O quarto

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“é justamente em meio aos prazeres que nascem as causas da dor. – Sêneca”.

Apesar de ser um quarto, a brancura de suas paredes dava-lhe uma pureza inquestionável. O lençol branco neve com anjos bordados na barra o tornava imaculado mais ainda. A imagem de cristo entalhada no jacarandá posta na parede sobre a cabeceira da cama o deixava sacro.

O grito contido ao se ver surpreendida por cenas nunca esperadas lhe cozia por dentro, não os órgãos internos, mas a própria alma. As imagens, rápidas, lhe passavam pelos olhos em flashes alucinantes, tirando-lhe as forças das pernas, tirando-lhe o juízo. Entontecida, ela se apoiou no batente da porta do quarto para não cair.

Tudo que havia de santificado no quarto diminuía, somente os dois corpos nus, entrelaçados na cama, ganhavam uma dimensão gigantesca maculando o lençol a ponto dela enxergar os anjos bordados caírem.

Frenéticos, ora na cama, ora fora dela, eles se davam como se não se conhecessem, como se para tanto fosse preciso percorrer todos os poros de seus corpos em uma busca incontrolável ao prazer supremo, como se uma força descomunal os repelisse e os atraísse, amiúde, ao mesmo tempo, e no encontro desse sentido às suas vidas, como se a vida de cada um tivesse sentido somente pelo físico. Ora as mãos, ora os pés, dependendo da posição que cada um se encontrava, apoiavam-se na parede do quarto, manchando-a, para que os seus corpos continuassem, impetuosamente, a se saberem até que pudessem decorar todos os caminhos neles contidos. Sabendo-se pela superfície, eles não se conheceriam profundamente.

O quarto havia perdido o seu aroma característico, o sândalo não mais exalava do incenso, as flores nos vasos murchavam, secas, ia-se o perfume; uma névoa perceptível apenas por ela impregnava o ar, irrespirável, com o cheiro de sexo mundano. Mapeados, os corpos nus exsudavam. Aquietados, eles já se sabiam poro por poro.

O quarto, silencioso, a incomodava. Eles, ainda nus, estirados na cama de braços abertos, um sobre o outro, mãos coladas, em plena felicidade, entre risos silentes, se beijavam. As lágrimas silenciosamente escorreram pelo rosto dela acusando o quanto era doído vê-lo nos braços de outra mulher, feliz. Ela saiu trôpega sem apoiar nos móveis para não ser percebida, ao alcançar a rua, ela perambulou por rumo incerto até se ver diante de uma igreja. Não entrou, apenas jogou as mãos para o céu como se esperasse que o céu lhe desse respostas, mas o céu havia caído aos seus pés. Tentou se apoiar e não conseguiu, ela não tinha, também, mais chão. O vazio, tanto intrínseco, como extrínseco, dava a dimensão do quanto escuro tornou a sua vida.

O azul-escuro tomava o céu para si dando a entender que a noite estava chegando. Fosse qual hora do dia, no quarto sempre seria noite. Chegando em casa ela desviou do quarto, mas este a chamava. Ela entrou e sentiu o mesmo cheiro de sexo mundano, as mesmas manchas estavam impregnadas em suas paredes. O choro, copioso, em soluços intermitentes trazia consigo o grito de dor que atravessava as paredes do quarto e se perdia na noite. Agora, silente, a noite dava significado a si, em trevas, como se nenhuma vida houvesse. Os ventos característicos da estação se emudeceram. Os passos do seu marido entrando em casa quebraram o silêncio da noite. Os dois na cama travavam consigo mesmo uma luta desesperadora de como um se livrar do outro, ele para ficar com a amante, ela movida pela vingança. Os dois teriam como testemunha a noite, e ela veria os dois derrotados.

A morte além de ser a ausência de luz significava o silêncio eterno. No quarto, o silêncio era maior do que o silêncio noturno; a escuridão, ainda mais. Sozinhos entre si, os dois, estranhos na mesma cama, tinham como companheiro os seus pensamentos. Ela não sabia se resignava aceitando a traição, ou... Dele, quaisquer leituras dos seus pensamentos seriam trágicas.

A ausência de luz e som agora era mais intensa. Similar à morte, a noite dava sinal de que não havia vida, como se o tempo houvesse parado. No quarto parecia ser assim, aparentemente.

O estampido de um tiro fez com que os pássaros na árvore próxima da janela do quarto batessem asas em um movimento elíptico ascendente, e refeitos do susto com o mesmo movimento no sentido descendente voltassem à árvore. A brancura da parede do quarto com suas manchas de mãos e pés eram cobertas por gotas de sangue. O cheiro da pólvora permanecia no ar. Quando enfim se pensava que o silêncio tomaria conta da noite, as gostas de sangue que tinham cessado de espargir pela parede e perdida a sua coloração, o vermelho e enegrecida, significando que o tempo estava tomando o seu curso normal, e que logo amanheceria, um novo tiro foi ouvido, cobrindo o sangue coagulado na parede com um novo sangue.

As nuvens matizadas em tons róseo alaranjado pelos feixes de luz solar, a balbúrdia vindo da rua entrando pelo orifício aberto na janela do quarto quando a bala ricocheteou, anunciavam que estava amanhecendo. Se não fosse pelo barulho externo, no quarto permaneceria um silêncio eterno, a ausência de luz já era sempiterna.

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