"Maldito sejas pelo mal que fizeste sem querer!"

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Quando a hecatombe da destruição invadia sua mais elementar privacidade e a tolerância física atingia o limite Graciliano era forçado abandonar a casa, espairecer, poupar ouvidos, olhos, garganta e pulmões, fazendo longos e aborrecidos passeios pelos arrabaldes, retornando ao entardecer, porque sinal do término do expediente e, por conseqüência, a volta da calmaria. (ver O Gato do Vizinho 3)

Uma semana depois, a violência do barulho amainara, ainda que de vez em quando, algum pedreiro reaparecia pelo pátio, a retirar entulhos remanescentes do sobrado demolido, indicando que a obra chegava ao término.

No entardecer do último dia, Graciliano preparava-se para festejar a conclusão da quebradeira e, como lhe fora impossível fazê-lo durante o trabalho, munido de fiambres, pão, vinho e esperança de paz e silêncio, voltou a sentar-se à pequena mesa de plástico, debaixo do caramanchão – construção que Graciliano montara no pátio, com ripas e escoras, cuidando por meses a fio da planta trepadeira, cujo nome desconhecia e com quem, desde que a descobrira broto num rincão do terreno, mantinha conversas íntimas, regadas a água fresca e proteção contra intempéries e formigas.

No primeiro copo de vinho servido, Graciliano notou que o portão se abria cuidadosamente e o mestre de obra, sorrateiro, entrava no seu pátio, porém, ao vê-lo, tentou esconder a intenção e o facão sob a camisa; Graciliano suspeitou imediatamente de seu comportamento e perguntou: “Esqueceu alguma coisa?”

“Pois é! E não é que esqueci mesmo, seu? Fui deixando pra depois, deixando, deixando. É que patrão mandou cortá essa planta, logo no começo, pra não atrapalhá o serviço.” Disse o homem, meio sem jeito, sinalando o caramanchão. Graciliano olhou para as folhas sobre sua cabeça e demorou a entender. O mestre de obra continuou a justificar a ordem recebida.

“O homem também disse que atrapáia, que as folha seca suja tudo quando ventania. E que os vizinho mete bronca por limpá as sujeiras que caem nas áreas deles. Que não pega bem. Que já avisou e o senhor disso, sei lá eu. Faz tempão... que se não, ele mesmo faria...”

Graciliano lembrou da ameaça esquecida por estúpida, recolheu os alimentos, a garrafa, deu um chute na pequena mesa de plástico, virando-a de patas para o ar e, carregando tudo, entrou na casa batendo a porta ruidosamente ao fecha-la. De imediato foi até a vitrola e logo a seguir, as notas de um Réquiem, de Mozart, invadiram todos os sons do mundo.

Quando o pau-mandado terminou de cortar o frágil tronco da planta e foi-se embora cabisbaixo, o réquiem havia terminado; Graciliano saiu do interior da casa e arrastando os pés descalços, chegou-se até os restos da planta; chutando os ramos moribundos, até machucar o dedão, disse entre dentes, parafraseando o poeta: "Maldito sejas pelo mal que fizeste sem querer!"

Do alto de um teto distante, apenas o testemunho de um gato imóvel.

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⏰ Última atualização: Oct 03, 2014 ⏰

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