Ventos para Areia Branca - Capítulo I

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Capítulo 1

Chica, a galega de olhos azuis

Cinco e meia da manhã, o galo cantou de um jeito diferente naquele domingo frio de começo de outono. O vento também assoviava fino e sacudia as árvores, mais uma vez anunciando a suposta chuva que por semanas recusava-se a cair. Apesar de o galo ser o mesmo de sempre – viçosa ave que o meu falecido sogro português designou como um descendente meio-sangue de um típico Galo de Barcelos lusitano –, o agouro que veio no seu clarinar fez-me arrepiar da cabeça aos pés e de súbito pular da cama direto para o meu pequeno altar. Posicionado logo ao lado da janela da casa-grande – hoje em dia já não tão grande assim – do engenho em que vivíamos, acendi três velas para São Tiago Maior e pedi pela saúde de todos os meus. Senti-me uma autêntica auguratriz.

Estranho o porquê de tanta fé em São Tiago, pois sem dúvida não era o mais popular dos santos dentre as carolas de Areia Branca – pequeno povoado bem perto de nós, nas cercanias de Piritiba –, lugar onde íamos atender à missa semestral do padre Boiro, nos raros domingos que ele aparecia. Talvez tanta fé tenha sido indiretamente deixada como herança por mamãe, diziam os mais velhos, uma mulher de bom coração e trabalhadora, cuja convivência não tive o prazer de usufruir.

Compensei a ausência de minha mãe agarrando-me ao trabalho e nunca deixando faltar amor aos meus filhos e netos. Amor esse que não recebi quando criança, muito menos quando mulher-feita. Casei-me por conveniência, pois a família que me criou não via a hora de se livrar do fardo que carregou por pouco mais de quatorze anos, além disso, os bem-arranjados Miranda precisavam de uma esposa para Eupídio, o seu filho mais velho e quase ermitão.

O varão da família Miranda detinha tal fama porque até o dia do nosso casamento vivia isolado a trabalhar nesta mesma casa de engenho, deste mesmo sítio, no qual agora eu vivo enfurnada, até hoje. Dali não mais saí desde o dia das nossas bodas, com raras exceções, como na época em que fui visitar minha filha em Salvador, a capital do nosso estado. No entanto, só tive essa prerrogativa quando Eupídio morreu, em 1980, há nove anos. De 1915, ano em que me casei, até então, eu passei a ser a mais nova “ermitã” – herdei o apelido do meu marido –, já que dali por diante Eupídio sentiu-se mais seguro em deixar o seu patrimônio aos cuidados dos agregados – é claro, todos eles sob a minha supervisão – e passou a aventurar-se em viagens mais demoradas rumo a Feira de Santana, lugar onde ele vendia a melhores preços todo o açúcar, rapadura, cachaça, e principalmente farinha de mandioca, que nós produzíamos. A parte boa era que ele voltava abarrotado de novidades provindas dos quatro cantos do país. Disto eu nunca pude reclamar, Eupídio sempre foi um homem de fartura. Nossa casa sempre teve comida em abundância.

Meu marido viveu a sua vida sem nunca ter aprendido a ler. Ignorante em relação às letras, foi um sertanejo voltado única e exclusivamente para o trabalho duro. Já o seu pai, o velho Manuel Joaquim, muito pelo contrário, era um homem relaxado e, dizem as más línguas que, passou a vida procurando quem inventou o trabalho para poder torturá-lo e depois mandar matá-lo. Preguiçoso como um cágado, não se dava o trabalho nem sequer de ter cuidado com a sua própria higiene pessoal. Banho passava longe dele, posso dizer com conhecimento de causa, visto que o infeliz viveu conosco no engenho até o fim e ninguém lhe convencia a lavar-se. Fedia como um gambá! Os mais velhos diziam que esse, dentre outros, deve ter sido o motivo que mais contribuiu para a morte prematura de sua esposa, Maria de São Pedro. Filha de índios da região, criaturas que sempre tiveram o banho como sagrado, talvez ela tenha sucumbido ao fedor que emanava do bode velho.

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