A escolha

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  O sol queima como as caldeiras do inferno, o coletivo esta lotado como se todos estivessem fugindo do apocalipse. Só mais um dia na cidade.

  Por sorte ele consegue um lugar sentado, coloca os fones na orelha e fecha os olhos, por sono e por não gostar muito do que eles lhe mostram. O cansaço de sua rotina e o balanço do ônibus fazem com que ele adormeça rapidamente, com as canções de praia em seus ouvidos.

Ele sente o cheiro de sal no ar, o sol queimando seu torso nu, ele está mais bronzeado do que se lembra e tem uma garota do seu lado que ele não faz idéia de quem seja. Embora ela seja maravilhosa, ele não se lembra dela.

Por isso ele ficou surpreso quando ela se levanta e o beija no lábios, lascivamente.

Quando o beijo termina, ela sussurra no ouvido dele:

- Ontem a noite foi ótimo, quero outra noite dessas em breve, hein? Antes de se afastar ela pressiona levemente seu corpo contra o dele e beija seu pescoço.

Ele se levanta logo depois disso, sentado em uma espreguiçadeira no meio de uma praia paradisíaca, de dentro do mar sai um rosto conhecido, um de seus melhores amigos sorri e senta-se ao lado dele, jogando a prancha de surf na areia.

- E aí, vai cair? As ondas tão uma beleza, cara.

Ele sorri, incrédulo, Tem anos que ele não vê seu amigo e nem sente aquele gosto na boca. Mesmo depois de anos, o gosto de ressaca ainda é o mesmo, amargo mas ao mesmo tempo doce, como o pecado e a culpa, bailando uma dança profana dentro da alma dele.

- Nem sei mais se ainda sei fazer isso. Ele olha ao lado da espreguiçadeira e lá está uma prancha de surf, do tipo havaiano, que ele queria comprar há tantos anos atras, quando aquilo era a sua maior paixão.

- Para de frescura, cai logo, cara. Algo dentro da cabeça dele sabe que tem algo de muito errado naquela situação, mas ele simplesmente se deixou levar, ele experimenta prazer e alegria demais para reflexões.

Ele sente o mar perfeito, rema com desejo para a arrebentação, quando a onda está em cima dele ele fica paralizado com a constatação do que estava errado naquele momento: seu melhor amigo, que naquele momento estava tomando sol na praia, na verdade tinha morrido a cinco anos, afogado em uma represa, depois de tentar nadar embriagado em uma das festas nas quais eles sempre iam juntos. Ele não tinha ido naquela, tinha ficado por causa do emprego em que estava.

A onda o acerta com forca, fazendo com que a prancha acerte sua cabeça algumas vezes. Ele começa a se sentir pesado e afundando, afundando...

Não sabe dizer se a água escura o deixa sem direção, se ainda está de olhos fechados, ou cegos, mas ele não enxerga nada e em um estalo uma noção perturbadora chega a sua mente: "vou morrer". A voz dentro da mente responde com um riso sarcástico e com uma pergunta:

"É o que você deseja?"

"Não. Eu amo a minha vida"

"Qual delas?"

"Somente uma delas e real, as outras são sonhos e alucinações"

"Você acha mesmo? E sabe dizer o que e real?"

Quando sente a água entrando pelos pulmões ele começa a se debater e então percebe que está no ônibus, com várias pessoas olhando-o, assutadas.

A pessoa ao seu lado, uma senhora de idade com um sorriso de avó, segura na mão dele e diz, com tom apaziguador.

-Teve um pesadelo, meu filho?

-Sonhei que estava morrendo...

-Não foi um simples sonho. Os olhos bondosos por trás dos óculos adquirem uma certa malícia, de alguém que sabe um segredo mas não sabe se deve dividi-lo. -Morremos todos os dias, e nem percebemos.

A escolhaWhere stories live. Discover now