|02| É No Escuro Que Os Pesadelos Ganham Vida

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A agitação das mulheres entre as quais estava deitada forçou Thera a despertar. Ainda de olhos fechados, a jovem sentiu os cascos de Sa'y embater contra as suas canelas enquanto esta se remexia sob os lençóis. Do outro lado, o peito nu de Anisa ardia contra o seu, dilatando e contraindo num ritmo frenético e atabalhoado.

— Nisa?

A sua mão não teve tempo de tocar no ombro a escaldar da amante. Anisa ergueu-se de repente, curvando-se sobre si própria. As garras, agora salientes, cravaram-se ao peito, arranhando como se quisessem abrir um novo caminho para trazer ar aos seus pulmões.

— Anisa!

Thera tentou parar as mãos da mulher-hiena enquanto estancava a hemorragia, mas a amante debatia-se, procurando soltar-se do aperto para continuar a esgravatar a pele. Parecia presa num transe, incapaz de recuperar os sentidos e parar a automutilação.

— Nisa! Para com isso, por favor! O que é que se passa?

A mulher-coiote, ainda a tentar que a Anisa cessasse o seu movimento, quis virar-se para trás e pedir ajuda a Sa'y. Afinal, ela é que era a curandeira. Porém, a mulher-veado começou a gritar de repente, como se uma dor lancinante a trespassasse. O seu corpo contorceu-se sobre a cama, acometido por convulsões, até atingir o limiar do colchão, caindo na pedra do pavimento por falta de apoio.

— Sa'y!

Sem pensar, Thera saltou na direção de Sa'y, entregando Anisa às consequências dos seus impulsos. A mulher-veado tinha as pernas enroladas nos lençóis, qual presa apanhada numa armadilha de caçador. Os olhos estavam revirados, como se quisesse ver o interior do próprio crânio, e a cabeça batia contra o solo ao ritmo das suas convulsões. Thera agarrou a cabeça de Sa'y pela nuca, tentando usar os dedos para aliviar a tensão no maxilar da herbívora, responsável pelo sangramento que escorria pelos cantos da sua boca.

— Sa'y, o que é que tens?

O olhar desesperado de Thera saltou entre as duas mulheres que amava. Ambas estavam a ferir-se a si próprias, manchando as peles com o próprio sangue. E Thera, perdida, não sabia como resolver a situação, ou sequer quem devia ajudar primeiro.

Os urros de Sa'y transformaram-se lentamente em bramidos e o arfar de Anisa ficou mais pesado antes de um baque chamar a atenção de Thera, que tinha perdido o olhar no seu entrono enquanto tentava traçar um plano. Anisa tinha caído para o outro lado da cama.

Thera colocou uma almofada debaixo da cabeça de Sa'y e trepou para cima do colchão. Contudo, não foi a companheira que ela encontrou do outro lado. Pelo menos não na forma que conhecia.

Com a mesma velocidade com que aquela situação tinha começado, o silêncio tornou a reinar no quarto. O ar estagnado tentava forçar a sua entrada nos pulmões de Thera, mas o espanto e o horror tinham-na levado a suster a respiração.

À sua frente estava uma criatura pouco maior que os póneis dos anões. O pelo sarapintado, as costas curvadas e o focinho negro não lhe eram familiares, mas Thera não precisava de olhar para os poucos traços de humanidade que restavam à criatura ou para a disparidade das escleras por detrás das íris laranja para compreender o que tinha acontecido. Anisa tinha-se transformado numa hiena. E se virasse as costas, verificaria que também Sa'y tinha assumido a forma da besta com que a sua espécie tinha mais parecenças.

O tempo pareceu congelar. Anisa sacudiu a cabeça, como se buscasse clareza. Atrás de si, Sa'y tentava suster-se nos cascos que rematavam as patas esguias e cambaleantes. Thera, incrédula, alternava o olhar entre elas.

A beastkin não era uma espécie transmorfa. O que quer que tivesse acontecido, não era natural.

Anisa fixou a figura esguia de Sa'y, e Thera percebeu demasiado tarde o significado daquele olhar. Quando a mulher-coiote saltou para se intrometer entre o veado e a hiena, já as duas criaturas tinham disparado em direção à porta do quarto.

A jovem suspirou, agradecendo mentalmente. Tinha sido um milagre os instintos primitivos de Sa'y tomarem conta do seu corpo no momento certo. De outro modo, o predador que minutos antes tinha sido Anisa teria provocado um trágico banho de sangue.

O som da mobília a ser atropelada denunciava a caçada que ocorria no interior da moradia. Thera sentiu os inúmeros falhanços de pôr fim à situação como murros no estômago até finalmente arranjar espaço para bloquear as investidas da hiena com o seu próprio corpo. Rosnando em ameaça para Anisa, Thera trancou a porta da divisão onde o veado se enfiou na sua fuga. Depois, sem nunca desfitar os olhos bicolores diante de si, a jovem avançou às arrecuas até à porta da frente.

Ao contrário das suas expectativas, Anisa saiu da moradia com extrema facilidade, atraída pela desgraça que tinha contaminado a cidade.

O nevoeiro que cobrira o cemitério horas antes tinha chegado até ali, limitando a visão de Thera. Porém, ainda que fosse demasiado espesso para permitir enxergar o que acontecia, não era suficiente para limitar a audição. Apenas pela cacofonia, Thera conseguia imaginar a carnificina que acontecia para lá da cortina de nuvens.

O ar estava recheado de sons de luta e de urros de dor. Não era difícil adivinhar que, assim como Anisa tentou atacar Sa'y, os beastkin carnívoros deveriam estar a adotar comportamentos das bestas que lhes conferiram a aparência até momentos antes. Como se aquilo que os diferenciava de meros animais se tivesse extinguindo.

Um estrondo no interior da casa levou Thera a abandonar a sua vontade de correr atrás de Anisa e tentar impedir que ela e outros beastkin lutassem entre si e levassem o que antes eram irmãos e amigos à morte. Com agilidade, a jovem ultrapassou os móveis derrubados até chegar à porta que tinha trancado. Os seus pés sentiram a corrente de ar que passava por baixo da estrutura de madeira, vinda da porta da frente. Porém, o seu cérebro só entendeu a situação quando os seus olhos viram a janela aberta e as cortinas a baloiçar ao vento.

Sa'y tinha partido o vidro e parte da moldura que o sustinha na busca pela liberdade. E agora estava entregue ao seu destino, perdida do meio do inferno que tinha virado a sociedade beastkin de pernas para o ar.

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Quando se roubam desejos de um último suspiro (⚢)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora