Vinte Minutos e V

lalivro

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Jeongguk, um jovem pintor, conhece um modelo enigmático que se torna sua fonte infinita de inspiração. V, a m... Еще

Jeon Jeongguk
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O que é o amor?

No século XX antes de V, eis o que o cético pintor em ascensão com o vergonhoso pseudônimo Seagull diria: O amor é uma reação química gerada no nosso cérebro feita para nos ludibriar, nos tornar submissos, garantir a sobrevivência da espécie. O amor é liberação de hormônios como resposta a algum estímulo: um corpo atraente, uma voz melódica, uma carícia. Tal reação química é viciante ao ponto de nos colocar num torpor constante. O amor não passa de uma droga. E, o coração partido, nada mais é do que uma crise de abstinência.

Isso o outro Jeon já sabia (conte para ele o que está prestes a acontecer e, eu te garanto, ele vai rir na sua cara).

Dizer que o amor é uma reação química no cérebro é o mesmo que dizer que uma obra de arte é uma tela de tecido com tinta óleo e verniz em cima. Inegável, um fato. No entanto, não cobre nem um por cento do que uma obra de arte realmente é.

O amor também é difícil de definir, como a arte. E é mutável. Num dia é o ciúme terrível que corrói a gente, no outro é um banho de banheira com cheiro de framboesa ou uma dança ao som das ondas do mar. Ele te surpreende nuns momentos aleatórios. Descobri que o amor está no som da respiração de V, baixinha, de madrugada, enquanto o sono não vinha. Está no jeito que ele me observava pintando quando pensava que eu não o via. Está na maneira como ele balançava a cabeça e ria consigo mesmo ao ler um livro. Fui encontrando amor pra todo lado. Juro que até hoje encontro, passagens sublinhadas em livros, o aroma dele numa camisa, chás fora da validade, memórias cotidianas. Encontro vestígios de V e o amo, ainda que doa feito o inferno.

Acho que ainda não tinha dito isso aqui, pelo menos não em termos tão escancarados. Imagino que seja óbvio para o leitor, à essa altura. Eu já sabia que amava V nessa etapa de nosso envolvimento, é claro. Posso ser orgulhoso feito o capeta, mas não sou estúpido. Eu sabia muito bem, só que não julgava necessário confessar. Eu e V éramos avessos aos nomes. Nosso afeto surgia de outras formas, em gestos, em cuidados, na cama. Surgia até em conversinhas ordinárias, sem propósito.

— Vem comer, Seagull, anda. Já faz horas que você tá aí e eu não te vi comer nada — V podia dizer, quando eu estava concentrado demais no trabalho. Às vezes eu perdia a noção do tempo, não era incomum passar o dia todo em jejum, absorvido numa obra. Eu responderia um "já vou" rápido e ele continuaria: — E tô falando de comida de verdade, não salgadinho de queijo. Você tem o paladar de uma criança de seis anos, eu juro por Deus, Seagull. Você deve estar anêmico.

V diria isso como quem não quer nada, os olhos fechados docemente e o nariz enfiado no meio das ondas espirais do vapor da xícara de chá de limão siciliano e gengibre, recém-preparado. V gostava de tudo feito na hora. Ele então abriria os olhos de um jeito sonhador, me observaria com todos aqueles tons castanhos antes de dar um pequeno gole e soltar um gemido rouco de sincero contentamento. A ardência do gengibre escorreria pela garganta, estimulando o pomo de adão a subir e descer, como se dançasse pra mim. E lá estaria eu, em transe de novo, um pouco mais rendido ao amor.

Impressionante como antes era tão difícil de admitir e agora me soa como o troço mais óbvio do universo. Amor me parecia tão extremo que eu tinha medo até de pensar na palavra. Só que, depois, a palavra passou a ser ínfima diante do viver. Isso é o que transforma. E quando você encontra algo assim, o nome é o de menos, acredite.

Após aquela noite no hotel, a sensação ilusória de que eu e V poderíamos ter um futuro compartilhado não me abandonou. A tal semente criou raízes. Em mim, e acho que nele. V invadiu não apenas todas as esferas do meu presente, mas passou a habitar meus planos para os dias que viriam.

De maneira sutil, no começo. Comecei a pensar em pequenas reformas no ateliê, só algumas melhorias, nada grandioso. Já que estávamos morando juntos lá, fazia sentido.

Lembro do dia que sugeri essa ideia para V. Era o fim do verão e a pele dele estava bronzeada, o cabelo cinza já havia desbotado para louro pálido outra vez. Estava regando umas mudinhas que tinha plantado na varanda, em vasos de barro. Manjericão, hortelã e coisas assim. V era bom nisso, aliás. Conhecia as particularidades de cada planta e sabia como cuidar delas (isso é um troço que sempre me deixou com a pulga atrás da orelha, mas, enfim, não é hora de falar disso. Voltarei nesse tema mais a frente). V estava de joelhos na varanda quando toquei no assunto da reforma, e virou o rosto de imediato ao me ouvir. Me encarou sobre o ombro e ergueu uma sobrancelha desconfiada.

— Você diz tipo finalmente colocar um olho mágico na porta?

Soltei uma risada. Eu estava sempre reclamando sobre não ter a droga dum olho mágico.

— Seria um começo. E arrumar os pregos.

— Claro, vá em frente. Aliás, sou a favor de uma tranca extra também, inclusive pras janelas. Às vezes me dá arrepios ficar aqui.

— Tem razão. Se você quiser fazer alguma outra mudança, tudo bem por mim. Faça o que quiser.

V deu de ombros e voltou sua atenção para as plantas. Deu a impressão de que ele nem tinha me ouvido direito.

Então não é exagero quando eu digo que fiquei surpreso pra cacete ao ver a encomenda que chegou alguns dias depois. Tive que ir buscar lá embaixo na picape, porque veio num caminhão de transportadora e a estradinha era estreita demais para o caminhão subir. V ficou muito animado, batendo palmas e tudo. Não quis de jeito nenhum me dizer o que era até que eu visse.

O troço tinha quase 2 metros de altura. Parecia um quadro, mas V não seria maluco o suficiente para me dar um quadro. Talvez uma tela. Dois funcionários foram com a gente até o ateliê, para segurar a encomenda na caçamba da picape. Fui subindo bem devagarinho. Levou um tempo, mas deu certo. Os caras entraram no ateliê e colocaram o troço encostado na parede, numa caixa de papelão. V recusou quando eles se ofereceram para abrir. Aí eu dei uma gorjeta bem gorda pelo esforço dos funcionários e eles se despediram cheios de sorrisos — obrigado senhor Jeon, tenha um bom dia, senhor — antes de descerem a pé até o caminhão.

Para V, toda nova experiência merecia um ritual. Foi assim na primeira vez que fez chá no ateliê, foi assim na primeira vez que transamos e com o tal pacote não foi diferente. Ele pegou um estilete e começou a cortar a fita da caixa. Quando finalmente abriu, se deparou com um monte de plástico-bolha. Os caras da transportadora podiam ter desembalado aquilo num instante, com certeza, mas V fez questão de pelejar com as camadas. Fomos descascando a embalagem feito uma cebola, até desvendar o conteúdo da caixa.

Era um espelho. Desses de chão, que se apoia na parede, bem grande. Uns 90 centímetros de largura pra 180 de altura. Tinha uma moldura fina de madeira clara, crua, quase o mesmo tom do meu cavalete.

Fiquei ali um instante, analisando a minha imagem no espelho, os cabelos pretos meio desgrenhados, o brilho de suor na testa, rodeado de plástico-bolha.

— O que acha? — V deu um sorriso para o meu reflexo, depois começou a chutar os plásticos para o canto do ateliê. — Não joga fora, quero estourar depois.

Feito isso, ele parou de longe e analisou a posição do espelho. Então, voltou para o meu lado com uma expressão bem satisfeita. Parecia orgulhoso de sua aquisição.

— É que a gente nunca se vê aqui. Têm vezes que esqueço minha própria cara, só lembro da sua. Aí olho pra um quadro e penso que sou eu, mas também não sou.

Encarei sua imagem no espelho e dei uma risada. Eu adorava contrariar V, só pra ver o que ele ia dizer.

— Que exagero. Tem espelho no banheiro.

— Aquele só serve pra fazer a barba e olhe lá. Mal se vê do pescoço até o topo da cabeça — reclamou. — Também, tem que ir até lá pra se ver, nunca é por acaso. Perde a graça. Às vezes é bom levar um susto com a sua imagem, sabe? Você se esquece que está ali, e então, está.

Frases como esta não eram nada incomuns. V vivia dizendo coisas do tipo, na época, que para mim não pareciam fazer sentido. Eu só pude compreender tarde demais. Preto e branco, para V, não era apenas brincadeira.

A pior coisa do mundo é estar perdido, ele disse uma vez. Talvez tenha sido uma confissão. V sempre esteve se procurando.

— Além disso, vem cá — me puxou pela camisa, entrelaçando o braço no meu. — Gosto de me ver com você.

Eu me distraí um bocado com aquilo sobre estar perdido, ou talvez outra reflexão do gênero, não tenho certeza, mas sei que quando ele me puxou e eu dei por mim outra vez, V estava fumando um de seus cigarros de flores. Nós estávamos envoltos de fumaça, uma fumaça não muito densa (porque as portas da varanda estavam abertas) mas como uma névoa brilhante. O sol começava a baixar no horizonte, naquela hora específica da tarde que a luz entra alaranjada pela janela e tudo parece quente e doce feito uma xícara de chá cheia de mel. V estava parado sob a luz, de perfil, a atenção focada na outra figura de pé, o orgulhoso Seagull. Vestido com uma camisa de botões estampada, shorts curtos, os pés descalços, a pele ensolarada. Dava pra ver as partículas de poeira flutuando iluminadas e V soprou mais fumaça, fazendo a poeirinha espiralar ao nosso redor. Que bonito foi. Meu instinto imediato foi querer eternizar aquilo na tela, mas não consegui desviar os olhos nem pra dar uma espiada no armário de tintas. Decidi que já estava pintado, seria a moldura de madeira rústica a nossa moldura? Éramos Seagull e V, presos no inverso do mundo.

Então, se fosse este o caso, quem seria eu, o pintor de do lado de cá? E quem seria o garoto cuja mão morna se apoiava em meu ombro?

— Você tá tão calado, Seagull. Me deixa espiar seus pensamentos, deixa. Às vezes, você é um enigma para mim.

— Eu sou o enigma, V?

A pergunta ficou parada no ar sobre nós por um instante. V me analisou, a expressão hesitou. Quando recuperou a compostura, o sorrisinho que surgiu no canto de sua boca era meio triste.

— Feche os olhos — V deslizou ao meu redor, pés descalços, até parar às minhas costas. Me vendou com uma só mão, a que não segurava o cigarro. Sussurrou com a boca encostada em minha nuca: — Não somos ambos enigma?

Ele afastou a mão de meu rosto, mas eu mantive as pálpebras fechadas, obediente. Senti as pontas dos dedos dele por baixo da minha camisa, na lombar. V traçou a circunferência de minha cintura enquanto eu, mudo e cego, aguardava instruções. Então, senti seu toque se afastar por um instante. Estava prestes a abrir os olhos e buscá-lo, mas refreei o impulso ao ouvir sua voz rouca, lânguida.

— Eu tento desvendar você. Você, tenta me desvendar. O que a gente espera achar, será? Existe solução para o que nasceu entre nós?

O chão rangeu baixinho quando ele caminhou, e eu esperei. Ele voltou para mim. Jogou os braços ao redor do meu pescoço. Não vestia mais a camisa. Naturalmente, abracei sua cintura, meu toque subindo pelas costas macias.

— Abre os olhos.

Obedeci. Parado de frente para o espelho, encontrei o reflexo de V totalmente despido. Meu próprio rosto sustentava uma expressão torpe, enevoada. Eu vi minhas mãos pálidas contra as costas bronzeadas dele, os nós dos meus dedos sujos de tinta carmim. V beijava o meu pescoço com devoção, de pálpebras fechadas, os delicados cílios curvados esbarrando no meu maxilar. Deixava escapar pequenas lamúrias doces, absorvido em sua tarefa, os dedos ágeis apertando meus braços, afundando as unhas na pele dos meus ombros para beijá-los depois. Eu assisti, atento, deslumbrado com nosso reflexo. Bem baixinho, V sussurrou ao pé do meu ouvido, num arfar rápido, sem fôlego:

— E quando nos beijávamos... e eu perdia a respiração e, entre suspiros, perguntava... em que dia nasceste, Seagull? E me respondias com voz trêmula... estou nascendo agora.

E me cobriu a boca com os lábios aflitos. Estava quente, febril. Eu o apertei, rendido ao beijo. Havia desespero no meio de sua saliva. V tinha entrado numa espécie de transe.

O ar cheirava a fumaça. Quando V se afastou, seu rosto brilhava suor. Ele encostou a testa pegajosa na minha. Respirava alto, ofegante, de olhos bem apertados, sobrancelhas franzidas. As duas mãos dele, emboladas no meu cabelo, em punho, puxavam os fios até doer.

— E tua mão ascendia por entre o vão das minhas pernas... e eu voltava a perguntar — engoliu um gemido. — O-onde nasceste, Seagull? E tu, quase sem voz, respondias... estou nascendo em ti.

Aquilo me desarmou de vez. Senti meu coração pulsar, um calafrio disparar pelo corpo todo, me arrepiando inteiro. V estava sempre declamando frases célebres, inclusive nos nossos momentos mais íntimos, mas havia uma força inédita contida naquelas palavras. Não só porque ele estava quase arrancando a droga dos meus cabelos, mas lembro muito bem da forma como ele recitou. Foi um apelo, cheio de fervor. Como se tentasse me convencer.

Hoje, acho que finalmente consigo compreender ao menos uma fração do que V pretendia me dizer. Por isso se despiu. Estava nu, só para mim. Se mostrava por completo, só para mim. E eu continuava tentando desvendá-lo como um enigma, mas ele já se oferecia vulnerável, corpo e alma, se expondo todo na minha frente.

Posso estar falando um monte de asneiras, mas, se for este mesmo o caso, V tinha razão: era eu, o enigma. Eu que me apegava tanto ao meu orgulho, à vergonha de me sentir submisso, de me render de vez ao amor. Pensava que tinha que esconder a verdade — que queria V comigo para sempre, que podíamos nos transformar nesses casais chatérrimos em preto e branco, porque, bem no fundo, eu gostei daquele vislumbre de futuro, da perspectiva de acordar ao lado dele todos os dias em algum apartamento normal onde não teria problema andar descalço.

Foi este meu pecado, o filho da puta do orgulho. Acho que entendo agora, V. Você estava esperando por isso, não estava? Seria meu por completo se eu simplesmente enxotasse meu maldito ego e te contasse a verdade? Que te aceitaria de qualquer jeito. Que queria V e queria o outro, que eu o amaria também. Você. O garoto que, segundo minhas suspeitas, deve ter sido criado no interior, porque é muito bom em subir em árvores e cuidar de plantas. O que cresceu cedo demais e precisou se virar sozinho. Sei que foi assim, você carregava um ar de maturidade que não podia esconder, ainda que tentasse tanto. Você, que encontrava conforto em banhos longos, que chorava em meu abraço nas noites insones, que estava sempre procurando o caminho em busca de si mesmo — em cada personalidade que assumia, em cada nome falso, em cada cor de cabelo, quadro, reflexo. Devia ter te dito que podia se achar em mim, se quisesse.

Só que o meu orgulho é uma desculpa óbvia para covardia. Eu não podia te oferecer demais. Não podia dar o braço a torcer, porque pensava que recebia tão pouco de você. Me considerava em desvantagem. Mas era ilusão, não era, meu bem? Você se deu tanto quanto pôde.

Agora já é tarde. Não faz mais sentido esconder. Inferno, o espelho era só o começo. Eu estava fazendo planos, V. Pra você e pra mim. Não pretendia parar nos pregos soltos ou trancas extras. Queria reformar o ateliê inteiro, tirar toda aquela porcariada do depósito no primeiro andar. Pensei em instalar uma lareira elétrica, colocar piso novo, carpete, sofá. Queria transformar aquela espelunca numa casa, meu Deus do céu! E agora está lá, abandonado como sempre, tudo intocado, e eu não consigo nem botar o pé naquele lugar mais. Fazem o quê, quatro, cinco meses? Estou perdendo as contas.

Que se dane o ateliê também. A semente de um futuro compartilhado criou raízes profundas, é verdade, mas não tem nada a ver com o ateliê. Criei raízes em você, V. Carrego elas pra lá e pra cá, não importa onde. De verdade, pouco me importa o lugar que recebe a merda da conta de luz, é só um endereço. Eu me achava muito livre na minha solidão. Que ingênuo. Foi só ao criar raízes em você que eu notei o quanto estive encarcerado esse tempo todo, me agarrando ao trabalho, à arte, às musas, saltando de uma para a outra sem nunca estar satisfeito. Foi graças a você, minha décima e última musa, que encontrei os nutrientes que nem sabia procurar.

Essa droga de livro já virou uma carta, coisa que não era para ser. Sei que devia narrar com menos afetação, só que não consigo. Estou exausto. Minhas esperanças diminuem a cada dia, a cada página. V, você sabe muito bem o que está prestes a acontecer. Fica comigo só mais um pouquinho, agora preciso terminar o que comecei. É o ápice de nossa história e, logo em seguida, seu declínio fatal. Vou retomar meu papel de narrador.

↬Ꮙ↫

O verão terminou. Eu e V adentramos dias de clima mais ameno, humores mais amenos. Nos acomodamos numa rotina. Não uma rotina monótona, não dava pra ser monótono com V do lado. Ele ainda conseguia me irritar um bocado com os surtos de espontaneidade, me fazendo cumprir seus desejos e ímpetos em momentos muito inoportunos, como o marido de uma gestante. Contudo, aquele era um dos traços que eu mais amava em V. Ele me obrigava a explorar meus limites e, no processo, eu encontrava inspiração para novas obras. Além dessas loucuras momentâneas de V, nós passamos o início do outono numa atípica calmaria. Eu começava a pintar bem cedo de manhã, V posava para mim quase todos os dias. Me acostumei com a presença dele, com suas manias. V gostava de testar receitas, fazia uma bagunça infernal na cozinha. Ele cuidava das plantas, às vezes ia passar o fim de tarde na praia. Falava o dia inteiro, minha nossa. Como falava! Metade das vezes eu nem sabia sobre o que ele estava falando, juro por Deus. À noite, pelo menos, ele se calava. Me abraçava, só. A gente ficava ali, respirando junto. É outro nível de intimidade, esse. Nem dá pra explicar. Construímos uma cumplicidade silenciosa: éramos felizes.

Então, eu amanhecia para ele. Que experiência era. Como no céu do amanhecer, as cores de V também são mutáveis e se revigoram a cada dia, inteiramente novas. Foi essa a característica que me atraiu aos dois, para início de conversa, visto que novas cores sempre me fizeram sentir vivo.

Naquela manhã fria de outono, a aurora não foi como as outras. A lua, quase uma linha fina, um sorriso de lábios cerrados que pode ser tanto sádico quanto reconfortante, brilhou no céu, teimosa, até depois que os vinte minutos milagrosos terminassem, e assistiu comigo ao formidável show matinal. Neste dia, não teve rosa nem lilás.

Eu estava deitado de calças de moletom e V dormia ao meu lado. Meu relógio biológico, todo desregulado, decidiu me acordar naquela hora antiga, pré V, quando meu humor ainda girava em torno do nascer solar. Quando despertei o céu ainda era o costumeiro manto negro e nem tinha começado a vibrar em tons chatos de azul marinho ainda. Fiquei meio puto por ter acordado. As cortinas estavam abertas, então sentei na cama e encarei o lado de fora, irritado. Ainda ia demorar um bocado pro espetáculo começar a ficar bom, e não tinha por que eu ficar acordado esperando. Afinal, eu tinha V. Meu próprio raiar da aurora.

Olhei para ele. Na penumbra, o rosto virado sobre a fronha do travesseiro, os ombros nus para fora do edredom. Contra a roupa de cama branca, a pele dele se destacava em tons de avelã e caramelo, os ossos saltados nos ombros e nas costas refletindo a luz fraca da lua. Visualizei ele assim, numa tela, todo em dourado e magenta. Senti vontade de pintá-lo bem ali, naquela posição e com aquelas cores, mas confesso que fiquei com preguiça e guardei a imagem na memória para poder buscar depois, no caso de uma próxima abstinência de inspiração. Fiquei me embriagando da visão, até que os tons da pele dele reverberaram num coral vibrante e eu virei o rosto, procurando no horizonte através da janela pela iluminação que havia colorido os ossos nus do meu amante.

Bem ao fundo da paisagem, uma linha dum laranja vivo, quase fluorescente, contornava o horizonte, tão fina e reta que parecia ter sido desenhada pelo mais metódico arquiteto. Aquilo me deixou curioso.

Me levantei da cama e fui até a varanda. Sentei no velho banquinho de madeira, colorido com um milhão de nuances acidentais de tinta a óleo, para assistir ao céu inédito. Nunca eram iguais, os infinitos nascimentos do sol, mas nesse dia me pareceu especialmente singular. O contorno tangerina começou a se espalhar em gradientes de verde limão e amarelo, engolindo bem aos poucos o azul do céu. O próprio azul não parecia o mesmo, e desabrochou num tom petróleo, esverdeado. As nuvens se espalhavam aos montes sobre o espetáculo, escuras como costumam ser as nuvens da manhã, antes que sua brancura seja iluminada pelo sol e quando o céu parece mais um negativo fotográfico — surreal, com as cores todas ao contrário — do que uma réplica fiel da realidade. Vermelho vivo surgiu por trás do horizonte, violento e criminoso, e eu testemunhei, no princípio da manhã, um incêndio celeste.

Paralisado, foi como eu fiquei. Aquele amanhecer da aurora foi um dos mais sublimes que eu já havia visto e agradeci ao relógio biológico que mais cedo eu tinha amaldiçoado por me acordar no meio da noite. Esqueci o frio sobre minhas pernas e meu torso nu, hipnotizado pelo show das cores, subindo em labaredas, vermelho, laranja e verde, até quase alcançar a lua que ainda brilhava lá no alto, observando tudo. O céu se transformou num gradiente escarlate e amarelo, quente, e eu senti os dedos compridos de V tocarem meus ombros, mas fui incapaz de desgrudar os olhos da metamorfose viciante de tons através da janela. Senti quando ele descansou o queixo na curva do meu pescoço, o peito descoberto se grudando às minhas costas, e pousou um beijo casto e macio bem debaixo da minha orelha.

— Eu amo você.

A frase foi simples, direta, sem timbres fantasiosos de emoção ou nervosismo. Foi a confirmação lógica de que o cérebro de V estava dando o mesmo golpe que o meu. Mas a voz dele penetrou meu peito, grave, o timbre rouco das primeiras palavras da manhã, e tão firmes, tão cheias de verdade. Meus olhos se encheram d'água. Eu ainda apreciava o conturbado mesclar das cores e por um mísero instante, que podem ter sido desde um milésimo de segundo até minutos inteiros (eu não saberia dizer), senti que deixei o meu corpo, inundado pelo tipo de completude que a maior parte dos seres humanos nunca chega a experimentar.

E finalmente o céu clareou para os familiares tons pastéis de rosa, lilás e azul claro, turvos e acinzentados, naqueles breves minutos quando as luzes artificiais dos postes ainda não foram apagadas, mas já não são mais necessárias. Não era mais violento, mas doce e meigo em tons infantis, e eu me permiti fechar os olhos úmidos e sorrir. Toquei a mão fria de V que descansava sobre o meu peito, deslizei o polegar pelos dedos longos, até as unhas. Por algum motivo, minha mente ecoou aquela frase que V recitara algumas semanas antes. Senti cada sílaba vibrar pelo meu corpo.

Estou nascendo agora.

↬Ꮙ↫

NOTA DA AUTORA:

Olá, amoras! Espero que tenham gostado desse capítulo. Não quero ficar dando spoiler, mas estou ansiosa com essa fase de vmev :) espero que vocês também estejam!

Muito obrigada a todos os que continuam acompanhando a fic e me dando muita força para escrever sempre. Vocês nem imaginam a diferença que fazem nos meus dias, nos momentos de desânimo e insegurança. Sou grata demais!

Por favor, não se esqueçam de votar no capítulo, comentar e, se puder, recomendar essa história para alguém que vá gostar da leitura. A forma mais bonita de divulgação é a dos próprios leitores :)

Use a tag #vmev no twitter para que eu veja seus comentários :) E nos vemos em breve! <3 estou ansiosa!

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Com carinho, 

~Btsnoona, ou só Lari :) 

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