O Caçador - As Trevas da Verdade - Capítulo 1

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Capítulo 1

Em mais uma fria madrugada de inverno, Bernard acordou com sua costumeira dor nas costas, a velhice o tinha alcançado no decorrer de seus oitenta anos. Ao levantar-se e olhar pela janela, contemplou a escuridão dos céus, a luz da Lua adentrava suavemente no cômodo, o velho caçador vira seu reflexo, que há muito tempo não reparava, seu físico ainda era atlético, para um humano tão velho, seus cabelos brancos já alcançavam os ombros, as rugas tomavam conta de seu rosto, a barba branca era sempre curta e bem aparada, apenas os olhos castanhos e penetrantes não se modificaram com o passar dos anos. Seu neto, Adrian, dormia em sono profundo no quarto ao lado.
O inverno trazia consigo uma sensação de solidão e tristeza, a casa, era um pouco distante do vilarejo e mal podia ser vista em meio à imensidão de neve.
- Maldita dor nas costas! Preferia meus pesadelos de criança... – Resmungou após deitar-se novamente.
A dor tirava todo conforto que a velha cama de madeira forrada com palha oferecia, resolveu então pensar sobre a vida, o tempo passara rápido, lembrou-se da plenitude física da juventude, que se fora há muito tempo, uma vida de grandes perigos e emoções, emoções estas, que seu neto, nunca desconfiara... Algo que só existia em seus piores pesadelos. 
Após uma hora de pensamentos obscuros de memórias passadas, caiu em sono novamente. A nevasca urrava contra as paredes da simples casa de madeira, construída especialmente para seu neto, uma única peculiaridade chamava a atenção de Adrian, seu quarto possuía um revestimento de pedras finas e esbranquiçadas, que parecia possuir uma essência misteriosa, o local parecia estar sempre iluminado e imune a escuridão da noite.
Já pela manhã, Bernard acordou por volta das seis horas, a nevasca finalmente cessara, dando espaço a um belo e resplandecente nascer do Sol, calçou suas botas de couro e vestiu seu casaco de pele de urso, sua calça era de um algodão espesso e confortável, era branca e bastante surrada pelo tempo, desceu lentamente as escadas e caminhou em direção a cozinha, para preparar o café da manhã de Adrian, a comida era pouca, o inverno dificultava a caça, o principal meio de alimentação que possuíam. Bernard separou a carne que sobrou da refeição anterior, um pouco de pão e água para o neto de apenas dezessete anos. Distraído em seus afazeres, o velho foi surpreendido por um barulho em sua porta frontal, foram três batidas fortes.
- Visita a esta hora? Mas que diabos – Resmungou em voz baixa.
Silenciosamente apanhou uma de suas facas mais amoladas e se locomoveu em direção a porta, com uma destreza anormal para sua idade.
- Quem é? – Perguntou em voz alta, permanecendo cautelosamente agachado ao lado da porta.
- É o senhor Bernard? Trago notícias de seu filho, Cristopher - Falou em alto e bom tom o homem desconhecido. 
Sem pensar duas vezes, Bernard girou a chave que estava na maçaneta e abriu a porta, pôs a faca à altura do pescoço do homem com um movimento extremamente rápido, possuía um olhar frio e assassino, pronto para matar.
- Entre logo! E da próxima vez não fale o nome dele tão alto! – Esbravejou.
- Desculpe senhor! Com a sua licença – Respondeu o viajante, ainda surpreso com a velocidade de Bernard.
O homem entrou com certo receio, vestia um sobretudo acinzentado, botas e luvas de couro amarronzadas, sem qualquer tipo de adornos, retirou seu capuz para que Bernard pudesse ver sua face, possuía olhos azulados e serenos, suas sobrancelhas finas e proporcionais lhe davam um aspecto rebuscado, cabelos escurecidos e curtos, a barba rala, possuía a mesma tonalidade, a pele era alva como a neve, levemente corada pela exposição ao Sol.
Bernard fechou lentamente a porta, certificando-se de que o visitante não teria sido seguido em seu caminho.
- Qual o motivo desta visita tão cedo, em meio a este rigoroso inverno? – Indagou, ainda desconfiado, segurando firmemente a faca na mão direita.
- Senhor – Agora o homem falava em um tom mais baixo. - Me chamo Dusman, sou mensageiro de seu filho, o líder do acampamento instalado ao norte, em Alba.
- Independente desta mensagem, você deve saber que esta casa não deve receber visitas – Disse Bernard em tom um pouco mais ameno.
- Me desculpe senhor, mas Cristopher pediu-me com urgência que me deslocasse até aqui, para entregar-lhe esta mensagem, ele pediu que a queimasse após tomar conhecimentos dos fatos – Falou o homem, retirando a carta do interior de suas vestes, sua mão tremulava de frio.
- Cristopher fala como se eu fosse um amador – Bernard deu uma breve gargalhada junto com Dusman. – Obviamente irei queimá-la, farei um chá com ervas para lhe ajudar, deve estar um frio do diabo lá fora – Disse indo em direção a mesa.
- Senhor, eu gostaria de poder aceitar, mas preciso voltar o quanto antes, minha estadia quanto mais prolongada for, mais perigosa será – Falou Dusman indo em direção a porta de saída.
- Compreendo... Obrigado pela carta, caso chegue vivo ao acampamento, mande lembranças ao meu filho, diga-lhe que Adrian se parece cada vez mais com ele. Boa sorte Dusman – Disse Bernard deixando um leve sorriso escapar entre suas feições rígidas.
- Irei transmitir a mensagem! Obrigado pelos votos de sorte e pela honra de ter conversado com o senhor, adeus.
Dusman caminhou até a porta de saída, com um breve aceno despediu-se de Bernard, escondeu o rosto no capuz e prosseguiu com seu caminho em meio à grossa camada de neve.
Bernard observou o viajante desaparecer lentamente em sua caminhada de volta à Alba, um caminho árduo sem sombra de dúvidas, fechou a porta e sentou-se em sua velha cadeira de balanço, olhou preocupado para a carta em suas mãos, Cristopher não mandava notícias há muitos anos. Adrian sempre perguntara por notícias de seu pai, a resposta era sempre a mesma. “Seu pai é um médico muito importante na guerra Adrian, infelizmente ele ainda não teve tempo de mandar uma mensagem para você, mas com certeza ele sente sua falta”. Por dentro sentia a amargura de não ser sincero com o próprio neto, ter de contar uma história que não correspondia aos reais fatos era doloroso, mas ainda era muito cedo para contar a verdade sobre tudo.
Adrian perguntava cada vez menos por seus pais, estava amadurecendo, continuava a sentir falta, mas tinha aprendido a lidar com a situação. Deixando as lembranças de lado, Bernard resolveu abrir a carta.
-Espero que sejam boas notícias – Suspirou para si mesmo.
“Olá pai, gostaria de pedir desculpas pela ausência de mensagens durante todos estes anos, os combates se intensificam com uma velocidade absurda, nestes últimos dias mal tenho dormido para garantir a segurança de meus homens, a situação está cada vez pior, a quantidade de vampiros só aumenta, estão mais agressivos e mais astutos, tenho perdido muitos homens em ataques surpresa, a falta de caçadores experientes e providos de linhagem sagrada tem custado caro, o senhor já sabe onde quero chegar, iremos precisar dele novamente pai... Adrian tem a capacidade de despertá-lo, independente de quanto tempo seja necessário para que ele se torne apto a entrar em combate, treine-o, não tenho mais a quem recorrer, a comunicação com os outros acampamentos está se tornando inviável, temo por haver um traidor entre nós, muitos mensageiros estão morrendo no caminho, ordenei que Dusman entregasse esta carta ao senhor, pois é um dos meus homens de confiança, espero que ele tenha tido sucesso em sua missão, mande minhas felicitações ao meu filho por seu aniversário, não sei quando a carta irá chegar, mas transmita isso, diga que eu e sua mãe sentimos muita falta dele, que nos lembramos dele a cada dia que se passa neste inferno, Aurélia anda muito ocupada criando os encantamentos necessários para nossa proteção, lembre-se que a barreira irá se desfazer quando Adrian exterminar o seu primeiro vampiro, tenha cuidado pai, o senhor não tem mais idade para correr riscos, a barreira sendo desfeita, mude-se, espero voltar a vê-lo um dia, antes de partirmos deste mundo miserável”. 
A carta não possuía o nome do remetente, mas a caligrafia ruim, escrita a pena com tinta preta não poderia ser de outra pessoa, infelizmente não eram boas notícias, muitos dos líderes dos vilarejos foram assassinados, dando lugar a escravos dos vampiros, ou até mesmo um vampiro. Com a falta de apoio financeiro e alimentício, as jornadas para extermínio dos vampiros se tornavam ataques suicidas, era impossível treinar novos caçadores nestas condições, apenas os abençoados pelo dom da guerra, conseguiriam obter êxito contra a horda de trevas que se expandia, neste longo tempo fora do campo de batalhas, o experiente Bernard já havia previsto o resultado da desorganização dos caçadores, falhar era quase inevitável, e neste caso, falhar significava morte. 
Bernard ainda assim ficou intrigado com a mensagem, não esperava que a situação estivesse tão precária no acampamento de seu filho, ao longo de sua vida acumulou larga experiência em técnicas de combate e estratégias contra as criaturas da noite, estava na hora de passá-las adiante novamente, seu filho, treinado desde cedo com a verdade nua e crua, sabia que precisava se tornar um grande caçador para manter-se vivo e cumprir a missão de dar continuidade a linhagem de caçadores, passando suas habilidades sagradas para a próxima geração, porém Adrian, não tinha conhecimento de nada, provavelmente acharia que seu avô estaria ficando louco quando lhe fosse revelada a verdade, seria necessário um exemplo drástico para convencê-lo rapidamente.
O ranger dos degraus da velha escada de madeira o tirou de seus pensamentos, escondeu a carta em seu casaco o mais rápido que pôde. Adrian havia acordado, ao ver o neto, lembrou-se de seu filho, a semelhança era enorme, o jeito de andar, os cabelos castanhos curtos e desorganizados, ainda não possuía barba, seu rosto alvo era afilado, mas quando o jovem estava sério, expressava a mesma rigidez que o avô possuía, como toda a família, tinha estatura mediana, desenvolveu um porte atlético rápido, sua maior semelhança com Bernard eram os olhos castanhos, serenos e penetrantes, seu pai possuía o mesmo olhar, estava vestindo uma camisa de manga longa e uma calça esfarrapada de cor branca, ambas de algodão grosso, próprias para o frio.
- Bom dia, aconteceu alguma coisa? – Perguntou Adrian achando estranha a feição com que Bernard estava.
- Bom dia Adrian, está tudo bem, não consegui dormir direito à noite, deve ser isso – Respondeu desviando o olhar do neto e indo em direção ao café da manhã, que organizava quando fora interrompido pela visita de Dusman.
- O inverno já dura bastante tempo, amanhã irei completar dezoito anos, gostaria de caçar com o senhor pela manhã, para prepararmos o almoço juntos, como sempre fazemos – Falou Adrian enquanto sentava em uma das velhas cadeiras e se espreguiçava.
- O inverno este ano castigou nossa casa como nunca, talvez ela precise de alguns reparos, podemos tirar um pouco da neve da entrada e reparar o telhado antes de nossa caçada, o que acha? – Perguntou enquanto dividia o alimento em porções iguais.
- Não gosto muito destas tarefas, mas o senhor está muito velho para esse tipo de coisa, deixe que seu neto resolva – Respondeu deixando um leve sorriso escapar entre os dentes.
- Muito engraçado, vindo de um preguiçoso como você, só pode ser piada! Você ainda tem muito que aprender – Disse Bernard dando uma gargalhada simultânea com seu neto, este tipo de provocação sempre os divertia.
- Às vezes você fala como se tivesse sido algo além de um simples caçador, me pergunto se todo este ego tem algum fundamento, ou se surgiu com a idade, pessoas velhas demais acabam falando coisas sem razão...
- Hahaha – Gargalhou Bernard com a audácia de seu neto. - Quem sabe, hoje ao anoitecer, eu não lhe conte uma historia convincente, este velho tem muitas coisas a contar que o fariam borrar as calças – Caçoou, sendo tomado por gargalhadas mais estrondosas ainda.
- Duvido que seja para tanto – Disse Adrian em meio às risadas. - Darei um voto de confiança ao senhor! Vamos ver se me convence!
- Coma logo seu garoto imprestável, temos que ir caçar comida para a janta, a carne já se esgotou, também devemos ir à vila para comprar alguns pães, oferecerei algum animal como moeda de troca, espero que os comerciantes estejam de bom humor - Disse Bernard entre suas mastigadas no escasso café da manhã. Adrian somente concordou, balançando a cabeça positivamente, enquanto mordia com dificuldade o alimento enrijecido.
O longo e rigoroso inverno dava indícios de seu fim, o Sol estava radiante, derretendo lentamente o gelo que se formou na floresta, um dos grandes problemas para a caçada, o tempo de escassez de carne logo acabaria. 
Após terminarem a refeição, foram ao primeiro andar pegar os pertences para caçar. Adrian vestiu seu velho casaco de peles, que mais parecia uma colcha de retalhos costurada a grosso modo, apesar da aparência, era bem confortável, uma calça amarronzada por cima da calça de dormir, botas e luvas de couro de cervo, fabricadas artesanalmente pelo próprio avô, desta vez não usaria sua vestimenta favorita, um sobretudo preto em que a gola permanecia ereta até a altura das orelhas, a cor chamaria muita atenção em meio a vastidão de neve, pegou uma capa branca que possuía capuz e a amarrou com firmeza, apanhou algumas munições para sua espingarda de cano duplo, era preta em sua totalidade, com exceção do cabo, feito de madeira de carvalho, a bandoleira era de couro, bastante resistente, a arma fora dada por Bernard, em seu aniversário anterior, por último, duas adagas prateadas de cabo de metal escondidas na cintura, Bernard sempre o instruía a levá-las, para emergências. 
Fazia um bom tempo que não atirava, com poucos dias de treinamento já sabia manuseá-la com perfeição, possuía uma mira exímia, não existia alvo que escapasse a sua pontaria, Adrian ficou intrigado por seu rápido aprendizado, parecia que tinha nascido para atirar, assim como em seu treinamento com armas brancas, a faca se comportava como uma extensão de seu braço, era algo natural, realizava movimentos rápidos e fatais, visando pontos estratégicos ensinados por Bernard, que sempre dizia que era de família, Adrian nunca tinha entendido esta afirmação, muito menos o porquê deste treinamento todo, julgou ser necessário saber usar as armas caso fosse preciso se defender de algum animal, ou até mesmo de algum ladrão, mas nada que necessitasse um nível tão avançado de treinamento. Porém Adrian via seu avô empolgado em raros momentos, resolveu se dedicar ao máximo para agradar o velho.
O jovem estava pronto, devidamente agasalhado e equipado para a caçada matinal, estava ansioso, os meses de inverno tiraram toda a diversão disponível do local, mal via à hora de abater um cervo em meio a uma perseguição, depois assá-lo em uma fogueira junto com seu avô enquanto um tirava sarro do outro. 
- Anda moleque, temos que ir! O dia é cheio hoje – Disse Bernard aos gritos, impaciente com a demora de Adrian.
- Estou indo! – Respondeu Adrian.
Ao descer as escadas a largos passos encontrou a porta já aberta, o ar frio penetrando em rajadas, Bernard estava do lado de fora, vestindo uma capa branca e empunhando sua velha espingarda, estavam vestidos de forma idêntica, até as espingardas eram semelhantes.
- O Sol finalmente voltou a nos aquecer, apesar das rajadas de vento, precisamos caçar três cervos, deve ser o suficiente para as bebidas e pães de hoje e amanhã – Falou Bernard enquanto caminhava vagarosamente em direção a floresta.
- Já estava cansado deste frio... Bebidas? Finalmente irá me deixar beber mais que um copo de vinho? O senhor está bem? – Perguntou Adrian.
- Você precisará de mais um pouco, para escutar o que irei te contar hoje – Disse em tom de desafio.
- Acho que você está ficando louco mesmo, mas tudo bem, aceito a proposta de beber e escutar sua história maluca – Adrian falou rindo, mas sentiu uma sensação estranha nas palavras de seu avô, talvez o velho estivesse dizendo a verdade, quem sabe precisasse realmente se embebedar.
Os dois seguiram adentrando lentamente na floresta, cobriram a cabeça com o capuz, se camuflando ainda mais, o momento era de concentração, não sobrava tempo para conversas, apenas olhares fixos e gestos indicando para qual caminho seguir. 
Caçar era uma arte para poucos, era necessário caminhar silenciosamente e saber identificar as marcas deixadas pelos animais da floresta. As oportunidades eram raras e não podiam ser desperdiçadas, durante duas horas caminharam pela floresta, procurando em cada detalhe na neve e na vegetação, como marcas de chifres e rastros no solo, até mesmo o cheiro da urina. Finalmente passado este tempo, conseguiram identificar pegadas, provavelmente cervos, a julgar pelo formato deixado na camada de neve, o rastro tinha seu fim em meio aos arbustos, os animais pareciam estar por perto, passando lentamente entre as plantas e galhos, Bernard finalmente avistou o grupo de cervos, estavam aproximadamente a vinte metros, uma oportunidade ímpar, cinco cervos agrupados, farejavam o ar despreocupadamente e mastigavam as poucas plantas que conseguiam emergir da camada de neve, desta vez, eram necessários três cervos para alcançar a meta estabelecida ao entrar na floreta, Bernard ao ver a grande quantidade de animais decidiu usar sua ambidestria, sussurrou ao ouvido de Adrian enquanto se abaixava lentamente e fazia mira.
- Irei usar as facas, um tiro espantaria o grupo, não podemos matar três cervos com apenas duas espingardas, atire no maior cervo, aquele que está mais longe, irei abater estes dois mais próximos. – Indicou Bernard enquanto ajustava a bandoleira de sua velha espingarda nas costas e sacava duas pequenas e afiadas facas. Adrian concordou com a cabeça, levantou o rifle à altura dos ombros e fez mira no cervo mais distante, Bernard tocou seu ombro indicando que iria se levantar para abater as vítimas do dia. Em questão de segundos o velho se levantou e lançou as duas facas simultaneamente, sua mira era impecável, as facas acertaram em cheio na garganta dos animais, antes que o grupo restante tivesse alguma reação, Adrian disparou, de fato era algo de família, acertou a cabeça do animal, que morreu instantaneamente, sem dor, como seu avô lhe ensinou.
- Belo tiro Adrian, atirando com uma espingarda feita por mim fica fácil. - Caçoou Bernard. 
- Desta vez terei de concordar com seu ego, a espingarda é realmente muito boa, mas uma boa arma só funciona com um bom atirador não é mesmo? – Disse Adrian enquanto caminhava em direção aos cervos abatidos.
- Talvez você seja um bom atirador... Vamos carregá-los até entrada da floresta, para serem transportados pela nossa carroça – Disse Bernard enquanto recuperava suas facas.
- Você irá forçar suas costas, deixe que eu carregue, vai demorar um pouco, mas será melhor – Alertou Adrian que já tinha colocado um dos cervos de porte médio em suas costas.
- Não me subestime garoto, ainda posso dar conta disso, já que quer mostrar serviço, pegue o outro e o leve arrastando, deste eu dou conta – Falou Bernard em tom de escárnio.
- Já que o senhor insiste – Disse Adrian aceitando a provocação.
Satisfeitos com o resultado da caça, os dois retomaram a caminhada, a tensão da caça tinha se dispersado após o abate dos animais. Apesar das palavras de Bernard, de que conseguiria carregar o animal, Adrian observou certa dificuldade, porém não se ofereceu para ajudar, não queria ferir o ego do avô, durante o percurso pararam alguns minutos para descansar e estalar as articulações enrijecidas pelo frio.
Em cerca de três horas chegaram à entrada da floresta, no decorrer da manhã, a temperatura se tornou um pouco mais amena.
- Adrian, espere aqui, irei pegar a carroça – Ordenou Bernard enquanto se ajoelhava com dificuldade e colocava o animal morto sobre a neve.
- Não demore, já estou ficando com fome de novo
Ignorando o comentário de Adrian, deu as costas e rumou em direção a casa, a neve parecia estar diminuindo de forma lenta, em alguns dias desapareceria por completo. 
Chegando a casa, abriu a porta e partiu em direção ao quarto, a chave do celeiro estava na gaveta de seu armário, em posse da mesma, seguiu em direção ao celeiro, que tinha quatro metros de altura, feito de madeira, assim como o restante da casa, possuía poucas janelas, já gastas pelo tempo e surradas pela neve, em alguns pontos o vidro estava trincado.
- Que merda de dor, preciso dar um jeito nisso – Resmungou para si mesmo, o esforço com o cervo tinha custado caro.
Abrindo o celeiro lá estava a carroça, como todas as coisas da casa, já bem danificada, mas ainda era utilizável, no canto estava à única criatura viva presente no local, em meio aos amontoados de capim, colocados por Bernard em uma tentativa de aquecer o seu cavalo.
O cavalo não fugia a regra dos bens da família, era velho e já tinha passado por várias emoções junto ao dono, tinha trinta e três anos e já se aproximava da morte, a semelhança entre eles era grande, ambos estavam cansados e desgastados, mas seu espírito guerreiro ainda estava aceso, o mantendo vivo e pronto para entrar em ação, ao perceber a presença de Bernard, o cavalo empolgou-se, relinchou e ficou em duas patas com as forças que lhe restavam, Bernard o acariciou com afeto sincero.
- Há quanto tempo meu companheiro, como nos últimos anos iremos apenas negociar carne na cidade, que fim para trágico não é mesmo? – Comentou Bernard com um olhar nostálgico e cansado.
O caçador guiou o animal até a antiga carroça, ajustou as tiras de couro e as amarrou, com um leve toque nas rédeas o cavalo seguiu para fora do celeiro, ainda possuía bastante força, Bernard ordenou a parada para que pudesse fechar a porta do celeiro.
De volta à carroça, assoviou e o cavalo assentiu, em pouco tempo se locomoveu a entrada da floresta, Adrian estava sentado de forma desleixada, assoviando com um ar de tédio.
- Levante-se idiota, que bela postura, muito bem preparado para um ataque... Leve um dos cervos para nossa casa, os outros dois levaremos para o vilarejo. 
- Estava pensando se o vinho tem um gosto bom – Falou Adrian fazendo pouco caso. 
Passados alguns minutos, Adrian colocou dois dos animais na velha carroça, que rangia com o peso posto sobre ela, depois levou o terceiro animal até a cozinha, trancou a porta ao sair, voltou à carroça e sentou-se ao lado de Bernard, entregando-lhe as chaves.
- Ela vai suportar mesmo o caminho até a vila? – Indagou Adrian inseguro sobre a integridade da carroça.
- Vai aguentar, se não aguentar, você como é jovem e forte irá carregar os cervos até a vila, não é mesmo? – Caçoou Bernard
- É o jeito, já que a única coisa que ainda funciona por aqui sou eu. 
Bernard deu uma tapa na cabeça de Adrian e ambos gargalharam, estava na hora de partir, a carroça apesar de velha estava dando conta, desde o começo do inverno Bernard e Adrian perderam o contato com a vila, como já sabiam das dificuldades, sempre faziam um estoque de alimentos suficiente para boa parte dele, quase todo o dinheiro arrecadado com as caçadas eram investidos nesta provisão, deixando Bernard com poucas de peças de prata.
Em cerca de três horas o pequeno vilarejo já podia ser visto, a hora do almoço já tinha passado há certo tempo, ambos já sentiam o vazio na barriga que a fome ocasionava, afinal, não se alimentavam desde o café da manhã. 
Por volta das duas da tarde, chegaram à entrada, retiraram o capuz para que os habitantes os reconhecessem, o frio diminuíra, mas ainda era forte o suficiente para incomodar os músculos, pequenas gotículas de gelo cobriam as sobrancelhas dos caçadores, a barba de Bernard também se encontrava no mesmo estado. 
O vilarejo possuía cerca de setenta habitantes, as vielas eram pacatas e sem vida, a maioria dos residentes trabalhava apenas para o próprio sustento, poucos almejavam uma vida luxuosa. As casas em sua maioria foram construídas com pedras acinzentadas, polidas e trabalhadas para que se encaixassem perfeitamente, as coberturas feitas com madeira e palha, dando um aspecto mais bem trabalhado, as mais simples eram de madeira, com um teto rústico feito de palha e juncos. 
As estreitas ruas estavam repletas de neve, poucas crianças brincavam nos cantos das casas, lançando neve umas contra as outras, as mais observadoras pararam por alguns instantes ao ver a carroça, os olhos brilhavam em admiração. os caçadores sempre despertavam este sentimento, para algumas crianças eram como heróis.
- Vamos direto ao açougue, devemos conseguir uma boa quantia, com o dinheiro iremos comprar os pães e o seu desejado vinho – Resmungou Bernard sentindo o cansaço da viagem.
- Pelo jeito que fala parece que sou o único que desejo beber... Vamos almoçar aqui hoje não é? Estou com muita fome – Disse Adrian passando a mão na barriga.
- Iremos comer alguns pães com carne seca na taberna, o cervo e o vinho ficam para a janta. 
Passados poucos minutos, o pequeno açougue foi avistado, era um pouco maior que uma casa convencional feita de madeira, em frente ao local estava um homem de baixa estatura e com certo sobre peso, já de idade avançada, alguns cabelos ralos e brancos na lateral da cabeça, seu rosto era arredondado e bastante rosado, os pequenos olhos castanhos observavam as ruas com atenção, ao ver Bernard acenou vigorosamente.
- Olá Bartô, meu velho amigo, como andam as coisas? – Disse Bernard estirando a mão para cumprimentar o homem.
- Bernard! Que surpresa! Há quanto tempo, o movimento anda fraco, o tempo é de escassez, o inverno acaba com o comercio das carnes como você já sabe... – Respondeu desanimado enquanto apertava a mão do amigo.
- Realmente o inverno nos castigou bastante este ano, mas anime-se homem! As coisas irão melhorar, trouxe aqui dois cervos para você revender, o que me diz? – Perguntou Bernard, estendendo a mão para mostrar os animais abatidos.
O homem olhou espantado para a carroça, ainda não havia reparado nos animais, a vila era desprovida de caçadores e toda carne disponível era supervalorizada, boa parte das hortaliças também se perderam com o inverno, o que atraía ainda mais clientes para o comércio das carnes.
- Meu caro Bernard, você sempre eficiente! – Sorriu o homem olhando para os frutos da caçada. – Com certeza irei comprá-los, o preço de sempre? Não... Melhor, irei pagar cinco moedas de prata a mais, devido à dificuldade da caça, concordas? – Perguntou Bartô bastante animado.
- Esta de bom tamanho, amanhã é o aniversário do garoto, iremos comprar algumas bebidas e alguns pães de boa qualidade para comemorar, são sessenta peças de prata não é isso?
- Que boa notícia, minhas felicitações adiantadas jovem Adrian, ainda devo ter alguma quantidade de carne seca, aceite-a como presente – Falou Bartô indo em direção a Adrian para cumprimentá-lo. - Sim Bernard, o preço é este, irei pegar o dinheiro e a carne, com sua licença! 
Adrian apertou a mão do homem e deu um leve sorriso em agradecimento, dado com dificuldade, a fome estava tirando seu bom humor, Bernard também demonstrava impaciência, em alguns instantes Bartô retornou com um saco de couro em mãos repleto de moedas, sessenta no total, mas não trouxe a carne que tinha sido oferecida.
- Meu amigo, desculpe-me, a carne já se esgotou, mas tenho uma idéia melhor, o que me diz de almoçarmos em minha casa e botarmos a prosa em dia? – Perguntou enquanto entregava o saco de moedas a Bernard.
- Não tem problema Bartô... Quanto ao seu convite, eu aceito de bom gosto, estamos com muita fome não é Adrian?
- Com certeza, não vejo a hora de comer! – Disse Adrian empolgado com a notícia.
- Que bom! Bem que notei que estavam impacientes com alguma coisa! Vamos descarregar os cervos para dentro e partimos para minha casa – Falou Bartô arregaçando as mangas para ajudar a pôr os animais no açougue.
- Pode deixar, Adrian colocará os animais em seu estabelecimento, ele é jovem e cheio de energia, ele adora ajudar – Disse Bernard com um sorriso malicioso.
- É verdade, o garoto está cada vez mais forte! O tempo passa muito rápido não é mesmo? Agora somos velhos e não conseguimos mais realizar algumas atividades corriqueiras – Sorriu Bartô, observando Adrian descer da carroça e começar o transporte dos animais.
- Malditos velhos! – Sussurrou para sim mesmo enquanto carregava os animais. 
Adrian terminou de colocar os animais no açougue sem dificuldade, tentando esconder a sua raiva, sabia que Bernard estava rindo por dentro.
- Terminei – Anunciou Adrian – Podemos ir agora?
- Claro que sim meu jovem, obrigado por sua ajuda, minha esposa deve estar impaciente me esperando para o almoço! – Sorriu Bartô à medida que caminhavam para sua casa.
Ao se aproximarem da residência, Adrian avistou uma mulher com certa idade e um pouco fora de forma, possuía cabelos longos e pretos, mas os fios brancos já se tornavam evidentes, sua pele era alva e as bochechas um pouco murchas, seus olhos eram escuros que possuíam uma expressão nada amigável, a esposa de Bartô caminhava impacientemente de um lado para o outro, ao avistar a carroça e o seu marido nela sua preocupação se dezfez.
- Porque demoraste tanto Bartô? – Esbravejou a senhora ignorando a presença das visitas.
- Acabei perdendo a hora Julia, me desculpe, porém trago boas notícias, estes bons caçadores me trouxeram dois cervos agora a pouco, amanhã já devemos estar com um bom dinheiro! – Informou entusiasmado.
- Que ótima notícia! Vamos almoçar! Desculpem-me a falta de educação rapazes, mas as coisas andam um pouco perigosas por aqui, vamos entrar! – Falou Julia convidando todos a entrar.
Bernard amarrou seu cavalo ao lado da casa e os seguiu, era feita de madeira, simples, porém, bem decorada, com uma grande quantidade de cortinas e tapetes, tornando o ambiente mais aconchegante. 
Bernard se mostrou intrigado com o que Julia falara, a vila tinha tornou-se perigosa em tão pouco tempo? Já Adrian não demonstrou interesse algum pela informação, tomado por seu desejo de comer, não conseguia pensar em outra coisa. A mesa da cozinha era de porte médio, apesar da época de escassez de alimentos, a casa de Bartô estava bem servida, uma boa quantia de pão, vinho, sopa e carne estavam dispostas sobre a mesa.
- Deixe que eu os sirva – Disse a senhora tomando a frente dos pratos e colocando um pouco de cada alimento para seus visitantes.
Adrian e Bernard somente assentiram com a cabeça eram servidos, mal podiam esperar para comer, o cheiro era estonteante.
– Finalmente! Hora de comer! – Falou Bartô.
Todos os presentes concordaram com água na boca, realizaram seus agradecimentos em voz baixa e em seguida, comeram, durante vários minutos o único som que se ouvia eram os talheres se movimentando rapidamente. 
Após o término da refeição Julia novamente tomou a frente, recolheu todos os pratos e partiu em direção a cozinha.
- A comida estava muito boa Bartô, agradeço a sua hospitalidade – Declarou Bernard com um sorriso satisfatório, Adrian também possuía a mesma expressão.
- É sempre uma honra recebê-los em minha casa, direi seus agradecimentos a Julia, a comida estava realmente boa.
- Concordo plenamente! Meu caro amigo, mas mudando de assunto... Sua esposa disse algo sobre a vila não ser mais segura não é mesmo? O que houve? – Indagou Bernard.
- Infelizmente é a verdade... Nos últimos três meses, três moças foram encontradas nos arredores da floresta... Todas tinham os mesmos sintomas, estavam pálidas e apresentavam duas pequenas perfurações em seu pescoço, suas veias estavam dilatadas e roxas, também apresentaram febre e fortes dores antes de morreram agonizando, foi algo terrível! O único médico que temos disse que nunca tinha visto algo como isto... Que poderia ser alguma espécie de besouro, ou outro tipo de animal desconhecido, desde então as pessoas tem evitado as ruas à noite e também a floresta.
Adrian escutou com curiosidade, não acreditou na existência de tal besouro, afinal, tinha nascido na mesma região e desde criança visitava a floresta, nunca tinha visto um algo semelhante. Bernard já sabia do que se tratava, antes mesmo que Bartô terminasse a história.
- O que acha? Bastante estranho não? – Perguntou Bartô incomodado com o silêncio de Bernard.
- Com certeza, se forem realmente besouros, temos que exterminá-los, amanhã darei uma olhada na floresta – Falou Bernard com seriedade. – Em que parte da floresta precisamente as moças foram encontradas?
- Todas próximas a taberna! Por falar nela... Agora tem um novo dono, seu nome é Carlo, o estabelecimento ganhou uma nova cara, melhor organizada, também com belas mulheres, seu neto iria gostar de se divertir lá – Disse Bartô em voz baixa.
Bernard pensou durante alguns segundos, como a ignorância humana a cegava diante da verdade iminente.
- É mesmo? Que boa notícia Adrian, quem sabe amanhã à noite não fazemos uma visita ao local – Falou Bernard em voz baixa com um leve sorriso.
- Verdade, você está velho demais para isso, deixe a diversão para mim! – Falou Adrian dando uma breve risada, Bartô não se conteve e também gargalhou.
- Seu neto é uma figura! – Disse ainda sorrindo.
- Sem dúvida ele é... – Falou Bernard bem humorado dando uma tapa na cabeça de Adrian. - Infelizmente precisamos partir, chegaremos somente ao final da tarde em casa, quanto mais demorarmos por aqui pior, não quero correr o risco de minha carroça quebrar a noite.
- É uma pena, é sempre bom revê-lo Bernard, irei descansar um pouco, os espero amanhã, até mais! Boa viagem – Falou Bartô levantando-se da mesa e guiando os caçadores até a porta.
- Até mais Bartô, obrigado! – Despediu-se Bernard.
- Até mais! Obrigado pela comida! – Falou Adrian.
De volta à carroça, o cavalo trotava mais aliviado devido à redução da carga, seguiu lentamente pelas vielas tomadas pela neve. Estava ficando tarde e tinham que se apressar. Em pouco tempo compraram os pães e as bebidas, Bernard barganhou pelas mercadorias o máximo que pôde.
- Finalmente terminamos, vamos para casa garoto – Resmungou Bernard impaciente só de pensar nas três horas de viagem de volta.
- Demoramos mais do que o previsto, ao menos conseguimos almoço de graça – Sorriu Adrian, achando um ponto positivo em meio ao dia cansativo.
Os dois seguiram em silêncio, sonolentos com o leve balançar da carroça, o cavalo seguia em boa velocidade, logo estariam em casa.

O Caçador - As Trevas da VerdadeOnde as histórias ganham vida. Descobre agora