Prólogo

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Levando em conta o meu estilo de vida, sempre pensei que morreria cedo, deixando apenas um legado vermelho e um cadáver jovem e atraente. No entanto, é difícil permanecer belo com a boca cheia de sangue e o rosto repleto de hematomas. 

De certo modo, eu já sabia como a história iria terminar. Toda ação tem por consequência incontáveis desdobramentos, obviamente só alguns são realmente importantes. Por isso, antes de executar uma ação, é imprescindível que se tenha um plano de contenção para as consequências. O que a maioria das pessoas não sabe, é que cada desdobramento de uma ação também tem seus desdobramentos, perfazendo uma cadeia que, infelizmente, não se pode evitar. Mas eu sabia de tudo isso; eu sempre soube.

Enquanto a mão pesada daquele homem cheio de escrúpulos transformava meu belo rosto em uma massa disforme vermelho-rosada, eu me regozijava com sua violência, porque a cada golpe que me desferia, era nele que doía mais, pois em mim via sua própria natureza, que, como a de todos, é vil, violenta e incontrolável.

— Não no rosto, por favor – repeti pela sétima vez, deixando-o ainda mais atordoado. – Minha mãe vai querer um caixão aberto durante meu velório.

— Diga logo onde estão eles! – vociferou. Mas a única resposta que teve foi um sorriso de deboche por entre os dentes ensanguentados. Isso o enfureceu um pouco mais. Isso me satisfez muito mais.

— Sabe de uma coisa? – comecei a falar, interrompendo para cuspir uma golfada de sangue que, desafortunadamente, levou consigo dois ou três dentes da minha boca. Eu já quebrei muitos dentes na vida, e o fiz com imenso prazer, mas aquela era a primeira vez que acontecia com meus dentes, e a ironia me fez rir novamente. Ele não gostou, mas aguardou minha conclusão. – Apesar de tudo o que você acredita e todo o moralismo que insiste em vomitar sobre mim, há pouquíssimas diferenças entre nós dois, e a cada golpe que me acerta, essa linha fica mais tênue. Logo, logo não passará de uma lembrança.

Incapaz de conter a cólera, que transbordava dos olhos e cobria toda a sua face, me acertou o rosto com a coronha da semi-automática que trazia na mão esquerda. Desde que me amarrou naquela velha cadeira de madeira, não parou de balançar aquela arma de uma forma ameaçadora. Tinha um olhar obstinado e doentio, que faria qualquer um tremer de medo. Mas eu sabia bem como ele era, e estava certo de que, por enquanto, não tinha a mínima intenção de puxar o gatilho.

— Minha paciência está se esvaindo. Vou te dar uma última chance de colaborar e, talvez, permaneça vivo para ser preso. Agora...

Uma gargalhada interrompeu sua fala. Em meio às risadas, uma tosse molhada de sangue. Ele me olhou apreensivo, coisa que poucos poderiam enxergar por trás da raiva que cobria quase toda sua face. 

— Eu adoro isso em você. Até mesmo durante uma tortura, com sangue nos olhos, você consegue ser polido, e manter seu vocabulário rico. Qualquer outro dos seus estaria me dizendo coisas como “vou arrancar seu fígado” ou “vou atirar nas suas bolas”. Mas não você, não é? Você é um homem diferenciado, assim como eu.  

A última frase o acertou em cheio, como um soco potente na boca do estômago. Deixou-o calado por um momento, se recuperando do golpe, enchendo novamente os pulmões de ar e contendo o líquido salgado que forçava para descer pelos olhos.

— Você tem três segundos – ele puxou o ferrolho, fazendo o cartucho ser enviado para a câmara; recuou o cão, apenas para dramatizar a situação. – Um – o suor escorria de minhas têmporas, fazendo meus olhos arderem, enquanto ele limpava sua própria testa com as costas do braço. – Dois – a arma presa com firmeza à sua mão estava imóvel. Ele estremeceu por dentro, tenho certeza, mas quem o via ali, apontando a pistola para a minha cabeça, diria que não havia hesitação alguma. 

Eu ainda gargalhava, mas não pude ouvir o três. Por um instante, só foi possível escutar o estampido da cápsula explodindo e se separando da bala. Depois, um baque seco do invólucro no chão lodoso e cheio de sangue. Foram três batidas até que repousasse. O braço dele descansou, o cano da semiautomática mirou o chão, expelindo fumaça.

Naquele momento, eu me calei.

O Quarto Cavaleiro: a autobiografia de um psicopata inveterado [AMOSTRA]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora