PRÓLOGO

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Entardecia. A brisa forte do outono varria as alamedas, espalhando as folhas
secas que caiam das árvores amarelecidas, e os raios de sol que se filtravam por
entre as nuvens cinzentas, não conseguiam aquecer os raros transeuntes que
caminhavam por entre as campas naquele domingo.
Com um maço de flores entre as mãos, um cavalheiro bem vestido, revelando
sua linhagem nobre, procurava um nome, lendo atentamente as inscrições das
lápides. Finalmente, parou.”Aqui jaz Suzane Ferguson que deixou a Terra em
30 de setembro de 1906.” Seus olhos encheram-se de lágrimas. Pelo seu
rosto amadurecido passou uma onda de emoção. Finalmente a encontrara.
Finalmente, tinha notícias. Ela estava morta! Como sonhara com o momento do
reencontro! Como buscara por toda parte sua figura amada! Tudo inútil. Quase
vinte e cinco anos gastara nessa busca, e, agora, apenas encontrara uma lápide
fria, onde a morte matava suas esperanças, e o coração oprimido apenas dizia:
— Nunca mais! Nunca mais verei seu rosto amado, ouvirei seu riso cristalino,
tomarei suas mãos, beijarei seus cabelos castanhos, abraçarei seu corpo querido
sentindo seu coração bater junto ao meu.
Era muito cruel, e ele curvou-se ao peso da sua dor. Colocou as flores sobre o
túmulo e ajoelhou-se deixando que as lágrimas lavassem sua face livremente.
Se ao menos ela soubesse o quanto ele a amava! Se ao menos pudesse ter-lhe
dito o quanto havia sofrido e o quanto se arrependia de sua atitude rude, de sua
leviandade, de sua ambição! Mas, agora tudo estava acabado. Suzane estava
morta e nunca mais o ouviria, e ele não poderia abrir-lhe seu coração, falarlhe
dos seus enganos e dos seus remorsos.
Permaneceu ali, de joelhos, pensando, pensando desesperado. De que lhe valia
agora todo o dinheiro que acumulara? De que lhe valia a posição, o poder, todas
as coisas que ambicionara e pelas quais havia trocado o amor puro de Suzane, no
casamento sem amor, a serviço do interesse e do qual só lhe restavam desilusão
e desconforto?
Ah! As lágrimas que ela havia chorado! Seus belos olhos imploraram que ele não
a abandonasse, e ele, frio, quase indiferente, lhe propusera uma ligação
extraconjugal, um lar onde ele iria quando seus compromissos sociais e com a
esposa lhe permitissem.
Vendo inúteis suas lágrimas, Suzane desapareceu às vésperas do seu casamento.
A princípio, pensou que ela houvesse se afastado temporariamente. Afinal, ela o
amava, tinham uma ligação íntima, ele a sustentava. Naturalmente, ela voltaria
quando o dinheiro acabasse ou a saudade apertasse. Era até bom que ela
desaparecesse por algum tempo. Não queria que sua nova posição, desposando
uma moça de família tradicional e de grande projeção social, pudesse ser
empanada pela sua ligação com Suzane.
Afinal, Maria Helena acreditava que ele a amasse. Representara o papel com tal
veemência que ninguém aventara a hipótese dele casar-se por interesse. Ele
procedia de uma família de estirpe. Seus pais haviam pertencido à corte no Rio
de Janeiro ao tempo do Império e haviam lhe legado seus bens que lhe
possibilitavam manter uma boa aparência.
José Luiz gostava do luxo. Vivia rodeado de tudo quanto era de melhor, adorava
obras de arte, e sua bela casa no Rio de Janeiro era mobiliada com móveis
franceses. Todos os utensílios, até suas roupas eram importados.
Era recebido nas altas rodas e muito considerado pela sua sobriedade e sensatez.
Contudo, José Luiz sabia que seus recursos eram poucos. Ele queria mais, muito
mais.
Maria Helena pareceu-lhe a mulher ideal para seus planos de poder. Seus pais
usufruiam de projeção social, política e eram muito ricos. O pai dela, batalhador
pela República, Deputado Federal, ocupava alto cargo de confiança do presidente
Floriano Peixoto.
José Luiz aspirava subir. Era advogado, estudara, porém, não acreditava que
conseguisse projetar-se sem cartucho.
Conhecera Suzane em seus tempos de estudante em São Paulo. Ela era brasileira,
porém havia sido adotada por um casal de ingleses que a educaram muito bem.
Falava inglês com naturalidade e sem sotaque. Seu pai adotivo era funcionário da
Estrada de Ferro. Não tinham filhos e ao adotar Suzane recém-nascida, o fizeram
por amor. Deram-lhe tudo quanto puderam. Ela era linda, inteligente, culta,
educada.
José Luiz sentiu-se logo atraido pelo seu ar brejeiro, pelo seu riso franco e
cristalino, pelo seu rostinho doce e delicado. Amou-a profundamente.
Apesar disso, esquivou-se sempre de um compromisso sério, alegando os estudos
e a necessidade de graduar-se primeiro.
Suzane entregou-se àquele amor de corpo e alma. Tinha certeza de que quando
ele se formasse, se casariam. Ele não desmentia, entretanto, os pais de Suzane, apesar do conforto em que viviam e do nível de educação que possuíam, não
eram ricos. Ele vivia do seu salário no emprego que, embora fosse muito bom,
não lhe proporcionava projeção social ou política.
José Luiz queria muito mais. Se casasse com Suzane, se transformaria em um
advogado medíocre e pobre, para o resto da vida. Precisava cuidar do seu futuro.
Por isso, quando ia ao Rio visitar os pais, procurava ambiciosamente alguém que
preenchesse suas condições.
Maria Helena foi ideal. Era bonita e fina. Olhos vivos, rosto expressivo. Morena,
cabelos negros e lisos, corpo elegante, olhos escuros e brilhantes.
Apaixonou-se por ele rapidamente, e José Luiz exultou. Do namoro ao
noivado foi um pulo, e seus pais lisonjeados aprovavam com entusiasmo aquela
união.
Na sua formatura, todos viriam para S. Paulo assistir às solenidades, e José Luiz
resolveu acabar sua ligação com Suzane. Era-lhe penoso esse momento, não
queria que ela sofresse. Amava-a muito. Não desejava perder seu amor. Contava
com o tempo para que a situação se arranjasse da melhor forma. Suzane o
amava muito. Sofreria a princípio, mas , depois, haveria de aceitar. Viria vê-la
sempre que pudesse. No futuro, quem sabe, talvez ela pudesse ir morar no Rio de
Janeiro. Montaria uma bela casa, onde eles seriam felizes.
Os pais de Suzane iriam voltar a Inglaterra dentro de pouco tempo. Ela lhe
prometera ficar com ele. Nas vésperas da formatura, contou-lhe tudo.
Sua ambição, seu noivado, seus projetos, tudo. Suzane chorou muito, não aceitou
a situação como ele desejara. Disse-lhe que se ele se casasse, nunca mais
a veria. Ele não acreditou. Ela o amava e haveria de reconsiderar. Porém, ela
não voltou, desapareceu, e ele nunca mais a encontrou. Tinha-a
procurado inutilmente. Soubera que haviam voltado a Inglaterra. Conseguiu uma
viagem pretextando negócios e foi até lá. Não os encontrou. Colocou um agente a
quem pagou regiamente para localizá-la, inutilmente. Parecia que a terra a havia
tragado.
As saudades doíam em seu coração. Ele tentou esquecer. Afinal, possuia tudo que
queria. Posição, dinheiro, vida social. Maria Helena deu-lhe dois filhos sadios e
inteligentes. Era atenciosa e dedicada. O que mais podia desejar?
Porém, o riso de Suzane vinha-lhe à memória, seu rosto alegre e carinhoso
aparecia-lhe em sonhos, onde as cenas de amor eram uma constante. José Luiz
não conseguia esquecer. Os anos passaram e com eles, o tédio da vida mundana,
a rotina de um casamento sem amor. José Luiz não conseguia continuar a representar com Maria Helena o papel de apaixonado. Cedo ela percebeu que
ele não a amava.
Discreta e educada, ferida em seus sentimentos, ela fechou-se ainda
mais, tornando-se distante e fria com ele. E assim, seu relacionamento foi
ficando apenas formal, e José Luiz procurava em outras ligações o amor,
sem conseguir encontrar.
Arrependeu-se de não haver desposado Suzane. Intensificou as buscas até que,
por fim, localizou, naquele cemitério no Rio de Janeiro mesmo, a singela
sepultura. Olhou o retrato oval encrustado na lápide onde Suzane aparecia
sorrindo. Como pudera ser tão cego? Como pudera trocar o amor daquela
criatura pelas ilusões mundanas?
Mas era tarde. Agora, só lhe restava chorar. Ficou ali, amargurado, durante
algum tempo. Quando se preparava para levantar-se, sentiu que uma mão suave
lhe tocou levemente no ombro. Levantou-se. Uma jovem estava diante dele.
Olhou-a admirado. Os mesmos olhos de Suzane, os mesmos cabelos castanhos e
anelados, sentiu um choque.
— Desculpe se o assustei. É que não o conheço e nunca o vi aqui.
— Está emocionado. Chorou por ela. Diga-me, conheceu minha mãe?
Ele sentiu-se aturdido. Ela era filha de Suzane. Então, ela havia se casado! Claro!
Por que nunca pensara nisso?
Uma onda de ciúme o acometeu. O amor de Suzane teria se acabado?
Ele precisava saber. Era importante conhecer a verdade. Olhou o rostinho
delicado tão parecido com o de Suzane e respondeu:
— Sim. Conheci muito sua mãe. Faz muitos anos.
Ela suspirou fundo.
— Talvez então possa me explicar algumas coisas — disse pensativa.
— Eu pensava exatamente a mesma coisa.
— Precisamos conversar — tornou ela, séria.
— Certamente. A tarde está fria. Aceitaria tomar um chá comigo?
— Com prazer. Vejo que trouxe flores. Vamos arrumá-las no vaso. Depois,
iremos.
Com delicadeza e carinho ela dispôs as flores, enquanto ele esperava e apesar de
toda emoção, José Luiz, de repente, sentiu uma sensação de paz.
Eles não viram que o espírito de Suzane estava ali, luminoso e belo, olhando a
cena com emoção.
— Finalmente, meu Deus, — pensou ela com alegria — finalmente eles se
encontraram.
Seu coração em prece envolveu-os com muito amor, acompanhando-os quando
saíram do cemitério e procuravam um local apropriado para conversar.

Quando a Vida EscolheWhere stories live. Discover now