Como correu o teu dia?

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- E como correu o teu dia? - ela faz-lhe a pergunta inânime.

- ...como de costume. E o teu?

Ele está sentado à mesa. Arregaça as calças e olha lá para fora, a janela está aberta. As golfadas de calor entram pela cozinha dentro, ele passa a mão pela testa e desaperta dois botões da camisa. Em cima da banca de mármore, há um prato com um pedaço de fígado cru, muito reluzente que parece arfar quando ninguém está a olhar.

- Este calor vai matar-nos a todos - diz ele enquanto folheia uma revista feminina e leva à boca sementes de abóbora salgadas que tirava de um prato.

Arrepende-se logo de ter confessado tal coisa, é uma informação privilegiada à qual só ele tem acesso. Não pode partilhar este tipo de informação com ninguém, nem mesmo com a sua consorte. Ela pára de mexer o refogado e olha para o exaustor. Ele volta a página e olha para ela. Ela inclina a cabeça e dá um longo suspiro que é extraído imediatamente pelo exaustor. "O  suspiro". É projectada na parte de trás da cabeça dele a discussão que os dois tiverem na noite anterior. Ele sabe que deve dizer algo, não pode seguir aquele guião da "vida a dois". Ele olha de esguelha para o realizador que está à frente dos dois a ameaçá-lo com o olhar. Toda a equipa está de braços cruzados, excepto o cameraman e o assistente. Quase que consegue prever a saída intempestiva dela em direcção à sala. Parece que já a consegue ver a sentar-se no sofá, a passar a mão pelo cabelo, a tapar a cara, a "olhar" para a televisão, a levantar-se e a ir para o quarto a dizer "Não dá, não aguento mais isto", slaamm. A mala ameaçadora com um monte de roupa aos pés da cama. Já foram muito felizes, mas tudo tem um fim. Não, esperem, a velha intuição voltou, ele ainda vai a tempo:

- Vou contar-te como foi o meu dia - ele descola a amostra de perfume e fecha a revista.

O realizador deixa tombar a cabeça e entrelaça os dedos das mãos como um penitente. Depois lança os papéis ao ar. Salta da cadeira de realizador, pontapeia o tripé de um dos holofotes e desata a correr para o quarto, slaaaam, bate a porta com violência. O casal e toda a equipa ouve-o a bradar para as paredes:

"Quantas vezes é preciso repetir?! Quantas, meu Deus?! Proposição, engodo, ela! Réplica, ele! Tréplica ela! É sempre ela, não ele! Quantas vezes, quantas?!"

Seguem-se gemidos e depois um choro abafado, irritante. "É um realizador mimado, está habituado a que lhe façam as  vontadinhas todas", alguém da equipa diz em surdina.

Ela tira a mão da boca e olha sobre o ombro. Será que ouviu bem? Não desarma: continua a mexer devagar o refogado.

- Conhecia-a naquela paragem de tram, estava sozinha. Era mestiça e tinha o cabelo desfrisado, é assim que se diz? Usava uma bandolete cor-de-rosa e calças de ganga deslavadas, daquelas que já vêm rasgadas. Tentei não olhar para aquelas ilhotas de pele macia, dourada, acho que disfarcei muito mal, ela deu conta. Sentei-me na ponta do banco e fingi olhar para a tabuleta da paragem. Passava um ou outro carro. A moça estava muito concentrada a olhar para o meio da rua. Tirou um maço de tabaco e pôs-se a dar aquelas pancadinhas irritantes na base do maço. Não as suporto. Saltei do banco e resolvi ir a pé. Eram seis da manhã quando acordei, ainda estavas a dormir. Não me barbeei. Bebi um copo de água com uma daquelas tuas pastilhas de cálcio e vitamina D. Gosto do sabor e limpa-me a barriga. Já no elevador, lembrei-me daquela defesa impossível do guarda-redes da squadra azzurra, gosto de dizer squadra azzurra, e larguei-me de satisfação para o nosso vizinho do baixo, ouvi-o do outro lado das placas metálicas a dizer "merda". O gajo chamou o elevador, mas como não é destes modernos continuou a descer até ao R/C. Espalhei a fragrância com a mão e depois olhei-me de perfil ao espelho e enchi as bochechas de ar como um trompetista. Faço sempre isto para acordar.

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⏰ Última atualização: Sep 30, 2013 ⏰

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