Está tudo misturado na minha cabeça , as imagens , os sons , os cheiros .Preciso de lembrar-me . Colocar as coisas em ordem até este momento .Lembrar-me de quem sou . Se tivesse de dizer como tudo começou , poderia começar aqui .
Já devia passar das onze da noite .Estava deitada no sofá quando ouvi a porta a bater , sentei-me direita e fiquei a ver o meu pai de telefone na orelha e a falar enquanto andava de um lado para o outro .
-Tomás ouve-me , ele é o chefe .Não posso perder este emprego -dizia frustrado - não te estou a ouvir bem ...olha..falamos sobre isso amanhã - aproximou-se e pousou o telefone na mesa
-Então ? - comentei
-Chega pra lá - arrastei-me para o lado e ele sentou-se num suspiro
-Problemas no trabalho ?
Ficou em silêncio com a cabeça apoiada na mão quando finalmente falou :
-Já é tarde , devias estar na cama -
-Ainda não passa da meia noite -
-Helena , agora não , não tenho energia para ....-
- Toma -interrompi com as mãos estendidas , segurava uma caixa azulada que tinha escondido atrás do sofá para quando chega-se a ocasião
-O que é isto ?-disse enquanto a agarrava
-O teu aniversário -
Abriu a caixa e de lá surgiu um relógio de pele com detalhes em prata , tirou-o e enrolou no pulso
-Estás sempre a reclamar do outro relógio estragado , então decidi comprar-te um , gostas-te ?-
-Querida , é maravilhoso . Obrigado ...mas ... onde arranjas-te dinheiro para isto ?-
-Drogas -disse deitando-me de lado - eu vendo drogas pesadas
-Que bom , podes ajudar na renda com isso -
-é vai sonhando - rimos os dois , ficamos uns minutos a ver televisão até que sem me aperceber ,adormeci .
Acordei assustada com o toque do telefone , sentei-me , estava na cama no meu quarto e , pela luz de fora , ainda devia ser meio da noite , esfreguei os olhos e atendi a chamada -
-Sim?
-Helena ? -Uma voz atordoada , parecia familiar -Preciso de falar com o teu pai !-
-Tio Tomás ?-
-Passa-lhe a chamada agora !-parecia assustado e desesperado , quando ia para falar a chamada foi a baixo
-Estou?Tio?-
Estranho , pensei . Saí da cama e fui para o corredor à procura do meu pai , não estava no quarto nem na sala , estava a começar a achar tudo aquilo muito estranho . Fui no escritório quando do nada ouvi um tiro e logo de seguida o meu pai entrou pela janela apressado fechando-a rapidamente .
-Pai?- ele olhou pra mim , virou-se para a mesa e começou a mexer em algo
-Helena , estas bem ? -
-..Sim ..-
-Alguém entrou aqui ? - continuou apressado
-Não...porque haveriam de entrar ?-
-Fica longe das portas , fica aí a trás -continuou
-Pai....estás me a assustar , o que se passa ? -
-São os vizinhos , acho que estão doentes -
-Doentes ?- um estrondo na porta ecoou pela casa . Daniel Marques da casa ao lado estava a bater com uma pá na nossa janela . O meu pai aproximou-se de mim e logo depois o homem arrombou a janela e veio a correr na nossa direção , fechei os olhos e ouvi uma arma a disparar , quando abri , vi que Daniel estava deitado no chão rodeado pelo seu próprio sangue .A minha respiração ficou acelerada .
-Vamos -disse o meu pai agarrando-me pelo braço , resisti um bocado e ele ajoelhou-se à minha frente
-Mataste-o , o homem ele ...-
-Helena , ouve , tem algo de mau a acontecer e temos de sair daqui , percebes !?-afirmei , mas o meu cérebro não estava a conseguir engolir tudo aquilo .
Pegou-me no braço e fomos para fora , estava um jipe à entrada , de lá saiu um homem apressado
-Onde estavas !?Tens ideia de como está a ser lá !?-gritava
-Tenho uma ideia - disse o meu pai enquanto abria a porta de trás - Vamos filha , entra -
entrei e o meu pai entrou na frente seguido pelo homem que sentou ao volante
-Aquilo está um caos -dizia ele
-Está tudo bem querida ?-
-Sim pai -respondi meio nervosa -dá para ouvir o rádio ?-
o homem suspirou mas logo ligou o aparelho , uma voz masculina saiu a dizer sobre o acontecimento nas ruas
À medida que percorria-mos passava-mos por casas a arder , pessoas a meter malas nos carros , outras a gritar .
-O policial esteve a falar de um casa de um grupo que estava convivendo e foi atacado - disse o homem , tentei prestar mais atenção e me envolvi na conversa .
-Ele disse quantos morreram ?-perguntei
-Setenta e cinco e mais ...-
-Cala-te Max -disse o meu pai interrompendo.
.Paramos num cruzamento , passaram uns quatro carros da policia para a esquerda
-Vai vinte e três -
Andamos até que apanhamos uma fila enorme , uma mulher sai do carro e começou a gritar aos condutores da frente quando foi atacada violentamente por um homem de bata azul .
-Vira para a outra direção agora !-gritou o meu pai
Eu estava em choque , todos fugiam nas ruas aos berros a pedir por ajuda , parecia um Apocalipse que se via na Tv naqueles filmes de terror .