Crime e Castigo (1866)

Autorstwa ClassicosLP

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Obra do russo Fiodor Dostoiewski. Więcej

Primeira Parte, Capítulo I
Primeira Parte, Capítulo II
Primeira Parte, Capítulo III
Primeira Parte, Capítulo IV
Primeira Parte, Capítulo V
Primeira Parte, Capítulo VI
Primeira Parte, Capítulo VII
Segunda Parte, Capítulo I
Segunda Parte, Capítulo II
Segunda Parte, Capítulo III
Segunda Parte, Capítulo IV
Segunda Parte, Capítulo V
Terceira Parte, Capítulo I
Terceira Parte, Capítulo II
Terceira Parte, Capítulo III
Terceira Parte, Capítulo IV
Terceira Parte, Capítulo V
Terceira Parte, Capítulo VI
Quarta Parte, Capítulo I
Quarta Parte, Capítulo II
Quarta Parte, Capítulo III
Quarta Parte, Capítulo IV
Quarta Parte, Capítulo V
Quarta Parte, Capítulo VI
Quinta Parte, Capítulo I
Quinta Parte, Capítulo II
Quinta Parte, Capítulo III
Quinta Parte, Capítulo IV
Quinta Parte, Capítulo V
Sexta Parte, Capítulo I
Sexta Parte, Capítulo II
Sexta Parte, Capítulo III
Sexta Parte, Capítulo IV
Sexta Parte, Capítulo V
Sexta Parte, Capítulo VI
Sexta Parte, Capítulo VII
Sexta Parte, Capítulo VIII
Epílogo

Segunda Parte, Capítulo VI

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Autorstwa ClassicosLP

No meio da rua estava parada uma carruagem, nobre e elegante, puxada por uma parelha de fogosos cavalos cinzentos; não levava ninguém dentro, e o cocheiro, que descera da boléia, estava ali, junto do carro; segurava os cavalos pelo freio, junto da boca. À volta juntara-se um círculo cerrado de pessoas, com dois polícias na primeira fila, um dos quais tinha uma lanterna na mão, e com ela, agachado, iluminava qualquer coisa na rua, mesmo junto da carruagem. Todos falavam, gritavam e lançavam ais; o cocheiro parecia perplexo e, de quando em quando, repetia: - Que pena, senhor, que pena!

Como pôde, Raskólhnikov abriu caminho por entre aquele aperto de gente e conseguiu finalmente ver qual era a causa de todo aquele rebuliço e curiosidade. No chão jazia, desmaiado, um homem que acabara de ser atropelado pelos cavalos, muito mal vestido, mas de maneira decente, todo ensopado em sangue, que lhe escorria da cara e dos cabelos; tinha a cara toda machucada, desfigurada, informe. Era evidente que o atropelamento fora grave.

- Bátiuchki - gritava o cocheiro -, como é que eu podia imaginar uma coisa destas! Se eu trouxesse os cavalos a galope, está bem; mas se eu ia a passo, por assim dizer, sem pressa! Todos vêem que eu não estou mentindo. Um bêbado não vê a luz, isso já se sabe... Eu o vi atravessar a rua aos tombos, quase caindo, e então gritei-lhe por uma, duas e até três vezes, e puxei as rédeas aos cavalos; mas ele veio mesmo direitinho meter-se debaixo das patas dos cavalos e caiu no chão. Parece mesmo que o fez de propósito, ou então estava completamente bêbado... Os cavalos são novos, espantadiços... Puxaram pelo freio. Ele deu um grito, os animais espantaram-se ainda mais e assim se deu a desgraça.

- Isso é verdade, foi assim mesmo! - exclamou entre a multidão alguma testemunha do sucedido.

- Ele gritou por três vezes, avisando, isso é verdade! - exclamou uma segunda voz.

- Por três vezes, com certeza, todos nós ouvimos - gritou uma terceira. Aliás, o

cocheiro não estava muito aflito nem assustado. Era evidente que a carruagem pertencia a algum potentado ricaço e conhecido, que devia estar à espera dele em alguma casa conhecida; os guardas, não havia dúvida que se preocupavam com a maneira de remediar esta última circunstância. A única coisa que faltava era transportar a vítima ao hospital. Ninguém sabia o seu nome.

Entretanto Raskólhnikov abriu caminho e agachou-se para olhar mais de perto. De repente, a lanterna iluminou em cheio o rosto do infeliz e então ele o reconheceu.

- Eu o conheço, conheço-o! - exclamou, aproximando-se da primeira fila. - É um funcionário aposentado: o conselheiro titular Marmieládov. Vive aqui perto, no edifício Kosel... Um médico, já! Eu pago! Aqui têm!

Tirou dinheiro do bolso e mostrou-o ao polícia. Estava comovido de espanto.

Os polícias ficaram muito satisfeitos quando souberam o nome do atropelado. Raskólhnikov disselhes também o seu, deu-lhes o endereço e tratou com o maior interesse da imediata remoção de Marmieládov para o seu domicílio.

- É ali, três prédios mais adiante - dizia -, a casa de Kosel, um alemão riquíssimo... De fato, devia estar embriagado, devia ir para casa. Eu o conheço... era um beberrão... Tem família, filha, uma filha. Daqui até que o levem para o hospital... ao passo que ali, em sua casa, por certo que deve haver um médico. Eu pago, eu pago! Seja como for, aquela é a sua casa, terá logo quem trate dele, ao passo que até chegar ao hospital pode morrer...

Até se apressou a meter uma moeda na mão dum dos polícias, embora o caso fosse claro e lícito e, em último caso, ali perto poderiam prestar-lhe auxílio. Ergueram o ferido e transportaram-no. Houve quem se prestasse a isso. A casa de Kosel ficava apenas a trinta passos dali. Raskólhnikov ia atrás, amparando-lhe a cabeça com muito cuidado e indicando o caminho. - Por aqui, por aqui! Quando subirem a escada é preciso porem-lhe a cabeça para a frente. Voltem-no... Assim! Eu pagarei tudo e ainda ficarei agradecido - murmurava.

Como de costume, assim que teve um momento livre Ekatierina Ivânovna pôs-se a dar voltas para um lado e para outro no quarto exíguo, da janela até o fogão e vice-versa, os braços cruzados e muito apertados contra o peito, falando sozinha e tossindo. Nos últimos tempos acostumara-se a falar mais freqüentemente com a filhinha mais velha, Pólienhka, que tinha dez anos e que, embora ainda não compreendesse muitas coisas, entendia que era necessária à mãe, e por isso a seguia sempre para todos os lados com seus olhos inteligentes e esforçava-se por imaginar tudo quanto poderia fazer para ajudá-la. Dessa vez, Pólienhka despira o irmãozinho, que estivera adoentado durante todo o dia, para o deitar. Enquanto lhe tirava a camisa, que queria deixar lavada nessa noite, o petiz permanecia sentado na cadeira, em silêncio, com uma expressão séria, direito e imóvel, com os pezinhos estendidos para a frente, os calcanhares juntos e os dedos para cima. Escutava o que diziam a mãe e a irmã, com os lábios abertos, uns olhos dilatados e sem se mexer, como de maneira geral costumam fazer todas as crianças sossegadas quando as despem para deitá- las. A outra irmãzinha, ainda menor, toda esfarrapada, estava de pé, junto do biombo, esperando a sua vez. Tinham aberto a porta que dava para o patamar, para se libertarem, ainda que fosse por pouco tempo, daquela atmosfera de tabaco ordinário que vinha dos outros quartos e que a todos os momentos fazia tossir longa e dolorosamente a pobre tísica. Ekatierina Ivânovna parecia ter emagrecido ainda mais nessa semana e as rosetas vermelhas das suas faces brilhavam agora mais do que antes.

- Tu não podes acreditar, não podes imaginar, Pólienhka - dizia, caminhando no quarto para um lado e para outro -, como era feliz e brilhante a vida em casa do papá, como esse bêbado foi a minha ruína e há de ser a vossa. O papá era funcionário civil, era quase governador, pouco lhe faltava para isso. De maneira que quase todos iam visitá-lo e lhe diziam: "Nós já o consideramos nosso governador, Ivan Mikháilovitch". Quando eu... liam! Quando eu... liam, liam, liam! Oh, maldita vida! - exclamou, expectorando e levando as mãos ao peito. - Quando eu... Ah! Quando no último baile... em casa do marechal da nobreza... a princesa Biesimiélnaial me viu... aquela que depois foi minha madrinha, quando me casei com o teu pai, Pólia... perguntou depois: "Essa linda moça não é a que dançou com o xale, quando saiu do colégio?" (É preciso coser esse buraco; podias pegar já a agulha e arranjares isso como te ensinei... ou então amanhã... liam! amanhã... liam! liam! liam! Já estará maior.) - exclamou, sufocada. - Nesse tempo chegara de Petersburgo o príncipe Chtchególski, que era um pajem e que dançou comigo uma mazurca, e no dia seguinte quis ver-me com qualquer pretexto; mas eu agradeci-lhe as suas frases amáveis e disselhe que o meu coração pertencia já a outro homem há muito tempo. Esse outro homem era o teu pai, Pólia: o meu pai ficou muito zangado... A água está pronta? Bem, dá- me cá a camisinha e as meias... Lida - e dirigia-se à filha mais nova -, tu, esta noite, dormes sem camisa e pões as meias de lado... Lavamos tudo junto... Mas quando é que chegará esse desastrado? Bêbado! Está com aquela camisa sabe-se lá há quanto tempo, e toda feita em farrapos... Queria lavar tudo junto para não passar duas más noites seguidas. Senhor... ha, ha, ha! Outra vez! Que será isto? - exclamou, ao ver um círculo de gente no patamar e uns indivíduos que se adiantavam transportando um vulto em direção ao seu quarto. - Que é isto? Que me trazem aqui? Meu Deus!

- Onde é que o pomos? - perguntou o guarda olhando à sua volta, assim que introduziram Marmieládov no quarto, ensangüentado e desmaiado. - No divã! Ponham-no no divã, com a cabeça para este lado! - indicou Raskólhnikov.

- Atropelaram-no na rua, bêbado! - gritou alguém no patamar. Ekatierina Ivânovna estava extremamente pálida e respirava dificilmente. Os petizes estavam assustados. A pequena Lídotchka gritava, apertava-se contra Pólienhka e abraçava-se a ela estreitamente, tremendo toda.

Depois de acomodar Marmieládov, Raskólhnikov olhou para Ekatierina Ivânovna.

- Por amor de Deus, acalme-se, não se assuste! - apressou-se a dizer-lhe. - Ia atravessando a rua e um coche atropelou-o; mas não se aflija: verá como há de recuperar os sentidos. Eu mandei que o trouxessem para aqui; eu, aqui há tempos, já estive em sua casa, não se lembra? Vai ver como recupera os sentidos! Eu pagarei tudo!

- Já o conseguiu! - gritou Ekatierina Ivânovna, desolada, e atirou-se sobre o corpo do marido.

Raskólhnikov reparou então que aquela mulher não era das que desmaiam logo. Colocou imediatamente uma almofada debaixo da cabeça do atropelado, coisa de que ninguém se lembrara; Ekatierina Ivânovna começou a despi-lo e pôs-se a examiná-lo bem, com muito cuidado e sem perder a serenidade, esquecida de si própria, mordendo os lábios trêmulos e contendo os gritos que queriam sair-lhe do peito.

Entretanto Raskólhnikov encarregou alguém dos presentes que fosse em busca do médico. Segundo parecia, este morava numa rua um pouco mais adiante.

- Mandei chamar um médico - disse a Ekatierina Ivânovna. - Não se aflija que eu pago. Não tem água? Dê-me também uma toalha, um pano qualquer, já; ainda não sabem onde está a ferida. Porque ele está só ferido, não está morto, pode ter a certeza... Vamos ver o que o médico diz.

Ekatierina Ivânovna correu à janela com ligeireza; aí, numa cadeira derreada, num canto, havia um grande alguidar de barro cheio de água, que estava preparado para a lavagem noturna da roupa das crianças e do marido. Essa lavagem noturna era a própria Ekatierina Ivânovna quem a fazia, por suas próprias mãos, pelo menos duas vezes por semana, e às vezes até mais freqüentemente, pois encontravam-se em circunstâncias tais que quase não tinham roupa branca para mudar e cada membro da família tinha apenas uma peça.

Ekatierina Ivânovna não podia suportar a sujidade, e preferia passar uns maus momentos, à noite, quando todos dormiam, para poder tirá-la depois, de manhã, do estendedouro, e entregá-la limpa, do que ver sujidade na casa. Atendendo às indicações de Raskólhnikov, pegou o alguidar, mas quase que o deixava cair, de tão pesado. Ele, entretanto, descobrira uma toalha, e ensopando-a em água pôs-se a lavar o rosto de Marmieládov, manchado de sangue.

Ekatierina Ivânovna permanecia de pé, respirando afanosamente e sustendo o peito com as mãos. Também ela precisava de assistência. Raskólhnikov começou a compreender que talvez tivesse feito mal em mandar levar para ali o ferido. Também o guarda se mostrava perplexo.

- Pólia - exclamou Ekatierina Ivânovna -, vai já chamar Sônia! Se não a encontrares em casa, não faz mal; deixa recado de que o pai foi atropelado por um coche e que venha imediatamente assim que chegar. Corre, Pólia! Toma, cobre-te com este lenço!

- Corre ligeira! - gritou-lhe de repente o rapazinho, da sua cadeira, e depois de dizer isso tornou a afundar-se no seu mutismo anterior; continuou muito direito, sentado na cadeira, com os olhos muito abertos, os calcanhares juntos e as pontas dos pés para fora.

Entretanto o quarto enchera-se completamente. Um dos guardas saiu, deixando o outro, o qual se esforçava por dispersar o público que se apinhara no patamar e fazê-lo retroceder para a escada. Depois, dos quartos interiores começaram a sair quase todos os hóspedes da senhora Lippewechsel, os quais se comprimiam à entrada da porta, acabando por entrar no quarto de tropel. Ekatierina Ivânovna ficou estupefata.

- Ao menos deixem as pessoas morrer em paz! - exclamou, encarando aquela multidão. - Querem é espetáculo! E com os cigarros! He, he, he, he! Só lhes falta trazerem o chapéu na cabeça! Olhein, ali está um com a cabeça coberta! Fora daqui! Um cadáver merece respeito!

Deu-lhe um ataque de tosse; mas a admoestação produziu efeito. Era evidente que os outros inquilinos tinham medo de Ekatierina Ivânovna; uns atrás dos outros, retrocederam para a porta, empurrando-se, com essa comoção íntima de satisfação que se observa sempre, até nas pessoas mais chegadas, à vista da inesperada desgraça do próximo, e à qual nenhum homem sem exceção escapa, apesar do mais sincero sentimento de piedade e simpatia.

Aliás, do outro lado da porta ouvia-se falar de hospital e de que não estava certo que se perturbasse assim, escusadamente, a tranqüilidade duma casa.

- O quê? Não está certo que se morra? - gritou Ekatierina Ivânovna, e ia já correndo para abrir a porta e lançar sobre toda aquela gente uma torrente de ralhos, quando esbarrou com a senhora Lippewechsel, que acabava de ser informada daquela infelicidade e acorria a restabelecer a ordem. Era uma alma enredadeira e indiscreta.

- Ah, meu Deus! - exclamou, erguendo os braços. - Os cavalos atropelaram-lhe o marido, que ia embriagado! Pois então para o hospital! Eu sou a senhoria!

- Amália Liúdvigovna! Peço-lhe que repare no que está dizendo - admoestou-a Ekatierina Ivânovna com altivez (falava sempre com altivez à senhoria, para que ela soubesse o lugar que ocupava), e nem naquele momento conseguiu privar-se dessa satisfação. - Amália Liúdvigovna!

- Já lhe disse por mais de uma vez que não me chame Amália Liúdvigovna, mas sim

Amal-Ivan!

- A senhora não é Amal-Ivan, mas sim Amália Liúdvigovna, e, como eu não pertenço a esse grupo de vis aduladores que a senhora tem, como o senhor Liebiesiátnikov, que tem o descaramento de estar aí atrás da porta neste momento - de fato, atrás da porta ouviram-se risos e uma voz que dizia: "Vão-se engalfinhar as duas" -, eu sempre lhe chamarei Amália Liúdvigovna, embora nunca consiga explicar a mim própria por que é que não gosta que a chamem assim. A senhora bem vê o que aconteceu a Siemion Zakháritch, que está morrendo. Peço-lhe que feche imediatamente essa porta e não deixe entrar aqui ninguém. Deixem-no, ao menos, morrer tranqüilo! Senão, previno-a de que amanhã mesmo levarei ao conhecimento do próprio general-governador a sua atitude. O príncipe conhece-me desde pequena e recorda-se muito bem de Siemion Zakháritch, ao qual algumas vezes concedeu alguns favores. Todos sabem que Siemion Zakháritch tinha muitos amigos e protetores, dos quais ele próprio se afastou por um sentimento de nobre orgulho, porque compreendia o infeliz vício que tinha; mas, agora - e apontou para Raskólhnikov -, há um senhor, jovem e generoso, que nos ajuda, que tem meios e relações, e que Siemion Zakháritch conheceu desde pequenino; e pode ter a certeza, Amália Liúdvigovna...

Disse tudo isso com extrema rapidez, que ia aumentando à medida que falava, até que um novo ataque de tosse veio interromper a eloqüência de Ekatierina Ivânovna. Nesse momento o moribundo voltou a si, lançou um gemido e ela correu para o seu lado. O ferido abriu os olhos e, embora ainda sem compreender nem reconhecer ninguém, ficou olhando para Raskólhnikov, que estava de pé à sua cabeceira. Respirava com dificuldade, num ritmo profundo e espasmódico; tinha um pouco de sangue nas comissuras dos lábios; o suor corria-lhe pela testa. Ainda sem ter reconhecido Raskólhnikov, começou a fixar sobre ele olhares inquietos. Ekatierina Ivânovna olhou-o com uns olhos tristes mas severos, dos quais corriam lágrimas.

- Meu Deus! Tem o peito todo esfacelado! Tanto sangue, tanto sangue! - exclamou, desolada. - É preciso tirar-lhe a roupa toda que tem em cima! Levanta-te um pouco, Siemion Zakháritch, se podes - gritou-lhe. Marmieládov reconheceu-a.

- Um padre! - exclamou com voz rouca.

Ekatierina Ivânovna dirigiu-se para a janela, encostou a testa ao vidro e exclamou:

- Ó vida três vezes maldita!

- Um padre! - tornou a pedir o moribundo, depois de um minuto de silêncio.

- Chega! - gritou-lhe Ekatierina Ivânovna.

Ele obedeceu à reprimenda e calou-se. Com uma expressão tímida e triste pôs-se a procurá-la com os olhos; ela voltou para o seu lado e colocou-se à sua cabeceira, de pé. Ele serenou um pouco, mas não por muito tempo. Não tardou que os seus olhos pousassem sobre a pequena Lídotchka (a sua preferida), que tremia num canto como se tivesse um ataque, e que o contemplava com os seus olhos atônitos, infantilmente fixos.

- A... a... - e apontou a menina com inquietação. Queria dizer qualquer coisa.

- Que é? - gritou Ekatierina Ivânovna.

- Descalça! Descalça! - murmurou, apontando com um olhar quase desmaiado os pés descalços da pequena.

- Ca... la-te! - gritou-lhe com repugnância Ekatierina Ivânovna. - Tu bem sabes por que é que ela está descalça!

- Louvado seja Deus! O médico! - exclamou Raskólhnikov com alvoroço. O médico entrou; era já velhinho, um alemão, que olhava com olhos receosos; aproximou-se do ferido, tomou-lhe o pulso, examinou-lhe a cabeça com muita atenção e com o auxílio de Ekatierina Ivânovna desabotoou-lhe a camisa, toda empapada em sangue, deixando-lhe o peito a descoberto. Estava todo machucado, ferido, dilacerado; viam-se algumas costelas quebradas no lado direito. No lado esquerdo, mesmo junto do coração, via-se uma grande mancha, amarelada e negra: o terrível sinal da patada do cavalo. O médico franziu o sobrolho. O polícia contou-lhe que o ferido fora apanhado por uma roda e arrastado uns trinta passos pela rua.

- É espantoso que tenha podido recuperar os sentidos - murmurou o médico em voz baixa, dirigindo-se a Raskólhnikov.

- Que lhe parece? - perguntou-lhe ele.

- Que está para soltar o último suspiro de um momento para o outro. - E não há nenhuma esperança?

- A mínima esperança. Está expirando. Demais, tem a cabeça gravemente ferida... Hum! Talvez se lhe pudesse fazer uma sangria... Mas seria inútil. Não tem mais do que cinco ou dez minutos de vida.

- Sangre-o, senhor doutor.

- Está bem, mas previno-o de que será completamente inútil. Nesse momento ouviram-se passos, o círculo dos curiosos abriu-se, no patamar, e à porta apareceu um sacerdote, um velhinho de cabelos brancos, que vinha trazer a extrema-unção. Atrás dele vinha um polícia, que o escoltara já na rua. O médico cedeu-lhe logo o seu lugar e trocou com ele um olhar significativo. Raskólhnikov pediu ao médico que esperasse um pouco. Aquele encolheu os ombros e esperou.

Todos se afastaram. A confissão foi muito rápida. O moribundo não dava coisa por coisa nenhuma; apenas podia proferir sons entrecortados, indistintos. Ekatierina Ivânovna pegou Lídotchka, levantou o pequenino da cadeira e, retirando-se com eles para um canto, junto do fogão, pôs-se de joelhos e obrigou também as crianças a ajoelharem à sua frente. Lídotchka tremia toda; e o menino, que estava sobre o chão com os seus joelhos nus, levantou maquinalmente a mãozinha, benzeu-se e dobrou-se até tocar no chão com a testa, o que parecia dar-lhe uma grande satisfação. Ekatierina Ivânovna mordia os lábios e reprimia as lágrimas; também ela rezava, arranjando de vez em quando a camisinha do petiz e indo buscar um xale que havia em cima da cômoda e deitando-o por sobre os ombros da menina, demasiado nus, sem se levantar nem deixar de rezar. Entretanto, forçada pelos curiosos, a porta que dava para os quartos interiores tornou a abrir-se.

No patamar amontoavam-se grupos cada vez mais densos de curiosos: inquilinos de todos os andares que, entretanto, não ultrapassavam os umbrais. Só uma lamparina iluminava a cena.

Nesse momento, Pólienhka, que chegava correndo, depois de ter ido avisar a irmã, abriu rapidamente caminho por entre as pessoas. Entrou, quase sem fôlego, da corrida veloz, tirou o lenço, procurou a mãe com os olhos, aproximou-se dela e disselhe: - Ela vem! Encontrei-a na rua!

A mãe obrigou-a a ajoelhar-se e reteve-a a seu lado. Uma mocinha deslizou por entre as pessoas, discreta e timidamente; e era estranha a sua presença inopinada naquele quarto, no meio daquela miséria e de todos aqueles farrapos, morte e desolação. Também ela estava modestamente vestida; o seu traje era barato, mas arranjadinho no estilo da rua, ao gosto e segundo as regras que regiam o seu pequeno mundo especial, consagrado a um fim declarado e vergonhoso. Sônia parou no patamar, mesmo junto da porta, mas não entrou e ficou olhando daí, como uma louca, aparentemente sem se aperceber de nada, esquecida até do seu vestido berrante, comprado em quarta mão, de seda, indecoroso em tal lugar, e com uma gola ridícula, e da enorme crinolina que abrangia todo o vão da porta, e das suas botinas de cor, da sua pequena sombrinha, desnecessária de noite, mas que trazia consigo, e do seu grotesco chapelinho de palha, com uma brilhante pena cor de fogo. Por debaixo desse chapelinho, inclinado a um lado, como usam as crianças, assomava uma carinha fria, pálida e assustada, com a boquinha aberta e uns olhos imóveis de espanto. Sônia era de pequena estatura, de uns dezoito anos, delgadinha; mas, no conjunto, era uma loira bastante graciosa, com uns olhos azuis que chamavam a atenção. Olhava o divã, o sacerdote, de alto a baixo; respirava também apressadamente, devido à corrida que dera. Até que finalmente devia ter chegado até junto dela um cochichar, algumas palavras saídas de entre a multidão. Baixou a cabeça, avançou um passo transpondo a entrada e encontrou-se no quarto, mas ainda próximo da porta.

A confissão e a comunhão tinham acabado. Ekatierina Ivânovna tornou a aproximar-se do leito do marido. O sacerdote afastou-se e, ao retirar-se, voltou para dizer duas palavras de auxílio e consolo a Ekatierina Ivânovna.

- E para onde vou eu, agora, com estas crianças? - disselhe ela numa voz cortante e irritada, mostrando-lhe os pequenos.

- Deus é misericordioso; confie no auxílio do altíssimo! - começou o sacerdote.

- Ah! Misericordioso, sim, mas não para nós!

- Isso é pecado, isso é um pecado, senhora! - observou o sacerdote, movendo a cabeça.

- E isto não é pecado? - exclamou Ekatierina Ivânovna, apontando para o moribundo.

- Pode ser que aqueles que involuntariamente lhe causaram a morte cheguem a indenizá-la, ainda que seja apenas pela perda dos seus ganhos... - O senhor não me compreende! - exclamou Ekatierina Ivânovna irritada, agitando as mãos. - Por que haviam de indenizar-me, se foi ele mesmo que, embriagado, se foi meter debaixo das patas dos cavalos? Quais ganhos? Não recebia nada dele, só me dava tormentos. O bêbado gastava tudo na bebida! Roubava-nos para ir gastar tudo na taberna. Gastava a vida dele e a minha pelas tabernas. Graças a Deus que morreu, finalmente! É uma despesa a menos!

- Deve perdoar-lhe na hora da morte; e isso é pecado, senhora, esses sentimentos são um grande pecado!

Ekatierina Ivânovna era incansável junto do doente: dava-lhe de beber, enxugava-lhe o suor e o sangue da cabeça, endireitava-lhe a almofada e discutia com o sacerdote, voltando-se de vez em quando para olhar para ele, sem abandonar a sua tarefa. Agora, de repente, dirigiu-se a ele quase com repugnância: - Ah, bátiuchka! Uma palavra, só uma palavra! Perdoar! Andava sempre bêbado, como é que não haviam de atropelá-lo? Não tinha senão uma camisa, toda rota, ou, para melhor dizer, um farrapo, com a qual havia de dormir esta noite, enquanto eu ficaria até de madrugada com as mãos metidas na água, lavando a sua roupa e a das crianças, e depois havia de ir estendê-la na varanda, e de manhã havia de me ir pôr a passá-la... aí tem o senhor o que teria sido a minha noite! E ainda me vem falar de perdão! Se bem que, afinal, eu já lhe perdoei...

Uma tosse profunda, terrível, cortou as suas palavras. Tossiu sobre o lenço e mostrou-o depois ao sacerdote, apertando dolorosamente o peito com a outra mão. O lenço estava manchado de sangue...

O padre baixou a cabeça em silêncio e não disse nada. Marmieládov estava na agonia; não tirava os olhos do rosto de Ekatierina Ivânovna, que tornara a inclinar-se sobre ele. Queria dizer qualquer coisa e ainda começou fazendo um esforço para mover a língua; mas Ekatierina Ivânovna, compreendendo que o que ele queria era pedir-lhe perdão, gritou-lhe imediatamente com uma voz imperiosa: - Ca... la-te! Não é preciso! Eu sei o que tu queres dizer!

E o doente calou-se; mas nesse mesmo momento, o seu olhar errante foi pousar-se na porta e viu Sônia.

Até então não reparara nela; estava num canto, encostada à parede. - Quem é aquela? Quem é aquela? - exclamou, de repente, com uma voz estertorante, sobressaltado, apontando espantado para a porta onde estava a filha e esforçando-se por se erguer.

- Deita-te! Deita-te... e... e! - gritou-lhe Ekatierina Ivânovna.

Mas ele, com forças sobre-humanas, conseguiu apoiar-se sobre uma mão. Contemplou durante algum tempo a filha, ansiosa e fixamente, como se não a reconhecesse. Até então, nunca a vira vestida daquela maneira. De repente reconheceu-a, humilhada, abatida e envergonhada dentro dos seus atavios, esperando placidamente que chegasse a sua vez de despedir-se do pai moribundo. Uma dor imensa se refletia no seu rosto.

- Sônia... Filha... Perdoa-me! - exclamou ele, e estendeu-lhe a mão; mas, como perdeu o apoio, resvalou, caiu do divã e rolou de cabeça para o chão; acorreram a levantá- lo, deitaram-no outra vez, mas estava já expirando.

Sônia lançou um pequeno grito, correu para abraçá-lo e nesse abraço ele soltou o último suspiro.

- Acabou! - exclamou Ekatierina Ivânovna ao ver o cadáver do marido. - Bem, agora que se há de fazer? Com que hei de eu amortalhá-lo? E a estes, que lhes hei de dar de comer amanhã?

Raskólhnikov aproximou-se de Ekatierina Ivânovna.

- Ekatierina Ivânovna - começou a dizer-lhe -, a semana passada, o seu falecido marido contou-me toda a sua vida e todas as suas circunstâncias... Pode ter a certeza de que falou da senhora com orgulho respeitoso. Desde essa noite em que eu pude ver até que ponto ele gostava de todos vós, e especialmente da senhora, Ekatierina Ivânovna, a respeitava e amava, apesar da sua lamentável fraqueza, desde essa noite ficamos amigos... Dê-me licença agora... que eu contribua... cumprindo o dever que tenho para com o meu defunto amigo. Aqui tem... vinte rublos, julgo que... e se pudesse ser-lhe útil em qualquer coisa... Enfim, tornarei a passar por aqui... Sim, sim, hei de passar, com certeza. Talvez passe já amanhã... Adeus!

E saiu rapidamente do quarto, abrindo como pôde caminho por entre as pessoas, até a escada; mas no patamar encontrou de repente Nikodim Fomitch, que já tomara conhecimento do desastre, e desejava ser ele a adotar pessoalmente as disposições necessárias. Desde aquela cena no comissariado que não tornara a vê-lo; mas Nikodim Fomitch reconheceu-o imediatamente.

- O quê? É o senhor? - perguntou-lhe.

- Morreu - respondeu-lhe Raskólhnikov. - Veio o médico, veio o padre; correu tudo como devia ser. Não aflija muito a pobre viúva, pois já lhe chega estar tísica. Procure animá-la com qualquer coisa, se puder... Segundo me consta, o senhor é boa pessoa... - acrescentou com um sorriso, olhando-o nos olhos.

- Mas o senhor está todo manchado de sangue! - observou Nikodim Fomitch, reparando, à luz do lampião, numas manchas frescas recentes, que havia no colete de Raskólhnikov.

- Sim, manchei-me... Estou todo salpicado de sangue! - confirmou Raskólhnikov

com um gesto especial, depois do que sorriu, fez uma inclinação de cabeça e continuou a descer as escadas.

Descia devagar, imperturbável, mas febril e sem se aperceber disso, tomado de uma comoção nova, transbordante, que, como uma onda de vida "plena e poderosa, o invadia de repente. Essa comoção podia comparar-se com a que experimenta o condenado à morte, ao qual, de súbito e do modo mais inesperado, participam o indulto. Quando ia a meio da escada foi alcançado pelo sacerdote, que voltava para casa; em silêncio, Raskólhnikov deixou-o passar adiante, trocando com ele uma saudação silenciosa. Mas ia já pondo os pés nos últimos degraus, quando sentiu de repente uns passos apressados atrás de si. Alguém se esforçava por alcançá-lo. Era Pólienhka que corria atrás dele e o chamava: - Escute! Escute!

Voltou-se. A pequenina desceu correndo os últimos degraus e ficou parada na frente dele, um degrau mais acima. Do pátio vinha uma luz fraca. Raskólhnikov contemplou a carinha da menina, vincada mas bonita, que lhe sorria alegre, infantilmente, e o olhava. Tinham-na mandado com alguma incumbência que, entretanto, não devia agradar-lhe muito.

- Escute, como se chama? E onde é que mora? - perguntou com uma voz ofegante.

Ele lhe pôs as mãos sobre os ombros e olhou-a com certa beatitude: era-lhe tão agradável olhar para ela, sem que, no entanto, soubesse por quê!

- Quem é que te mandou vir ter comigo?

- Foi a minha irmã Sônia - respondeu a menina, sorrindo-lhe ainda com mais agrado.

- Já sabia que foi a tua irmã Sônia que te mandou.

- A minha mámienhka também me mandou. Quando a minha irmã Sônia estava a dar-me o recado, a mãezinha chegou também e disseme: "Corre depressa, Pólienhka!"

- Gostas muito da tua irmã Sônia?

- É a pessoa de quem gosto mais no mundo! - afirmou Pólienhka com uma convicção especial, e, de repente, o seu sorriso tornou-se mais sério. - E de mim, também és capaz de gostar?

Como resposta ela aproximou a sua carinha, com os lábios grossos ingenuamente estendidos para beijá-lo. De repente as suas mãozinhas, extremamente finas, puxaram por ele com força, com muita força, a sua cabeça pendeu sobre o ombro dele e a pequenina começou a chorar mansamente, apertando cada vez mais contra ele a sua carinha.

- Meu pobre paizinho! - exclamou, passado um minuto, erguendo a carinha chorosa e enxugando as lágrimas com as mãos. – Aconteceram-nos hoje tantas desgraças! - acrescentou de repente, com esse gesto especialmente sério que as crianças tomam forçadamente quando querem falar com gente grande.

- Papai gostava de vocês?

- De quem ele gostava mais era de Lídotchka - continuou ela muito séria, sem um sorriso, tal como se exprimem as pessoas adultas -, porque é a menor e também porque está doentinha; trazia-lhe sempre uma prenda; a nós, ensinava-nos a ler e a mim ensinava-me gramática e a Lei de Deus - acrescentou com dignidade. - A mãe não dizia nada; mas nós sabíamos que isso lhe agradava e o pai também sabia; a mãe, agora, quer que eu aprenda francês, porque já é tempo de instruir-me.

- E rezar, sabes?

- Com certeza que sabemos! Há muito tempo; eu, como sou mais velha, rezo sozinha; mas Pólia e Lídotchka rezam com a mãezinha; primeiro a Salve-Rainha, e depois uma oração que diz: "Senhor, perdoa e abençoa a nossa irmã Sônia", e depois também: "Senhor, perdoa e abençoa o nosso paizinho", porque o nosso outro pai já morreu, e este de agora é outro, e nós também rezamos por ele.

- Pólietchka, eu me chamo Rodion. Pede também algumas vezes a Deus por mim, pelo seu servo Rodion... só isto.

- Daqui em diante rezarei sempre pelo senhor - disse a pequenina com veemência, e de repente tornou a rir-se, atirando-se contra ele e voltando a abraçá-lo fortemente.

Raskólhnikov disselhe o seu nome, deu-lhe o endereço e prometeu-lhe que passaria por ali, sem falta, no dia seguinte. A pequenina separou-se dele cheia de entusiasmo. Eram onze horas quando ele chegou à rua. Passados cinco minutos estava já na ponte, precisamente no mesmo lugar em que a tal mulher se atirara à água.

- Basta! - exclamou com energia e entusiasmo. - Fora com ilusões, com medos absurdos, com visões! Ah, a vida! Não vivi eu, por acaso, há um momento? A minha vida não morreu ao mesmo tempo que a da velha viúva! Ela está no céu e... Já chega, velhota; agora já é tempo de deixar os outros em paz! Que agora comece o reino da razão e da luz, da liberdade e da força, e depois veremos! Vamos ver qual de nós é que ganha! - acrescentou com altivez, como se se dirigisse a alguma força oculta, em atitude de desafio.

- Eu já me resignei a viver em um archin de terreno! Neste momento estou muito fraco; mas parece que a doença me passou completamente. Eu já sabia que isto havia de ser assim, quando saí. E a propósito: a casa de Potchínkova fica a dois passos daqui. É infalível que hei de ir ver Razumíkhin e, ainda que não estivesse a dois passos, iria da mesma maneira... Que ganhe a aposta! Que se divirta à minha custa... não há outro remédio! O que é preciso é energia, energia; sem energia não se consegue nada; e a energia obtém-se com a própria energia, eis o que muitos não sabem - acrescentou, ufano e convencido, e, mal podendo mexer os pés, afastou-se da ponte.

A ufania e uma altiva dignidade apoderavam-se dele a cada instante, de tal maneira que, de um momento para o outro, não era já a mesma pessoa que no minuto anterior. Mas que lhe acontecia de especial para ter mudado assim? Nem ele mesmo sabia. Como um náufrago que se agarra a uma tábua, parecia-lhe de repente que também ele poderia viver, que ainda lhe restava vida, que a sua vida não morrera juntamente com a da velha viúva. Pode ser que se tivesse apressado muito a tirar essa conclusão, mas não se detinha a pensar nisso.

"Pelo servo Rodion já eu pedi, apesar de não ter rezado", foi o pensamento que lhe passou pela cabeça. "Bem... quanto a isso... foi por acaso", acrescentou, e sorriu da sua infantil lembrança. Estava numa excelente disposição de espírito.

Foi-lhe fácil encontrar Razumíkhin: na casa Potchínkova conheciam já o novo vizinho, e o porteiro ensinou-lhe imediatamente o caminho do quarto. No meio da escada ouviu logo o burburinho e a animada conversa de uma reunião numerosa. A porta do andar estava completamente aberta: ouviam-se vozes e barulho de discussões. O quarto de Razumíkhin era bastante espaçoso e estavam nele reunidas quinze pessoas. Raskólhnikov parou no vestíbulo. Do outro lado do tabique, dois criados do dono da casa andavam atarefados em volta de dois grandes samovares, com garrafas, bandejas e pratos carregados de massas alimentícias e aperitivos, trazidos da cozinha do dono da casa. Raskólhnikov mandou chamar Razumíkhin. Este acorreu logo, pressuroso. Percebia-se à primeira vista que tinha bebido um pouco a mais e, embora Razumíkhin nunca bebesse até ficar embriagado, dessa vez notava-se um pouco.

- Ouve - apressou-se a dizer-lhe Raskólhnikov -, vim apenas para dizer-te que ganhaste a aposta e que, de fato, ninguém é capaz de saber o que pode acontecer-lhe. Mas entrar, não entro; estou tão fraco que me sinto quase desfalecer. Por isso, saúde e adeus! Mas, amanhã, não deixes de me ir ver.

- Olha, vou acompanhar-te a casa. Se tu próprio dizes que estás tão fraco...

- E os convidados? Quem é esse indivíduo de cabelos loiros que ainda agora estava olhando para aqui?

- Esse? Sei lá! Deve ser um amigo do meu tio, mas também pode ser que tenha vindo sozinho... O meu tio, que é um homem admirável, ficará com eles; é pena que eu não te possa apresentá-lo agora. Mas, no fim de contas, que vão todos para o diabo! Neste momento não me preocupo com eles, e, além disso, preciso de tomar um pouco de ar; chegaste mesmo a propósito: mais dois minutos e ter-me-ia zangado com todos... juro-te! Sempre dizem tais mentiras... Não podes imaginar até que ponto o homem é capaz de mentir. Embora, no fim de contas, nos apercebamos muito bem! Por acaso não mentimos nós também? Bem, pois que mintam; em compensação, depois já não hão de mentir... espera um minuto que vou buscar Zósimov.

Zósimov veio afanosamente ao encontro de Raskólhnikov; notava-se-lhe uma curiosidade especial, e não tardou que o rosto se lhe iluminasse. - Já para a cama - decidiu, depois de examinar o melhor possível o doente. - Seria conveniente que tomasse qualquer coisa durante a noite, não acha? Eu arranjei... um papelinho...

- Ainda que fossem muitos - respondeu Raskólhnikov. Tomou ali mesmo o conteúdo do papelinho.

- Fazes muito bem em acompanhá-lo - observou Zósimov, dirigindo-se a Razumíkhin. - Veremos como é que ele está amanhã, mas, por hoje, a coisa não vai mal, há um progresso notável de ontem para hoje. Um século de vida, um século de aprendizagem...

- Sabes o que me dizia há pouco Zósimov, em voz baixa, quando nós saíamos? - disselhe Razumíkhin assim que se viram na rua. - Eu, meu caro, vou dizer-te tudo francamente, visto que eles são todos uns tolos. Zósimov mandou-me que fosse falando contigo pelo caminho e te fosse puxando pela língua, e depois lhe contasse tudo, pois diz que tem uma idéia: que tu estás doido ou pouco menos. Imagina! Em primeiro lugar, tu és três vezes mais inteligente do que ele; e, além disso, uma vez que não estás louco, devias não te importar com essa idéia dele; e, em último lugar, ele é um bruto e cirurgião de ofício, e deu-lhe agora para se intrometer nas doenças mentais e, pelo que te diz respeito, a tua conversa de hoje com Zamiótov desorientou-o completamente.

- Zamiótov contou-te tudo?

- Tudo, e fez muito bem. Agora já compreendo todos os pormenores do assunto, e o mesmo acontece a Zamiótov... Sim, de fato. Em resumo, Rodka, no fundo... Eu, agora, estou um pouco tocado... Mas não importa... No fundo, essa idéia... compreendes?... De fato, tinha-se arraigado neles, compreendes? É claro que eles nunca se atreveram a exprimi-la em voz alta, porque se trata de uma estúpida tolice, e sobretudo, quando prenderam esse pintor de paredes, tudo isso se desfez no ar e acabou para sempre. Mas por que serão eles tão idiotas? Eu, nessa altura (meu amigo, isto fica entre nós), fi-lo dar à língua, não digas isto a ninguém e não te dês por achado perante ele; já reparei que és um bocadinho vaidoso; reparei nisso em casa de Lavisa... Mas hoje, hoje, ficou tudo claro. A principal culpa foi desse Iliá Pietróvitch. A princípio aproveitou-se do teu desmaio no comissariado, mas, depois, ele próprio se sentiu envergonhado: parece-me que...

Raskólhnikov escutava-o com ansiedade. Razumíkhin, na sua bebedeira, falava pelos cotovelos.

- Eu desmaiei por causa da atmosfera pesada e do cheiro de pintura fresca que havia lá - disse Raskólhnikov.

- E ainda estás com explicações! Mas é que não há só a questão da pintura: havia um mês que a congestão estava em incubação, Zósimov pode afiançá-lo! Mas não podes imaginar como ele está abatido, coitado! "Nem sequer chego aos calcanhares dele!" Este "ele" eras tu! Às vezes, meu amigo, aparenta bons sentimentos. Mas a lição de hoje, a lição de hoje no Palácio de Cristal foi o cúmulo da perfeição. Começaste por meter-lhe medo, por fazer com que ele sentisse calafrios. Chegaste quase a obrigá-lo a obstinar-se de novo em todo esse monstruoso disparate e, depois, de repente, escapaste-te e puxaste-lhe pela língua. Vamos, vamos, ó diabo, já o apanhei! Ótimo! Agora está contrafeito, acabrunhado! És um mestre; e é assim que é preciso proceder com essa gente! Oh, por que não estaria eu presente? Esperava-te com uma impaciência horrível. Porfíri também queria conhecer-te...

- Ah! Esse também! Mas... por que se lhes teria metido na cabeça que estou louco?

- Mas eles, verdadeiramente, não dizem que tu estás louco. Parece-me que eu, meu amigo, já dei demais à língua contigo... O que impressionou, fica sabendo, é que, há pouco, tivesses mostrado tanto interesse, unicamente, por esse assunto... Agora já se percebe por que é que te interessavas, uma vez que conhecias todos os pormenores... e como te trouxe enervado e estava relacionado com a doença... Eu, meu caro, estou um bocadinho embriagado, mas só Deus sabe qual é a idéia deles... Repito-te: a esse, deu-lhe para as doenças mentais. Mas tu não lhe ligues e manda-o passear! Ficaram ambos em silêncio por meio minuto.

- Ouve, Razumíkhin - exclamou Raskólhnikov -, eu quero falar-te com a máxima franqueza: há pouco estive numa casa onde falecera certo funcionário... Também lhes dei dinheiro... E, além disso, também aí acabou de beijar-me uma pessoa que, ainda que não tivesse morto ninguém, ainda que, bem, numa palavra, tive oportunidade de ver também aí uma criatura... com uma pluma cor de fogo... Mas, além disso, eu dou o braço a torcer; estou muito fraco, segura-me ... Já estamos na escada?

- Mas que tens tu? Que tens? - perguntou-lhe Razummkhin, alarmado. - Sinto a cabeça um pouco tonta; mas não se trata disso, é que tenho uma tristeza tão grande! Pareço uma mulher... não achas? Olha, que é aquilo? Repara, repara!

- Que dizes?

- Mas não estás vendo? A luz do meu quarto... Não vês? Pela fresta... Estavam já em frente do último patamar, para o qual dava a porta do andar da dona da casa e, de fato, ali debaixo notava-se que a luz estava acesa no cubículo de Raskólhnikov.

- É estranho! Talvez seja Nastácia - observou Razumíkhin.

- Não, ela nunca entra no meu quarto a esta hora e já há muito que deve dormir a sono solto; mas... tanto me faz! Adeus!

- Que tens? Eu te acompanho, entramos juntos!

- Já sei que entramos juntos; mas eu quero apertar-te aqui a mão e despedir-me de ti. Bem, dá-me a mão! Adeus, até a vista!

- Mas que te aconteceu, Rodka?

- Nada. Entremos; tu serás testemunha...

Tornaram a subir as escadas e Razumíkhin pensou, por momentos, se Zósimov não teria razão: "Ah! Dei-lhe volta ao juízo com a minha conversa!", resmungou para consigo. De repente, quando iam já entrando, ouviram uma voz dentro do quarto.

- Quem será? - exclamou Razumíkhin.

Raskólhnikov foi o primeiro que puxou pela porta e a abriu de par em par; abriu-a e ficou parado à entrada, como se tivesse ficado pregado no chão.

A mãe e a irmã estavam sentadas no divã e havia já hora e meia que esperavam por ele. Por que razão era nelas que ele menos pensava, apesar da notícia confirmativa que tivera nesse dia, de que chegariam em breve, de que não tardariam a chegar, de que estariam ali de um momento para outro? Tinham gasto aquela hora e meia interrogando Nastácia, que ainda ali estava junto delas e se tinha apressado a contar-lhes tudo com todos os pormenores. E não conseguiam compreender, de tão assustadas que estavam, quando ela lhes disse que ele tinha escapulido doente, segundo se deduzia da narrativa, em autêntico estado de delírio... "Santo Deus, que lhe teria acontecido?" Começaram as duas a chorar, as duas sofreram um suplício cruciante naquela hora e meia de espera.

Jubiloso, triunfal clamor acolheu a presença de Raskólhnikov. Atiraram-se ambas contra ele. Mas ele ficou parado como um morto: um insuportável, súbito pensamento o feriu como um raio. Nem sequer ergueu as mãos para abraçá-las. Não podia! Mãe e filha apertavam-no fortemente nos braços, beijavam-no, riam e choravam... Ele deu um passo, cambaleou e caiu no chão desmaiado.

Alarma, gritos de horror, lamentos... Razumíkhin, que ficara de pé junto da porta do quarto, entrou como um relâmpago, pegou o doente com seus braços vigorosos e colocou-o rapidamente sobre o divã.

- Não é nada, não é nada! - exclamou, dirigindo-se à mãe e à irmã. - Foi uma vertigem, uma coisa sem importância! Ainda há pouco o médico acabou de dizer que ele já está muito melhor, que já está completamente bom! Água! Eia! Ora vejam como está tornando a si, como recupera os sentidos! E, pegando na mão de Dúnietchka, de uma maneira que quase a desarticulava, fê-la agachar-se para que visse como ele já estava voltando a si. Tanto a mãe como a filha olharam para Razumíkhin como para um fantasma, com espanto e gratidão; elas já tinham ouvido Nastácia contar o que, durante todo aquele tempo da doença, fora para o seu Rodka aquele "rapaz expedito", como lhe chamou nessa mesma noite, em conversa íntima com Dúnia, a própria Pulkhiéria Alieksándrovna Raskólhnikova.

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