banco defronte ao instrumento e o admirei durante alguns instantes. Não via nele discrepâncias, ele possui as mesmas cores, mesmo agora. Talvez nunca nem mesmo tivesse tido alguma. Entretanto, quando toquei-lhe uma segunda vez ouvi não mais um som abafado e mórbido, mas sim, um som belo e vivo. Pela primeira vez, eu vi um risco de cor perpassar o ambiente em torno do objeto. por um segundo, podia jurar que senti o ar adentrar e encher meus pulmões. Neste instante, decido que aprenderia a tocar piano.

   Havia um dinheiro guardado que somado a ajuda de meus pais, fora capaz de comprar um piano de cauda pequeno e de uma marca inferior, preto - eu acho - e mais alguns livros contendo partituras de exercícios e músicas. Esforcei-me durante meses e a cada vez que tocava as notas, o ambiente se enchia de cor, o som que ele reproduzia era sublime. A bolha era enfim estourada. e mesmo o piano sendo apenas preto e branco, não era como as cores que eu via, elas se destacavam. Entretanto, esta sensação se esvaia com agilidade e logo a bolha recobria-me novamente. Aperfeiçoei cada vez mais minhas habilidade com o instrumento e participei de campeonatos e apresentações. A plateia era tão viva e expressiva mesmo calada. E naquele fatídico dia, minhas mãos congelaram mesmo sobrepostas por luvas, quando toquei as teclas nada mudou, um som distante e desafinado ecoava pelo ambiente. Congelei e fiquei parado, não sei por quanto tempo. Então, não havia mais branco nem cinza, tudo ficou preto. Acordei algum tempo depois - provavelmente horas - na ala hospitalar e depois fui para casa. Desde de este dia, não consigo mais olhar para meu piano, sua cor misturou-se ao ambiente e algo começou a me seguir.

   Hoje, um dia chuvoso, frio. O cinza paira o ambiente, a fumaça do café sobe mas não posso sentir seu odor e nem ver sua cor. Sei qual é a bebida pois eu mesmo a preparei. Vou de encontro a porta fechada e abro-a, lá, no centro da sala, encontra-se o instrumento que uma vez reanimou minha volta mas que agora apenas me transporta mais afundo para as trevas. Coloco a caneca em uma estante próxima e puxo dela um livro qualquer de partituras, aproximo-me do banco em frente ao piano e sento. Ouço o tilintar das gotículas de chuva que tentam adentrar a janela e são barradas pela mesma, formando um som que agradava-me. Vejo-as ricochetearem e se estilhaçarem ao tocarem a superfície respaldada do vidro encharcado. Levanto-me e fecho as cortinas cinzas como as nuvens que choramingavam fora daquele aposento e que posteriormente iriam empalidecer de desidratação. Na última fração de segundos em que as cortinas estavam separadas apenas pelo espaço do reflexo... reflexo do olho meu que causa-me um lapso.

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⏰ Last updated: Oct 05, 2017 ⏰

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O Pianista Daltônico [Piloto]Where stories live. Discover now