A estrada de cinza

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Abstraio-me, com os fones de ouvido, sentindo minha respiração regular, o ar condicionado bem acima de mim e o confortável encostamento do banco dando um bem-vindo descanso as minhas costas cansadas.

"Hello darkness, my old friend,

I've come to talk with you again...

Because a vision softly creeping,

left it seeds while I was sleeping,

and the vision that was planted in my brain...

Still remains within the sound of silence..."

O som do motor a explosão do ônibus e dos pneus passando sobre as ruas esburacadas da cidade, árdua e violentamente, os pequenos solavancos, o som constante do ar condicionado, as paradas ocasionais nos semáforos, o barulho vazio, reconfortante e sem qualquer significado que me valha a pena abstrair das pessoas ao meu redor e, acima de tudo, a paisagem: carros, prédios, casas com pintura já a desbotar, calçadas e qualquer coisa que passe através da janela embaçada e castigada pela chuva que cai incessante, fizeram-me abrir os olhos – não literalmente, eles já estavam abertos, mas não viam para nada em particular, só estavam lá, olhando o estofamento azul-marinho do assento à frente.

"...And in the naked light I saw,

ten thousand people, maybe more...

People talking without speaking,

people hearing without listening,

people writing songs that voices never share...

And no one dared, disturb the sound of silence...

'Fools', said I, 'you do not know',

silence like a cancer grows,

hear my words that I might teach you,

take my arms that I might reach to you..."

Como já diz a melancólica, porém assustadoramente realista, letra de "The sound of silence" de Simon & Garfunkel, escrita há uns cinquenta anos e que parece ser atemporal, ninguém – e nisto eu estou incluso – neste ônibus está realmente aqui.

"Fez a atividade?" Pergunta uma garota elegante, vestindo a farda de algum colégio que desconheço, com um casaco, mochila e cabelo preso. "Não, perdi a noite assistindo..." Aumentei o volume dos fones de ouvido, não pretendo ouvir mais uma única palavra.

O ônibus parou num dos pontos do trajeto: uma praça grande, bonita e bastante arborizada, organizada e movimentada – se ainda restasse algum ânimo em mim, teria descido e caminhado por alguns minutos – e as duas garotas desceram; noto o homem ao meu lado digitando uma mensagem aleatória e com tantos erros de gramática que faria um professor vomitar, no WhatsApp, que também levanta indiferente e caminha até a porta, faz um caloroso aceno para o cobrador e desce na parada, é seguido por um garoto que não deve ter mais de quatorze anos e sua mãe. Deixo meu braço despencar no assento, agora vazio, e sinto a maciez e suavidade do tecido – e, devo dizer, é uma sensação incrível ter um banco inteiro só para si – enquanto minha cabeça descansa e meus dois olhos mórbidos e cansados observam cada indivíduo medíocre e ordinário que, por acaso do destino, entraram no mesmo ônibus que eu, cada um seguindo o próprio caminho, com seus próprios objetivos e seus próprios dramas que, se dirigidos por um bom diretor, dariam um filme de fazer qualquer um desabar em lágrimas.

Agora a minha playlist toca "Riders on the storm" dos irreverentes The Doors.

"Riders on the storm,

A estrada de cinzaWhere stories live. Discover now