A solidão rondava pelo quarto, ignorando-a olimpicamente.

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 Magda acendeu todas as velas que encontrou, distribuiu-as por todos os cantos. Nada de Light! A luz mais primitiva possível, como as senzalas deviam ter, ou o lugar onde o pariram em meio à sujeira que a pobreza dá, em cerimoniais religiosos e cânticos primitivos a deuses estranhos vindos da África... Ficaria o mais perto possível dele, enfeitiçaria sua ausência, desentranharia o silêncio da casa; e o atrairia. Tirou as roupas, deitou nua na cama, acariciou-se, botou a língua de fora, fez “uis” e “ais” tentando exorcizar o vazio. Nada.

A solidão rondava pelo quarto, ignorando-a olimpicamente. Ficou com medo, lembrou-se da morte e da culpa, irmãs inseparáveis. Seria a solidão cúmplice delas? O poço lá fora! Estava da mesma forma sozinho, e nele os cadáveres, os mesmos dela: um odiado e um amado. Mas o poço não teve escolha.

Levantou da cama de um pulo, abriu a porta do guarda-roupa, tirou tudo até esvaziá-lo: nenhuma pista.

Derrubou o criado-mudo e jogou ao chão o que havia dentro: nada.

Pulou e puxou até cair no chão a mala em cima do teto do guarda-roupa, abriu-a: além de trapos esquecidos: nada.

Puxou e arrancou o colchão da cama, deixando o esqueleto do estrado exposto: nada.

O baú no canto, sempre sob chave: imaginou-o cheio de segredinhos de ex escravos ingênuos, aglomerados de santos e macumbas, cartas ininteligíveis de mães semialfabetizadas, alguma namoradinha de infância, medalhas, fotos dele aos dez anos, aos quinze, com colegas de farda na Praça da República, no Vale do Anhangabaú, bandeira de time de futebol, de algum pelotão. Baú velho e frágil, mais para esconder coisas de bisbilhoteiro que de ladrão. Com uma faca grande que pegou na cozinha, abriu o cadeado. Com força, virou-o, derramando seu conteúdo; com sorriso irônico constatou o fantasiado: foto registrando a condecoração de soldado pelo tenente Cabanas e ele ao lado, todo empertigado, aguardando a vez. Bandeirinha do Corinthians, recortes de jornais e revistas velhas comentando o assassinato de Gouveia, uma foto dela recortada de certa publicação feminina, escrito na margem com letra de criança: “Linda tetéia”. Outro recorte mostrava casinha de campo, escrito com a mesma letra: “Minha casa”. Uma luva de couro que reconheceu sua. - Que mais encontraria nesse baú? Mais intimidades de uma vida desconhecida? O caderno que acreditara perdido... alguns poemas delirantes de... cocaína!

O que o Ébano, Escravo, pensaria disso? Dieu! Nem lembrava seu verdadeiro nome! Tonho é que não era! Folhetos propondo a formalização do Dia da Mãe Preta. Recortes mostrando arados, tratores! Até perceber num canto da tampa, por trás do papel descolado que a forrava, o fragmento de uma nota. Rápida, puxou, arrancando-o, e inúmeras notas caíram formando calhamaço. Uma pequena fortuna se espalhou no chão. Instantes. Boca aberta. Pernas cruzadas, sentada no chão, olhos também abertos. Lentamente. Lentamente, Magda. Raciocina por favor. Quem foge? Quem pode pretender abandonar alguém deixando todo esse dinheiro escondido? Considera, Magda! Ele escondeu esse dinheiro para vir pegá-lo. Então... Aconteceu alguma coisa com ele! Então... Onde está? Medita, Magda. Percebes o lado medonho do premonitório rondando a casa ? E, Magda. Há perigo nestas sombras (...)

***

(Fragmento do romance “A Cena Muda” de ©Miguel Angel Fernandez - 2ª  edição no CLUBE DE AUTORES)

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⏰ Last updated: Oct 03, 2014 ⏰

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A AUSÊNCIA DE TONHO PESA NA CASA E NA ALMA DE SINHÁ...Where stories live. Discover now