– Precisamos... sair... da cidade! – Boião arfava. A mão empapada de sangue sobre o talho na barriga fracassava em conter o sangramento, mas Boião temia que ao retirá-la dali deixaria escapar suas tripas .
O sol do meio dia chicoteava, nem o chapéu e a casaca de couro eram capazes de proteger.
– Fui tolo. Como me deixei enganar, ainda mais por um plano tão simples? A febre do ouro nubla o olhar do homem.
– Não faça isso, meu Capitão. Não é hora de se culpar - Risonho olhou para o Capitão Severino dos Santos. Nunca o vira daquela forma, nem na guerra, o homem perdido. Ninguém parecia igual, nem seria igual dali para frente.
– Te alui homem. O bando ainda tá vivo em nós quatro. Não por muito tempo, se tu não te recompor - as palavras de Cheirosa acertaram o Capitão como um tapa.
O homem se levantou, limpou o misto de suor e sangue da testa com as costas da mão e olhou para a esposa numa gratidão silenciosa.
– Risonho, me ajuda com o Boião. Cheirosa, você vai na frente dando cobertura. O desabamento vai nos dar algum tempo, os Encouraçados não podem nos seguir nessas vielas. - Qualquer vestígio de dúvida desaparecera do olhar do Capitão, sendo substituída por uma determinação afiada como a lâmina da peixeira que carregava no cós da calça.
Os gritos podiam ser ouvidos por todo lado, sargentos e capitães dando ordens. Tiros pipocavam, e desmoronamentos lançavam lufadas de poeira que passavam dos telhados das casas e casebres. Coronel Romualdo botaria aquela cidade abaixo se preciso fosse para capturar Capitão Severino.
O bando se deslocava pelas vielas tentando manter um equilíbrio entre a pressa e a cautela. Carregar Boião por si só já era tarefa dura, mas os canhões em suas costas e os vários quilos de explosivos tornavam tudo mais difícil, ainda mais com os pistões de sustentação danificados. Cheirosa ia na frente servindo de batedora, parando de esquina em esquina, a carabina de repetição empunhada.
As portas e janelas das casas estavam todas fechadas, o que era uma sorte, já que havia menos chance de alguém denunciar a posição do grupo. Cheirosa caminhou apressada, olhou num cruzamento e fez sinal para que os três homens avançassem. Boião tropeçou batendo um dos canhões na parede de barro de uma casa, derrubando um pedaço e abrindo um buraco que expôs o interior escuro ao sol. Dentro, um pai e uma mãe abraçavam seu filho.
– Misericórdia Capitão! - clamou o pai de corpo magrelo e olhos chorosos.
Sem responder, Severino meteu a mão na sinta e puxou uma sacola de onde ressoou um barulho metálico. Arremessou-a para dentro da casa, fazendo a família se encolher a ainda mais.
– Uma compensação pela avaria e pelo silêncio - disse, e partiu sem esperar para ver a felicidade nós olhos da família ao encontrar dobrões de ouro dentro da pequena sacola.
Avançaram pelas ruelas, sabendo que o cerco se fechava. Apertaram o passo, mas a pressão da marcha foi demais para Boião, que tropeçou novamente, quase levando os dois homens ao chão consigo.
– Cheirosa, pare! - gritou Severino. A mulher estacou pouco antes de uma esquina e olhou para o marido irritada, temendo que grito tivesse entregado a posição.
– Não dá mais pra mim não, Capitão.
– Não diga isso homem, falta pouco...
– Pouco para quê, Senhor? Saindo da cidade é uma ruma de chão até o acampamento, não vou conseguir - disse o gigante, com a secura de quem enxerga o fim. – Já aceitei.
– Aqui! - O grito ecoou pelo cruzamento. Severino levantou a cabeça e viu o dono da voz, um soldado que segurava com as duas mãos a carabina de Cheirosa. – Aqui! Eles tão aqui! - gritou o sujeito pela segunda vez, puxando a arma das mãos da mulher.
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Cangaço a Vapor
Science FictionInspirado pelas artes de um amigo, criei um cenário histórico onde as revoltas separatistas do Brasil foram bem sucedidas. Combinando elementos da ficção steampunk, com história alternativa a narrativa retrata um grupo de Cangaceiros que são embosca...