O pistoleiro e o homem santo

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De: Thiago H.N.Darc

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O pistoleiro e o homem santo - Uma história do universo de "Deus le volts".

"O mundo havia se esvaziado." Era o que dizia o livro em suas mãos. Fechou o volume e desistiu de continuar a leitura, enquanto observava o pistoleiro já desbotado na capa dura onde o nome do autor havia desaparecido há tempos. Era um princípio demasiadamente real para fugir da realidade. O mundo realmente havia se esvaziado, e ele preferiu observar o único homem que lhe fazia companhia no vagão.

Era um padre com seu sobretudo de couro abotoado até o pescoço. O homem sagrado escolhera a janela mais próxima à porta e, com toda sua santidade, admirava a paisagem passar monótona, em repetidas montanhas, enquanto o vento soprava os escassos fios que sobraram na velha cabeça de formato oval. Era negra a cruz que pendia no pescoço do ancião, relembrando para aquele que o observava o símbolo da igreja que resistira a tudo o que o mundo não foi capaz.

As grandes empresas haviam se transformado em governos. A guerra entre elas havia começado e acabado. As cidades caíram, o mundo mudou, e ainda assim aquela fé permanecia ali. Não se sabe se intacta ou transfigurada, mas era de alguma forma viva, e o homem que não lera o livro, admirava quase que perplexo, perguntando-se aonde ia aquele símbolo de credo.

Inúmeras vezes o viajante sentou-se naquele mesmo vagão, sendo sempre o primeiro a entrar no último e velho cômodo de rodas que subia pelos trilhos na longa viagem rumo à cidade do oeste. Por muitas vezes conhecera homens e mulheres interessantes, a maioria vendedores de perfumes que fediam carniça e jovens belas que eram inteligentes demais para se prostituírem no submundo ao qual o trem os levava. Todos tinham seus motivos ao partirem para lá de onde o sol não nascia todos os dias, por mais bizarros que fossem, mas nunca houvera curiosidade por parte do viajante a ponto de desejar uma conversa, pelo menos até o padre sorri-lhe discreto ao perguntar.

- Deseja alguma coisa, meu jovem?

A pergunta foi como um corte de faca em seu pensamento, e pouco havia para responder.

- Por que a pergunta, padre?

O padre acendeu um cigarro que já estava pela metade, possivelmente fumado em prestações. O isqueiro surgira da manga tão rápido quanto surgia nos truques dos ilusionistas que se apresentam nas cidades do leste, roubando relógios em meio à diversão. Em nenhum momento o padre havia oferecido um olhar, que continuava fixo na margem monótona e vermelha do horizonte,  além das ondulações de terra e mato amarelado.

- Pergunto simplesmente porque me observa desde que desistiu de ler. Parece perplexo em ver um homem de Deus. Sei bem que nos dias de hoje as coisas não andam como desejava nosso menino Jesus...mas... não entendo a estranheza por minha presença. Ouvi dizer que existem pessoas ao oeste que procuram palavras de alento na esperança de dias melhores.

- Dias melhores? - Agora foi o viajante quem sorriu. - O que o padre tem a dizer no oeste que faria acontecer uma metamorfose na sociedade e traria esses dias melhores? Ali só se encontra tristeza, padre. Aposto que é a primeira vez viaja para lá... Terá sorte se algum dia voltar.

O viajante viu o olhar do padre mudar. Ele observou os cupins passearem entre a armação de ferro velho e o carvalho podre que se abria no teto do vagão. Parecia pensar no que dizer, mas calou-se sem ao menos tentar.

- Certa vez, conheci uma velha senhora que crescera no leste ouvindo histórias sobre o oeste. - Continuou o viajante - Ela recontava com vivacidade as mentiras que ouvira sobre a queda das corporações após a guerra. Que lá só existe ruínas e nada mais, e que as maquinas escravagistas foram derretidas e transformadas em belas esculturas que representam a vitória do povo contra o Sistema. Mas o que essa velha nunca soube padre, é que o Sistema nunca caiu... Apenas adormeceu, mas ainda permanece vivo como o senhor e eu.

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