A queda das rainhas do norte...

By _BrunaRamalho_

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O Norte, um império sólido, mas amaldiçoado. Atarah é a herdeira de ouro, mas seu trono está ameaçado por uma... More

Mapa
O Norte - Atarah
Tudo ou nada - Atarah
Sangue sobre o mármore - Adenna
A rainha - Atarah
Gelo e fogo - Atarah
Coroa de vidro - rainha Odalis
A assassina - Merle
Um novo dia - Atarah
Sangue e família - Atarah
Vida e morte - Adenna
Fuja das sombras - Merle
Rainha Atarah - Atarah
O renascer - Merle
O preço - Adenna
A peça - Merle
Um novo início - Atarah
Ela está morta - Atarah
Ariella - Merle
Doce veneno - Keir
A melhor rainha - Adenna
Odeio o meu trabalho - Merle
Amadrya - Atarah
A estrela mais brilhante - Merle
Chamas do passado - Atarah
Pequeno lumaréu - Adenna
O veneno do amor - Merle
Terras Férteis - Atarah
Perdão - Adenna
Uma nova rainha - Adenna
Aislinn - Atarah
A deusa - Atarah
Minha primeira morte - Atarah
Um novo começo - Merle
Fim de jogo - Adenna
Bronimir - Merle
Sem destino - Atarah
A rainha está morta - Atarah
Por amor e um rei - Adenna
Selene - Merle
Os mortos - Atarah
Um final definitivo - Atarah
Dezesseis dias - Merle
O traidor - Adenna
A última jogada - Atarah
O peso de uma vida - Merle
Fim de jogo - Atarah
A queda - Adenna
Viva - Merle
O mundo que sobrou - Atarah
A história continua

Melione - Adenna

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By _BrunaRamalho_

   Provavelmente, por nunca ter deixado o Norte, sempre achei a capital maravilhosa, por conta das suas lindas praças no centro, dos comércios luxuosos, das ruas bem asfaltadas, do povo feliz que vivia ali, o baixo índice de roubos e de violência também eram coisas admiráveis, principalmente por estarmos falando do centro da cidade, mas isso vinha a ser tão perfeito por a pobreza ser isolada, escondida das pessoas que não viviam ali, em certos pontos bem distantes do castelo e do centro, se você sequestrasse alguém, ela diria que você a levou para outra cidade. O abismo social construído por anos do reinado da família Kalliste era espantado para longe dos olhos das pessoas, só que aquelas vidas marginalizadas ainda eram seu povo, ainda eram criaturas pensantes com necessidades, ainda tinham sonhos... Ainda desejavam uma vida melhor.

   O rei tentava comover o povo, tentava ascender o nacionalismo em seus corações, para que amassem a pátria acima de tudo, que entendessem assim suas condições e aceitassem que a vida era assim, para que não se revoltassem, que todos eles tinham aquilo em comum, um amor pela nação. Só que aqueles que conheciam meu pai aprendiam da pior maneira que o nacionalismo era para os ricos, para os pobres, não passava de uma manipulação, de um modo de manter o poder como estava, de amar uma família como se fossem, de fato, escolhidos por deuses, mas quem escolheria pessoas tão egoístas para reinar? Que deus seria tão cruel? Enquanto crianças morriam de fome nas favelas do outro lado da mesma cidade, Atarah Kalliste bebia champanhe em taças de cristal banhadas em ouro com outros nobres. Enquanto jovens se matava por meras peças de roupas no inverno, Atarah promovia apresentações de teatro no centro, não que a cultura não fosse relevante, só que quando a fome e o frio entravam pela porta, a necessidade de cultura e qualquer outra coisa saiam pela janela. Ela não entendia de prioridades, pois ela não via o povo, ela via quem era útil.

   Ela não se importava realmente com o povo, assim como seus pais, eles se importavam com aqueles que estavam na sociedade, não tinham interessem em ajudar aqueles que estavam a sua margem, afinal, eles já os tinham perdido para a rebelião. O Rei Aldrich havia abandonado aquelas pessoas, as deixado para morrer de doença, fome e frio, certamente, Atarah não faria diferente, não se ninguém a fizesse perceber que as coisas podiam ser diferentes, que o Norte precisava mudar... Que nós precisávamos nos resolver de uma vez por todas.

   Nem todos os convidados puderam ficar no castelo, apenas os membros das mais diversas realezas e suas nobrezas mais altas. Obviamente não me encaixava em nenhum dos quesitos, mas o rei, que se preparou para receber o maior número de visitantes, reservou as melhores hospedagens da capital para todos aqueles que foram convidados. De forma surpreendente, eu havia sido uma dessas pessoas. Acabei indo por uma questão de proximidade do castelo, também nunca tinha estado em uma hospedagem do centro, já que seus preços eram exorbitantes. Era uma cidadã, morava em Melione, alguém como eu não necessitava de tal coisa, não precisava da pena do rei, dos seus caprichos pintados de falsa gentileza. Tinha como para bancar a minha própria viajem até o castelo, como tive para confeccionar o meu vestido, exatamente como todos os nobres que estavam naquela espelunca luxuosa, nenhum deles precisava de favores dos Kalliste, mas todos tinham aceitado de muito bom grado gastar dos cofres reais, do dinheiro do povo.

   Cerrei minhas mãos de ódio, como podiam ser tão egoístas? Como podiam gastar tanto em futilidades, como eram capazes de ignorar as vidas das pessoas? Com o valor gasto naquele aniversário alimentaria o povo por longos meses, comidas fartas, poderia ajudar a reconstruir bairros de Melione, poderia mudar a história de diversas pessoas, trazer a gratidão delas! Infelizmente as prioridades deles sempre estavam relacionadas aos seus próprios interesses e daqueles que os cercavam. Tentei admirar o pôr-do-sol da sacada da hospedagem, certamente era uma das vistas mais deslumbrantes que tive na vida, perdia apenas para aquelas que tinha tido no castelo, em minha infância.

   Desde quando éramos crianças era assim, não podia culpar Atarah, era exatamente como ela, também não conhecia Avyanna, éramos alienadas a pensar que tudo era perfeito. A princesa, a escolhida pelos deuses jamais seria exposta as tristezas da realidade se dependesse de seus pais. Só que Atarah não era uma menina ruim, ela... Ela era minha amiga, ela me amou um dia, mesmo eu sendo uma criança adotada, sem poder, sem nada além de mim a ser oferecido a ela. Podia ter sido diferente... Nós podíamos ter tomado posições diferentes se nossas doutrinas não fossem tão distantes. Ambas desejávamos a mesma coisa, um Norte bom, a diferença era para que tipo de gente desejávamos isso.

   Felizmente cresci, e quando chegou o momento Cathan, meu tutor, o homem que me orgulhava de poder chamar de pai, percebeu que já era hora de pessoas como eu, como nós, que não tinham nada realmente, que tudo podia ser facilmente mudado pelo desejo do rei, por meu pai ser um nobre de título baixo, dado pelo próprio rei, pela amizade dos dois. Tudo o que tinha sido dado a nós podia ser tirado, mas as pessoas se sentiam tão gratas que acabavam se esquecendo disso. Os reis não dão nada de graça, por amizade... Reis não possuem amigos, eles têm apenas aliados.

   Meu pai, como chefe da guarda real, braço direito do rei, viu muitas coisas horrendas, o que o fez se questionar se o que estava fazendo era realmente o certo, espancar, prender, matar... Aquelas pessoas não tinham culpa, na maioria das vezes, elas apenas eram pobres, elas apenas queriam ajuda. Só que o Rei Aldrich não as enxergava, ele apenas as considerava sujeira, queria erradicar aquelas pessoas de suas áreas lindas da cidade. Durante muitos anos meu pai se odiou por prender pessoas inocentes, só que ele ainda amava o rei, ele me amava e sabia que eu amava Atarah, que se ele ficasse em silêncio, eu teria uma vida deslumbrante.

   Isso foi o que o fez se manter por tanto tempo na coleira do título que... No fundo, não era símbolo de honra ou de gratidão por suas conquistas. Durante anos meu pai teve medo, medo de perder, pois sabia que ele andava sobre uma linha fina, se caísse, ninguém o ajudaria, ele estava sozinho ali, demorou anos para que finalmente aceitasse que essa era a realidade.

   Quando desafiou o rei, sua conduta, obviamente o irritou e foi severamente castigado, aquilo foi o suficiente para que Cathan acordasse para a realidade. Foi quando começou a desafiar as ordens do rei, a descumpri-las em segredo, a soltar pessoas inocentes das masmorras, que conheceu o movimento e todos aqueles que serviam no castelo em segredo. Se o Rei tivesse escutado meu pai, se eles tivessem revisto seus planos de reinado... Quem sabe ele não tivesse perdido o meu pai, que sabe ele não tivesse tirado tudo da pessoa que era mais fiel a ele por ser tão mesquinho.

   Aprendi que era isso o que se ganhava após anos de lealdade no Norte, você ganhava um título baixo e se tornava um cão do rei, não era realmente parte da nobreza, seria bem tratado enquanto fosse útil, depois... Você não era nada para eles, não de verdade.

   Podia ter ficado, podia ter vivido ali, ser mais uma daquelas que bebia champanhe em taças banhadas em ouro, que falava sobre coisas que não eram realmente importantes, que seriam tratadas como se fossem os assuntos mais relevantes de Avyanna inteira, jamais conheceria a dor, o medo, a fome, o frio... E a certeza. A perderia por completo, pois o pensamento de "E quando Atarah se cansar de mim? O que acontecerá comigo?", viveria exatamente como meu pai viveu e eu não cometeria o mesmo erro, mesmo amando a Atarah, mesmo adorando minha vida ali, aquilo jamais me pertenceria de verdade, não enquanto a sociedade fosse como era. A que tipo de serviços iriam me direcionar quando crescesse? Aquilo não era certo, não era justo e não era o tipo de futuro que escolheria para mim, mesmo que doesse, mesmo que em certas noites me arrependesse amargamente. Aquele não era o meu lugar, não naquela época, não com a mentalidade que tinha.

   Sabia que agora a princesa me odiava, não tirava a razão dela. Como poderia? Me vendiam como a garota que iria usurpar seu trono, que mudaria o país, que merecia mais do que ela. Não bastava ter sido aquela que a tinha abandonado quando ninguém mais estava ao seu lado, também era aquela que tomaria o que era seu por direito. Não apenas estava traindo a família real, estava traindo nossa amizade, nossa história... Nossas promessas.

   Desde o momento que aceitei a proposta de meu pai tinha medo desse momento, desse dia, o que nós nos reencontraríamos. Nunca houve uma única palavra dela sobre mim, nunca fui citada em absolutamente nada do que ela escrevia a ninguém, era como se Atarah genuinamente não se importasse comigo. Seria ótimo que ela não se importasse, mesmo eu sabendo que era impossível isso ser verdade, pois uma coisa era certa, ela era rancorosa. E durante uma época dourada éramos nós duas contra todos, contra a corte, contra dormir, contra usar vestidos apertados, a comer tudo o que estava em nossos pratos, a responder por coisas que tínhamos de fato feito, como melhores amigas devia ser... Só que a abandonei e depois a traí por uma chance de mudar as coisas, uma que aparentemente era tão pequena que nem valia ser discutida com os outros.

   Atarah podia não me considerar uma ameaça, mas ela com certeza tinha muito rancor de mim. Se fosse ela, pensaria que poderia ter deixado meu tutor e vivido bem ali com ela, a própria rainha tinha dito isso em frente a nós duas, mas naquela época eu já sabia que ela não estaria fazendo aquilo por mim, não, a rainha jamais faria isso por mim, nem em respeito ao meu tutor e aos anos de serviço, de amizade e lealdade. Aquilo não era nada para eles, igual ao meu pai existiriam outros milhares, doía pensar isso, mesmo sendo a cruel verdade, mas eu... O meu caso era um pouco mais delicado, afinal, fazia a sua filha sorrir, era a única amiga de uma garota totalmente retraída. A princesa nunca teve muito jeito para fazer amigos, ela pensava demais, era séria demais, com preocupações bem maiores que todos os demais.

   Com oito anos, as crianças da corte brincavam nos pátios e salões o dia inteira, a princesa estudava. Enquanto as crianças da corte ficavam falando besteira nos jantares, a princesa recitava poesia. Enquanto nós éramos crianças, Atarah treinava para ser a melhor rainha que conseguisse, para amadurecer o mais rápido que fosse capaz, para que pudesse sempre resolver tudo sozinha. Considerava as crianças da corte, de maneira geral, tolas e dispensáveis. Precisei me esforçar muito para que ela me deixasse passar por seus muros internos, aquilo foi raro, foi especial... Foi único.

   Mesmo assim, a deixei pelo o que acreditava, abandonei Atarah Kalliste, a deixei sozinha contra Avyanna. Esse tipo de coisas pessoas como a princesa não esquecem, elas remoem, só que eu não parei ali... Fiz pior. Por isso conclui que a profundidade de seu rancor por mim, do que ela deve ter hoje em dia, é algo realmente digno de medo. Agora Atarah é adulta, assim como eu. Agora é o momento em que posso me tornar uma ameaça para ela, assim como ela para mim. As coisas não seriam mais apenas sobre o povo do Norte, mas também sobre eu ainda estar entre os vivos.

   Na mais pura e utópica realidade, não desejava o trono de Atarah, não tinha vocação para reinar, não estudei para isso, não entendo sobre política, admito isso. Eu, Adenna Eirian, queria reinar ao seu lado, não sentada em seu trono, mas ao seu lado, como uma conselheira, como alguém que ela escute. Não tenho interesse em uma guerra civil, em pessoas sendo presas, feridas ou mortas. Só que isso era eu, Adenna, meu pai tinha uma opinião diferente, ele não acredita que Atarah possa mudar, que ela aceitaria me ter ao seu lado, de ter a voz do povo em sua sala de reunião. Cathan se preparava para usurpar o trono, mobilizava nossos seguidores para atacar o castelo e derrubar a família Kalliste.

   Independente do tempo que levasse para que Atarah assumisse o trono, se não abrisse mão ou não aceitasse me ter ao seu lado, infelizmente seu reinado seria bem menor do que ela imaginava, igual sua vida, já que o castelo estava infestado de rebeldes há tempos. O movimento só crescia e as doações só aumentavam. Eles desejavam derrubá-la. Obviamente entendia aqueles que desejavam isso, compreendia com totalidade o remorso que meu pai sentia, não acreditava que estavam errados, claro que não, mas não estamos apenas desafiando a família real do Norte, estávamos desafiando Atarah Kalliste, aquela que foi abençoada com o poder mais puro e forte que o Norte já conheceu, a mais poderosa de todos os seus antecedentes. O ouro do Norte, aquela que teve o toque do divino.

   Muitos diziam que os deuses já tinham abandonado as terras há muitas vidas, entretanto, jamais acreditei nisso. Pois eu conheci Atarah, não apenas a sua beleza era algo completamente chocante, quanto seu poder. Poucos sabiam, ainda menos acreditavam, mas conhecia e... Temia. Atarah estava onde estava porque os deuses a colocaram lá, isso era indiscutível para mim. Não desejava tirar a princesa de seu lugar de direito, já que desse modo estaríamos desafiando os deuses e correndo o risco de sua ira.

   Assim que o sol partiu, todas as lindas luzes amareladas da cidade se acenderam, tornando as ruas ainda mais belas. O castelo, que estava ainda a uma longa distância, igualmente se iluminou, parecia ainda mais bonito do que ao pôr-do-sol, apenas perdia para sua aparência única do amanhecer.

   Voltei ao meu quarto, já estava quase na hora de ter que partir, todos os convidados que estavam hospedados para o aniversário da princesa receberam um cartão informando o horário que sua carruagem chegaria. Só que antes de partir para finalmente ir ao encontro que poderia definir o futuro do Norte, pouca pressão... Senti que precisava conferir como estava, ver se o vento não tinha bagunçado a longa e grossa trança que tinha feito em meu cabelo. Passei as mãos pelos fios negros soltos próximos ao meu rosto, os colocando no lugar novamente. Me olhei no espelho e forcei um sorriso, mas não funcionou.

   O vestido que usava era preto, da exata cor do meu cabelo, com brilho prata espalhado pela saia e um cinto grosso na cintura, igualmente prateado, os tecidos saia eram um tanto volumosos, mas nada realmente exagerado, havia muito brilho nele, na esperança de torná-lo mais festivo. O tinha achado lindo, mesmo que o considerasse um pouco demais, passei minhas mãos no tecido, tentando ajeitá-lo, no fim, apenas acabei deixando minhas mãos completamente brilhantes de brilho prateado. Acabei não resistindo e dando um sorriso genuíno com aquilo, certas coisas eram engraçadas, como tolices e sensações como aquela, eu me sentia uma princesa com aquele vestido, mas tinha que me arrumar sozinha e sujar minhas mãos por completo, por simplesmente estar tão nervosa que esqueci que o brilho soltaria da saia.

   Puxei a trança da parte detrás das minhas costas, na intenção de limpar o brilho em sua extensão. Ver o tamanho dele me fez perceber como precisava cortá-lo, estava comprido demais... A ponta da trança batia quase que na metade da minha coxa. Respirei fundo e conclui que ela ficava melhor na frente do que atrás. Em seguida conferi o esfumado, igualmente preto, que tinha feito na parte superior dos meus olhos, eles valorizavam muito o verde das minhas Iris. Considerei que estava tudo muito bom! Sim, estava bem bonita. Bonita o suficiente para não ser subjugada por qualquer um daquele castelo.

   – Levou oito anos, Atarah... – Disse para o espelho que me refletia.

   Após oito anos a iria rever. Como será que estaria agora? Certamente ainda mais bela, será que me reconheceria? Já faziam muitos anos que não ia até aquele castelo, já fazia tanto tempo em que a tinha visto pela última vez... Eu tinha envelhecido bem, segundo Alastair e Balderik, as poucas vezes que tinha visto Blyana Sinclair ela tinha elogiado minha aparência. Nunca nenhum dos dois comentou sobre como Atarah estava, nunca questionei por parecer irrelevante, igual nunca comentaram sobre o poder dela. Atarah não falava sobre seu poder, nenhum deles jamais comentaria, afinal, ela tinha uma habilidade impressionante de ocultá-lo.

   Quando me considerei finalmente pronta para enfrentar aquele dia, desci para encontrar minha carruagem, me senti levemente enjoada quando senti seu cheiro perfumado. O espaço dentro dela era ótimo, bem espaçosa e mal balançava, mesmo assim, meu enjoo se manteve, ela era muito melhor do que todas as demais que tinha andado na vida, mas isso não era de surpreender.

   – Acalme-se Adenna, vai dar tudo certo. Tenha fé. – Repeti isso diversas vezes para eu mesma.

   Atarah era a Princesa de Ouro do Norte. Sim, ela era, mas eu também tinha um título, que para a nobreza podia não ter valor, que podia não carregar terras ou um sobrenome com sangue nobre, mas tinha recebido um título de fé, dado a mim pelas pessoas que acreditavam que poderia fazer a diferença. Meu titulo tinha valor, um inominável. As fé das pessoas era aquilo que mantinha os deuses vivos, era da esperança do povo que os nomes dos deuses se mantinham, se não fosse comentado, se fosse esquecido... Você não existia. O poder, o maior poder de Avyanna estava na mente e coração das pessoas, essa fé criou deuses, criou Arawn, a minha deusa, a Deusa da Noite e da Justiça.

   A fé das pessoas era o que mantinha os deuses vivos, na minha visão, então o poder do povo também podia me fazer uma princesa, se tudo desse meio errado... Rainha. Eu era Adenna, a Princesa de Prata do Norte, não realmente uma princesa, já que não tinha título de nascença, também não tinha direito a coroa alguma, mesmo assim, o meu título possuía valor, possuía para mim e a todos que me acharam digna de carregá-lo. Atarah foi escolhida pelos deuses, mas eu tinha sido escolhida pelo povo. Não éramos iguais e jamais seriamos. Isso não era um problema.

   Atarah só precisava me ouvir, considerar me ter ao seu lado... Era uma princesa bens, mas tinha um povo, um povo que acreditava em mim, um que também pertencia a Atarah, só que não estava em posição de decepcioná-los. Não podia desistir da minha oferta, estava disposta a tudo aquilo para evitar termos que agir do jeito difícil, do jeito que não concordava.

   Minha ida era em respeito a um passado, um que tinha certeza que Atarah estava disposta a esquecer, mas não estávamos em posição para termos esse luxo. Precisava que esse passado significasse algo para ela ainda, precisávamos resolver nossos assuntos antes que fosse tarde demais. Antes que o plano "B", que era o plano "A" de meu pai e seus rebeldes... Jamais desejaria tal coisa para ninguém, muito menos para a princesa. Ela sempre considerou a família a coisa mais importante e preciosa que uma pessoa poderia ter em Avyanna. Família era poder, mas amor era fraqueza. Amor pela família era poder, esse era o único que se passava de mãe para filho, tios não eram família, primos também não, os avós... Podiam ser, mas nem sempre... Nunca seria capaz de viver com tal visão, jamais conseguiria viver uma de tal modo. Qual seria o sentido de viver uma vida em que você não pudesse amar?

   Melione era maravilhosa pelo caminho que fizemos, certamente não era o mais rápido, mas indubitavelmente o mais belo. Era óbvio que os reis escolheriam o caminho mais bonito e não o mais prático, mas isso nem me surpreendia mais. Só que quanto mais tempo demorava, mais ansiosa e nervosa acabava ficando.

   Sabia que os nobres, em grande maioria, me odiavam. Eles acreditavam que pretendia acabar com seus negócios, com sua vida burguesa bancada pela mão de obra precária das pessoas de suas terras, certamente não me agradava em nada, e concordava que todos mereciam ser livre e a simples existência deles eram um empecilho. Só que eles eram um problema que era meu, Cathan e Balderik eram aqueles que conversavam sobre o que aconteceria com todos os nobres. Podia não prezar por suas existências, mas nem todos eles eram ruins, alguns nos ajudavam, outros se mantinham em silêncio, mesmo sabendo o que fazíamos. Eram aliados.

   Assim que a carruagem parou de maneira definitiva, tive coragem de abrir os olhos novamente, apenas observei o castelo estando cada vez mais próximo fazia meu estômago revirar. A entrada do castelo estava repleta de luzes e flores feitas de cristal, havia um corredor fechado com um arco feito unicamente delas, antes das enormes portas do Castelo da família real. Era encantador, exageradamente luxuoso, ao ponto de dar raiva só de imaginar o quanto tinha custado, mas era encantador.

   A porta da carruagem foi aberta por um guarda, ele me ajudou a descer, tudo de maneira muito respeitosa. Ele não me acompanhou, mas havia um outro guarda que se aproximava, ele vinha da enormes portas do castelo, não estava nem um pouco surpresa de terem destinado um guarda unicamente para cuidar de mim, aquele era um dos muitos sinais que receberia ao decorrer daquela noite que comprovariam que em momento nenhum eu fui realmente bem-vinda ali. Mesmo tendo sido convidada em uma carta escrita a mão pelo próprio rei, mas não tinha problema, não... Minha vinda para aquele maldito castelo em momento algum teve o propósito de agradar qualquer um. Estava em uma missão.

   O guarda que se aproximava descia as escadas de pedra branca da entrada com muita classe, precisei me conter muito para não sorrir. Ele era exageradamente alto e forte, mesmo com seu uniforme de gala, ainda era visível que treinava muito, seus cabelos eram relativamente longos, quase chegavam aos seus ombros, mas estavam devidamente presos em um meio rabo de cavalo, era de um tom muito bonito de marrom, era bem escuro e valorizava a cor mais bronzeada de sua pele, provavelmente causada por treinos ao ar livre. Um rapaz muito bonito, seus olhos prateados estavam fixos em mim, parecia determinado e muito sério, ele me olhava com uma veracidade surreal, mas aquele não do jeito que eu gostaria ele me olhasse... Bem que Alastair poderia me olhar com um pingo de desejo... Ele era forte e um rebelde, no fim das contas, as características que mais admirava em um homem, beleza e consciência de classe.

   O meu tão importante aliado, Alastair Fenton. Ele foi uma das muitas crianças que cresceram naquele castelo, não como nobre, claro. Era filho de um cozinheiro, enquanto eu e Atarah passávamos o dia não fazendo nada que poderia ser considerado trabalho, no lugar mais quente daquele castelo, perto de fogo e diversos objetos cortantes, ele trabalhava. Só que ninguém quer viver na cozinha para sempre, ele já tinha algo que outras crianças não tinham, uma oportunidade. Na infância Alastair era cegamente fiel a coroa, assim como em sua adolescência, sempre obedeceu tudo sem questionar, afinal não se sai da cozinha para a guarda real do nada. Só que ele era um homem dedicado, sempre foi, não me surpreendia em nada ele ter chegado tão longe. A vida ali no castelo lhe caia bem, pelo tanto de medalhas de honra em seu casaco, era perceptível que ele não odiava fazer o que fazia, mas reconhecia que não havia honra em servir a um bando de opressores. Qual é a real honra em matar em nome de alguém? Foi o que ele me disse na primeira vez em que nos encontramos. Alastair estava certo em se questionar daquilo, não havia honra alguma, honra era algo que ninguém que vivia e servia naquele castelo realmente tinha.

   Ele tinha envelhecido bem melhor do que eu e Balderik juntos... Era muito injusto!

   – Adenna Eirian. – Disse ele dando um sutil aceno de cabeça.

   – Sim.

   – Irei acompanhá-la até o salão. Estarei te observando o tempo inteiro, não se esqueça disso.

   Não soube dizer se aquilo foi um conforto ou uma ameaça, apenas sorri e o acompanhei para dentro do castelo. Era engraçado fingir que não o conhecia, mas Alastair levava seu trabalho muito a sério, afinal, mesmo não existindo honra em servir a família Kalliste, ele ainda amava seu emprego, ele tinha batalhado muito para estar onde estava e movimento algum o tiraria dali. Alastair estava o tempo inteiro encima do muro, ele fazia parte do movimento, agia como informante, mas não deixava de cumprir suas funções, também não colaborava em nada, mas também não dedurava.

   Nossa caminhada foi tranquila, observava como o castelo continuava praticamente igual era nas lembranças da minha infância, esbanjando luxúria, mostrando as reais riquezas do nosso povo, riquezas que ao invés de estarem nas paredes e no piso de mármore, poderiam estar na população, na infância não tinha essa visão, mas naquela época... Quem dali realmente se importava com o povo? Quem realmente se importava se eles viviam ou morriam? Se passavam fome, se tinham onde dormir? Isso era irrelevante, para alguns, tais dúvidas nem sequer passavam em suas mentes. Para outros, se no outro dia o homem estivesse no trabalho, não fazia diferença. Importavam-se apenas com aqueles que fariam falta a eles. Aqueles que eles mais necessitavam dos serviços, aqueles que serviam em suas casas.

   O hall de entrada já estava repleto de convidados, todos muito bem vestidos e deslumbrados com a beleza majestosa do local, gente que tinha casa de gente rica, se é que existia um rosto para isso, antes não acreditava, mas após vê-los... Era um rosto de quem comeu e não gosto, de nunca estar realmente satisfeitos com nada, só que pareciam surpresos em não ter nada para criticar. A decoração certamente tinha sido toda planejada pela rainha, ela era exemplar em organizar decorações marcantes e que sempre escapavam de críticas. Certamente Atarah nunca havia falado com aquelas pessoas em sua vida, pareciam todos muito mais velhos e carregavam sotaques marcantes, mas a intenção daquele baile era justamente esse, apresentar a jovem princesa para a sociedade, dar a oportunidade de ela criar os próprios contatos. Essa era a utilidade de gastar uma fortuna em uma única noite.

   Tudo estava trabalhado em dourado e branco, provavelmente tentando trazer uma mensagem simplória como riquezas e paz, havia paz ali, paz entre aristocratas com outros aristocratas, exatamente como existia paz entre o povo, mas aquela paz não existia tão verdadeiramente entre as duas classes, principalmente por culpa da riqueza.

   – Curiosa a escolha de cores... Pelo menos é bonito. – Alastair não disse nada.

   A música tocava animada no salão em que a festas ocorria, algumas crianças dançavam no centro dele, não havia preocupação marcada em seus rostos, a vida era aquilo, feliz e despreocupante, um sonho... Perfeita. Me recordei de quando tinha aquele tamanho, quando a minha vida também era dançar e brincar. Era tão simples... Não fui capaz de conter meu sorriso, só que os pais das crianças me olharam, isso fez com que qualquer chama de felicidade ou vínculo desaparecesse junto de meu sorriso. Quando tudo realmente mudou? Quando foi que me tornei completamente incapaz de ver Avyanna por esse filtro que tirava todos os problemas dela?

   A decoração do Salão era a extensão da que estava no hall, só que muitas vezes mais bem trabalhada e muito mais deslumbrante. Havia vasos sobre todas as mesas perfeitamente adornadas com conjuntos de pratos completos, com rosas que certamente tinham sido banhadas em ouro e borboletas feitas dos mais diversos tipos de joias voando sobre o salão. O pensamento de como magia era algo realmente impressionante foi impossível de se evitar.

   Alastair deixou de me acompanhar ali, segui sozinha pelo salão, procurando uma boa mesa para me sentar. Entre as mais de noventa mesas do salão, com cada uma comportando seis pessoas, certamente haveria lugar para todos, mas duvidava muito que qualquer pessoa que viesse a chegar gostaria de se sentar comigo. Isso me convenceu a escolher uma mesa próxima da entrada e de uma das gigantescas janelas, me oferecendo uma magnifica visão da cidade de Melione.

   A cada minuto mais pessoas entravam, nenhuma falava comigo ou ousava se sentar em uma mesa que fosse próxima da minha. Alastair ainda me observava de uma boa distância, na tentativa possível de me manter confortável. Obviamente não tinha funcionado, no fundo, também não fazia a menor diferença. Respirei fundo e me coloquei a esperar sozinha a única coisa que procurava naquela noite, uma conversa com Atarah... Fiquei brincando com a ponta da minha trança, fiquei repetindo todas as palavras que diria a ela, as reorganizava em minha mente, pensei nas respostas que daria para cada possivel situação. Só que precisava falar com ela, só precisava dela.

   Fazia muito tempo que não reclamava da solidão. Também não estava reclamando naquele momento, mas descobri que deveria ter agradecido por ela ter sido a minha companheira até aquele momento, deveria ter dito o quanto preferia ela a Sorin Melantha, o primo detestável de Atarah, também conhecido como a outra ameaça ao seu reinado e ao meu... Ele tinha mais direito ao trono do que eu, alguém da família, mas que ao mesmo tempo, não era... Na realidade, todos tinham mais direito ao trono do que eu.

   Quando o príncipe das Terras do Leste puxou a cadeira ao meu lado e se sentou, questionei se caso me levantasse, se ele viria atrás de mim como minha sombra. Acabei não me levantando por acreditar que seria pior se ele me marcasse a noite inteira, mas só a mundana presença de Sorin ali me fez pensar no quanto estava arrependida de ter ido.

   – O que houve, ratinha? – Seu sorriso bobo era assustadoramente sedutor.

   Certamente se Sorin não fosse um sádico egocêntrico, ele indubitavelmente seria um dos rapazes mais cobiçados desta festa. Nós três estávamos em idade de casório, e os olhos azuis e os cabelos dourados dele, junto de sua pele branca, pelas condições climáticas do Leste, o tornavam um dos homens mais lindos daquele salão.

   – Vá importunar outra pessoa, Vossa Alteza. – Sorri como se tivesse acabado de ver uma vaca defecando em um pasto que antes estava admirando.

   Ele não desviou seu maldito olhar "sedutor" de mim. Seu rosto estava levemente queimado e na parte de cima de seu nariz estava levemente descascado. Tinha escutado boatos de que ele andou navegando para as Terras de Luz, na tentativa falha de cortejar Amélia Dantara II. Obviamente não tinha dado certo, já que era de conhecimento geral que Amélia era a princesinha da família real, eles jamais a entregariam para um homem como Sorin Melantha, ou para a deixariam partir para um território tão frio e distante das asas protetoras de sua família. Todos conheciam a ideia expansionista absurda do Leste, eles queriam um reinado por todas as Terras Bruxas, queria tornar tudo seu, mesmo tendo conhecimento que era território demais e que não seriam capaz de cuidar de tudo. Só que ninguém dava muita moral para seus planos infantis, já que nação alguma deixaria que isso acontecesse. Principalmente o Norte, com alguém que, por direito, podia tomar o Leste caso estivesse casada. Seria ainda mais fácil se Atarah se casasse com um nobre do Leste, mas isso certamente estava fora de cogitação.

   Sorin não se sentaria ao meu lado caso não estivesse decidido a tentar me convencer de alguma de suas ideias idiotas. Não tinha dúvida de que ele tinha comparecido unicamente para tentar pedir a mão da prima, já que aparentemente era a única princesa em Avyanna inteira que restava. Só que também já era de conhecimento geral que Atarah jamais aceitaria, primeiro por ele ser seu primo e não ser útil para ela, segundo porque ela o odiava, iria preferir se casar com um plebeu do que com seu primo.

   Deviam ter se visto umas trinta vezes durante a vida inteira, o que era bastante, mas a mãe de Sorin gostava de enviá-lo ao Norte, na esperança que ele fizesse aliados para tomar o trono... Na realidade Sorin vinha ao Norte e ficava estorvando no castelo, incomodando a prima e criando escândalos com empregadas e nobres de baixo escalão. Se isso já não fosse o suficiente, Sorin havia dito em alto e bom som em uma taverna, no Leste, que pretendia ter o Norte, mesmo que isso custasse à cabeça de alguns parentes... Isso foi tão espalhado que tinha chego até a plebe, obviamente também chegou até Atarah. Me surpreendia um tolo como ele ainda estar vivo.

   – As outras pessoas não são tão inconvenientes como você. – Ele se espreguiçou e se sentou de modo mais desleixado. – Me conte, como vai à vida, ratinha?

   O encarei com raiva, só depois percebi que era exatamente isso o que ele desejava.

   – Na verdade, me conte como vai a sua, continua arrancando asas de Fadas inocentes nas férias? – Antes que o príncipe respondesse, coloquei minha mão sobre sua perna após dar um leve tapa nela, o que o surpreendeu o suficiente para não conseguir falar antes de mim. – Ah, que tolice minha dizer isso! Já que você está sempre de férias... Não se sente culpado?

   Tirei minha mão de sua perna e a limpei em minha saia, a deixando completamente brilhante, isso o fez rir como uma criança despreocupada, claro... Era isso o que Sorin era, só que ele era adulto, mesmo que se esquecesse disso. Parecia se divertir com minha referência a terrível atrocidade que acontecia com as criaturas Feéricas no Leste. Fazia meses que o número de Fadas nômades tinha começado a aumentar, principalmente na fronteira entre Leste e Norte. Não era crime escravizar Fadas no Norte, mas não era incentivado como era no Leste, a violência contra aquelas pobres criaturas era algo realmente assustador, principalmente quando foi descoberto que Sorin e seus amigos nobres saiam na calada da noite com a única intenção de fazer mal as pobres Fadas.

   – Culpado? São pragas, querida Adenna, pragas como você. Nós precisamos lembrar que vocês não pertencem a esse lugar, mesmo que pareça que não. – Seu sorriso doce não amenizou o peso de suas palavras, mas essa era uma das poucas qualidades que reconhecia em Sorin, ele tinha uma língua tão afiada quanto à da prima.

   – Você é igual a mim, para o Norte.

   – Não se engane, eu sou um príncipe. Você é escória... Deve estar pensando em formas de roubar meu futuro reinado, mas não será tão fácil quanto foi roubar essas suas joias que usa.

   Precisei rir, uma daquelas risadas sem graça que não enganam ninguém, que possuíam a única missão de irritar pessoas com egos inflados como o dele. E que nunca na história falhou.

   – Seu reinado? Em que realidade você vive, Sorin? – Seu desgosto por mim poderia vir a causar uma ruga de expressão em seu rosto perfeito. – Isso nunca será seu, pode ser que não seja meu também... Mas seu... Não, isso nunca vai acontecer.

   – Mas assim como suas joias, posso comprá-las. Não somos iguais, você precisa, necessariamente, roubar algo para que seja seu. Apenas tenho que conquistar, entende a diferença?

   – Você conhece a prima que tem...

   – Não tão bem quanto você. – Ele cruzou os braços exatamente como eu e, juntos, observávamos o movimento no salão. – Sei dos planos dos rebeldes para essa noite, Adenna... Tenho meus contatos... – Completou de maneira orgulhosa.

   – Devem ser tão bons quanto os meus lá nas Terras Férteis.

   Sorin ignorou o ataque, como se não tivesse escutado.

   – Sabe que se Atarah sobreviver e assumir o trono, você estará morta, certo? – Me sentei mais ereta e o encarei. O plano não falava sobre matar Atarah Kalliste... Sorin devia estar blefando. – Soa bem, não acha? Atarah a Rainha de Ouro do Norte. Só que ficaria ainda melhor como, Sorin o Rei de Ouro do Norte e do Leste.

   O príncipe fez como se estivesse vendo seu nome e títulos brilharem enfrente a nós, enquanto fazia um movimento com as mãos.

   – Você nunca será o rei do Norte.

   – E nem você a rainha. – Aquela sua passividade na voz me irritava profundamente.

   O príncipe se levantou, aproximando seu rosto do meu, me fazendo recuar um pouco.

   – Acho que minha prima já deve ter dito isso a você, ou alguém sem dúvida já deve ter falado, mas vou repetir, por gostar de você. Rainhas fracas não reinam em terras mágicas, Adenna.

   Meu nome saiu de seus lábios como se fosse uma doença, com a leveza de uma pluma, Sorin se afastou, com graça e um sorriso que faria qualquer garota jovem demais para reconhecer um cafajeste se apaixonar. Com a mão direita deu um aceno para um grupo de damas que trocavam risadinhas quando perceberam que chamaram a atenção do príncipe.

   – Nenhum rei conseguiu controlar o seu povo por muito tempo através da tirania. Os Everleigh, pelo menos, servem de exemplo para algo bom nessas circunstâncias.

   O herdeiro do Leste estava a cerca de seis passos de distância de mim naquele momento, havia muita curiosidade em seu olhar, eu instigava muitas coisas nele. Sorin parecia, de fato, apreciar falar comigo, já que eu jamais me daria ao trabalho de tentar agradá-lo uma única vez e caso fizesse, iria detestar ao ponto de desejar beber veneno.

   – Ratinha, piões agem de acordo com o carisma do seu soberano. Hoje em dia, diria que os Everleigh possuem um soberano genuinamente digno de respeito. Atarah tem um certo carisma duvidável e um rosto avassalador, o que compensa. Eu sou... – Sorin riu, como se fosse óbvio. – Um soberano nato, com carisma e beleza. Infelizmente, o seu carisma é zero. – As garotas desta vez chamaram o seu nome. Sorin deu um último sorriso falso para as garotas, parecia não gostar de ser apresado. Antes de partir definitivamente, me olhou da cabeça aos pés. – Aproposito, você esta especialmente linda nesta noite.

   Não sorri como ele. Não sabia dizer se o que Sorin tinha dito era de fato o que ele realmente pensava ou se estava apenas caçoando com a minha cara, mas me coloquei a pensar, ele tinha falado que não tinha carisma algum, mas não disse que não era bonita... Infelizmente aquilo me deixava contente.

   – Obrigada. – Disse de forma desdenhosa.

   Após agradecer, o príncipe do Leste me deixou em paz. Novamente sozinha com meus pensamentos, respirei fundo por já me sentir cansada mentalmente de tudo aquilo.

   – Essa será uma longa noite... – Murmurei.

   Conforme o tempo passava e a solidão me consumia, comecei a me sentir mais e mais desconfortável naquele salão, todos os aristocratas conversavam entre si, alguns bem próximos de mim. Boa parte daqueles que não eram do Norte nem sequer sabiam quem eu era, mesmo assim, de algum modo, eles sabiam que não era uma deles. O guarda ainda me observava com atenção, não havia pena em seu olhar, não existia nada ali. Me questionei o que poderia ter feito Alastair se tornar tão frio, mas isso era apenas um efeito do tédio.

   Não sei ao certo em qual momento comecei a brincar com os talheres, ou quando a faca passou a ser aquele que mais me agradava de mexer. Todas as demais mesas do salão já estavam ocupadas, os próximos convidados que chegassem seriam obrigados a sentar comigo... Infelizmente.

   Era um tanto engraçado os olhares de desgosto que os mais velhos direcionavam a mim e os olhares de medo que as crianças faziam depois de seus pais dizerem qualquer que fosse o argumento para que elas ficassem longe de mim. Era como se todas aquelas pessoas poderosas do Norte, de alguma maneira, tivessem medo de mim, mesmo eu não sendo nada além de uma garota em um vestido bonito, uma menina mortal, sem magia e sozinha. Não me importava com a parte de ser mortal, a vida de um Elfo sempre me soou muito chata, era tempo demais, a de um vampiro então... O que realmente me frustrava era não ter magia, não era tão incomum nascerem crianças com poços mágicos tão rasos que não era possível aprender o mais dos ridículos encantamentos, mas diferente dessas crianças, nem sequer era capaz de sentir o meu poço, conseguia notar a magia dos outros como ninguém, entretanto, de mim... Não existia nada. Sempre seria menos do que eles, já que eles sempre seriam mais fortes.

   A última corte a chegar foi a do segundo príncipe das Terras Capitais, junto dele não veio uma grande comissão, seus pais tinham vindo, o que me surpreendeu um pouco, e mais dois homens bem vestidos, um usava óculos e o outro não. Procurei de maneira despretensiosa os irmãos dele pelo salão, só que, de fato, só tinham vindo eles. O jovem príncipe carregava uma pequena caixa em suas mãos, feita de couro, com um fecho delicado em dourado. Ele era mais um dos vários que cortejariam Atarah, ele possuía um bom território e contatos, mesmo tendo um histórico de devassidão realmente chocante... Devia ter se cansado das libertinagens e de dormir com metamorfas... Ou quem sabe, fosse do mesmo esgoto que Sorin, se casaria por poder, mas que provavelmente manteria os maus hábitos por não saber viver de outro modo.

   Me peguei questionando minha própria índole. Era um tanto estranho ser tão interessada nos escândalos sexuais de um príncipe estrangeiro. Os informantes do movimento tinham me contado sobre isso depois que voltaram da populosa e complexa cidade de Brielle, uma cidade de fofocas, luxo e... Se você estivesse procurando por algo, independente do que você, certamente encontraria em Brielle, foi isso o que me disseram a vida inteira.

   Mesmo sendo uma cidade tão grande e que o comércio de informações praticamente sustentava metade da população. Se você quisesse que uma notícia simplesmente parasse, com o dinheiro certo, ela jamais passaria de Brielle. A Grã-Duquesa Anne Amynta Cielle, irmã mais nova do Rei, vendia tal serviço. Ela sabia muito mais do que qualquer um, nem mesmo os informantes das mais diversas famílias nobres conseguiam tirar as informações dela, mesmo com seus amantes, ela não falava nada. Alguns diziam que a Grã-Duquesa possuía até mesmo a localização da Cidade de Cristal, independente de onde ela estivesse, se existia uma pessoa em Avyanna que saberia, diziam que era ela. Pela Duquesa gostar de uma boa fofoca, como todas as pessoas daquelas terras, provavelmente nos daríamos bem, acho que ela seria uma das poucas nobres que genuinamente gostaria de conversar.

   A família real das Terras Capitais procurava uma mesa próxima as das famílias que conheciam, mas não haviam mais lugares. O príncipe Bronimir olhou para mim com muita simpatia, nem parecia um sádico daquele modo, quando sorriu de maneira simpática para mim... Não acreditava ser possível alguém como ele ser tão cruel, mas aparências enganavam com frequência na nobreza... Na realidade, aparências enganavam em qualquer lugar. Não retribui seu sorriso, mesmo assim, ele se aproximou com confiança da minha mesa, trazendo com sigo, todos aqueles que o acompanhavam.

   Maldição.

   Não custaria nada a Atarah ter colocado uma mesa exclusivamente para me humilhar, certamente a solidão me caia muito bem em lugares como aquele... Todos se sentaram, Alastair se aproximou um pouco mais, o que pareceu agradar bastante a rainha. Óbvio que a agradaria... Era um tanto engraçado pensar que, se matasse o segundo príncipe agora todas as demais terras Bruxas poderiam e deveriam entrar em guerra com o Norte. Já que esse era um dos muitos acordos, ninguém entra em guerra com as Terras Capitais, mas se as Terras Capitais entram em guerra, todos entram com ela. Uma morte, e eu destruiria o Norte, provavelmente de um modo que levaria mais de seis gerações para se recuperar.

   Pela expressão no rosto de Alastair, que pela primeira vez na noite tinha expressado algo, ele tinha pensado a mesma coisa que eu. Não que pretendesse fazer algo, afinal, eram os outros que planejavam cometer um regicídio. Gentilmente o guarda chegou por detrás de mim, pedindo educadamente que me levantasse sem dizer nada e o acompanhasse. A rainha me olhava com divertimento, dei um sorriso antipático para ela antes de me levantar. Bronimir parecia genuinamente confuso e um tanto decepcionado.

   O príncipe não pareceu contente em me tirarem dali, ele não me conhecia, não me temia ou me achava indesejável ali, para ele era apenas mais uma das várias convidadas de Atarah Kalliste. Ele não me temia de modo algum, quem sabe até me achasse um tanto patética por estar sendo tirada daquele jeito do salão, certamente Sorin me acharia patética, mas não estaria surpreso, provavelmente iria rir da situação e fazer algum comentário desagradável. Só que Sorin era um idiota, não apenas um idiota, como um suicida, ninguém que tivesse o mínimo de juízo e um pouco de amor a vida, que sabia que era odiado por Atarah, ousaria pisar em seu castelo ou sequer cogitar pedir sua mão em casamento.

   Conforme fomos nos afastando da mesa, as mãos de Alastair saíram dos meus ombros e chegaram aos meus cotovelos, os quais ele apertou com uma força completamente desnecessária, estava tenso, mais do que eu... Isso que não era ele que estava sendo retirado do salão como uma criminosa. Um silêncio mortal recaiu no ambiente, era capaz de sentir o divertimento dos nobres com toda aquela situação.

   A única coisa que reverberava no salão era o som dos meus sapatos entrando em contato com o piso de mármore coberto com pó dourado. Durante minha saída, até mesmo a orquestra que animava a festa parou de tocar, o que atraiu ainda mais olhares para a minha partida.

   Desgraçados...

   Quando chegamos ao hall o tratamento do guarda não mudou. Ele me guiou de maneira brusca pela escada, me levando ao segundo andar do castelo, onde a festa não chegava, onde ninguém deveria acessar, um lugar em que ninguém poderia me ajudar, mas que fossemos realistas, não havia ninguém naquele castelo que estava realmente disposto a me ajudar.

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