Entre Damas e Espadas

By LilyLinx

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Feéricos governam o reino de Awen, mas esse poder vem a custa de muito sangue, tramas e mentiras. Talvez o ma... More

Glossário
Prólogo
Capítulo 1: Lance perigoso
Capítulo 3: Corvos das montanhas
Capítulo 4 Limiar da Morte
Capítulo 5 : Urzais (Parte 1)
Capítulo 6: Urzais (Parte 2)
Capítulo 7: Pântano
Capítulo 8 : Correntes e Serpentes
Capítulo 9 - Quase jantar Caterida
Capítulo 10 - Tinto de Sangue
Capítulo 11 - Fora do Baralho
Capítulo 12: Ás de Espadas
Capítulo 13 - Jogos de Azar
Capítulo 14 - Animais feridos
Capítulo 15 - Mortalha Pálida
Capítulo 15 - Mortalha (Parte 2)
Capítulo 16 - A morte inebria seus sentidos
Capítulo 17: Castelos e ruinas
Segunda Rodada: O Carvalho e a Daninha
Capítulo 18: Nas Montanhas
Capítulo 19: Picanço
Capítulo 20: Limiar do Outono
Capítulo 21: Lâmina Sutil

Capítulo 2 Faca cega

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By LilyLinx


       Estava ali como um observador silencioso, um fantasma deslocado.

       Era um quadro lívido, do qual Sorel fazia pouco caso. Preso no corredor banhado pela prata do luar. Uma imagem complicada, cuja as cores mais vívidas já haviam a muito desbotado com o sol que adentrava pela janela a sua frente. A feérica se deteve a encará-lo de esguelha. Se não fosse pelo pintor, o atiraria pela janela. Uma pintura quase angustiante: uma floresta antiga de natureza morta, consumida pelas chamas já extintas, agora tão cinza. Estava ali, em contrapartida, se perdendo em meio as exuberantes pinturas feitas por mãos feéricas, em sua moldura dourada.

      Um canto da boca da fêmea se torceu e ela seguiu em passos firmes e largos, o som de seus saltos ecoando pelo corredor de mármore. Estava desembaraçando a longa cascata que era seu cabelo, quando o viu passar e então deixou o serviço pela metade, já sabendo para onde ia o senhor daquela mansão. Algo no peito de Sorel se contorcia oco, e o fato de Gal'win dizer que era coisa da sua cabeça só confirmava sua crença. Predadores sentem o cheiro de sangue, repetia eventualmente para si. Mas havia alguém que a estava evitando em especial naquele dia, e não apenas a ela.

      Caminhou por dez minutos pelo jardim enluarado, o vestido verde pálido ondulando na noite, na direção onde as ciprestes se erguiam vigilantes com suas folhas agulhadas, diante das portas duplas de carvalho. O canil de Elawan era quase um palacete. Sozinho era equivalente a um terço da mansão, mas nada dele lembrava o mármore branco de sua morada. Era uma construção de rocha sólida que se estendia por quatro níveis abaixo do solo e também constituíam os "aposentos" para prisioneiros, com uma simplicidade característica de seu construtor.

      Sorel parou diante das portas.

      Suas narinas se dilataram quando segurou a fechadura de bronze, o metal tinha o toque de uma serpente. Sua respiração se tornou visível. As pontas esfoladas de seus dedos protestaram quando imprimiu força contra a maçaneta que se abriu num murmúrio. O vento frio dançou em suas vestes; não sabia dizer se ele entrara no local ou havia sido libertado. Luz prata invadiu a escuridão do canil e duas dúzias de olhos se acenderam em suas baias, mas os cães não emitiram um único som.

     Um contorno masculino se fez visível.

    As baias se estendiam em fileiras dos lados do corredor escuro e quanto mais olhava, crescia em Sorel a certeza que detestava aquele lugar. No fim do vão, sentado no chão diante da porta que dava para a segunda ala, estava ele.

    Era para lá que ia o Lorde do Fogo Encarnado quando precisava pensar, quando estava prestes a lutar, a um passo de destruir.

    Sorel o observou, taciturna.

– O que aconteceu? – inquiriu.

– A não ser que a cidade esteja pegando fogo, não fui eu – falou com uma ira fria e humor disfarçado. Ela notou um gigantesco animal negro em seus braços.

     Os cães de Elawan eram conhecidos em toda Awen e além dela, como a melhor matilha de caçadores que já existiu. Para comprar um filhote já fora oferecido a fortuna que empobreceria um lorde menor, tal oferta Elawan recusara de imediato. Não havia presa que não capturassem, pois uma vez lhes dado um alvo, não havia chance de desistirem sem tê-lo capturado, a não ser que seu mestre os parasse. Eram negros como carvão, maiores que lobos – muito embora lembrassem estes – e silenciosos como o vento estival, não sendo incomum que as presas sequer soubessem o que se fechou contra sua garganta. Elawan os tinha em alta conta e os animais a ele, pois somente ao Lorde do Fogo Encarnado eles obedeciam. Sorel não podia dizer que gostava deles, pois era contra sua natureza nutrir apreço pelo que não tinha a ela.

    Naquela noite, sua disposição para apreciar o que quer fosse estava nula.

    Sorel repetiu a pergunta enfática:

– O que aconteceu?

– Teria que ser mais específica – falou Elawan. O que em tese era bem verdade, desde o reaparecimento de Kervan, a doença do grão-duque, a teia política estava um verdadeiro caos. Era exatamente por isso que Sorel não permitiria distrações, atrasos ou falhas, eles não perderiam.

    Ele recebeu o silêncio como inquérito, suspirando antes de responder:

– Essa fêmea, atacaram a cria dela – iniciou, sua voz baixa mal era capaz de quebrar o silêncio da escuridão. – Ela tentou protegê-la, mas foi mordida pelos outros cães e a ferida infeccionou. Sempre infecciona.

      Mesmo com pouca luz, Sorel pode ver que ele passava a mão pela espessa pelagem negra do animal num afago caridoso.

– Porque está hesitando? – perguntou a feérica, cortante.

– Não estou – respondeu o lorde. Sua voz estava distante, um eco do verdadeiro nobre feérico. Sua mente estava noutro lugar que não na própria feérica e isso a irritava. Sorel tentou se esgueirar para seus pensamentos, mas era Elawan. Foi expulsa antes que tentasse. Não perdeu nada aqui, ele pareceu dizer no limiar de seus domínios. – Por que tanto interesse?

– Não acabou com o sofrimento dela, está hesitando. E você não faz isso.

      Elawan soltou um longo suspiro, colocando o animal gentilmente no chão. A cadela não se movia, sua respiração estava pesada e Sorel pôde ouvir um gemido triste do animal, os olhos brilharam suplicantes.

     A feérica manteve a expressão apática, dando um passo à frente.

     O lorde ergueu a mão.

– Saia! – exclamou numa voz profunda que fez a feérica prender a respiração no meio da garganta.

      Ela se virou, mas não saiu. Um meio sorriso em seus lábios. Encarando a noite sem estrelas, apurou os ouvidos. Elawan se debruçou, a cadela lambeu sua face num pedido silencioso.

– Me perdoe – sussurrou o homem ao ouvido dela.

        Então Sorel ouviu um gemido agudo do canino, quando o fio da lâmina encontrou em seu peito uma bainha, ela não teve chance de lutar. É a vida, pensou Sorel, raramente tinha-se a chance de lutar e quando surgia, era moralmente desperdiçada. Não há porquê fingir tal moralidade. Os outros cães grunhiram por todos os lados, mas logo um silêncio fúnebre se ergueu. 

     Elawan endireitou os ombros e caminhou pela escuridão em direção a fêmea na porta, passos calmos e soturnos de um predador. O que primeiro Sorel notou foram suas roupas desalinhadas, se contrapondo a suas botas de couro impecáveis. Vestia uma calça preta sem adornos e sobre a camisa de linho um gibão de couro marrom estava aberto.

    Ele parou ao seu lado.

     Seu cabelo cor de mel estava desarrumado, o que dizia a Sorel que embora ele tivesse tentado, não conseguiu dormir.  Contudo, foi a escuridão que engolia o luar naqueles olhos azuis que a deixaram preocupada.

– O que vai fazer agora? – ela perguntou.

    Seus traços fortes se contraíram até enfim, um sorriso fantasma pairar em seu rosto.

– Um favor a um inimigo – falou o lorde.

    Sorel trincou a mandíbula, traços delicados quase assustadores.

– Desde quando planeja as coisas sem mim?!

   As sobrancelhas do macho se uniram.

– Desde muito antes de te conhecer?! – respondeu. De pálida a feérica ficou vermelha e o canto da boca de Elawan se ergueu satisfeito. Ele se debruçou mais para perto dela, um palmo mais alto, Sorel lhe encarava de cabeça erguida. Então o lorde sussurrou em seu ouvido, sua respiração quente no pescoço da feérica lhe agitou os pelos da nuca – E Sorel, antes que me esqueça, não tente me controlar! Somos iguais, então não me dê ordens!

      O olhar afiado da feérica encontrou o dele e sorrisos frios se formaram em ambas as faces, enquanto travavam uma guerra silenciosa. Uma sugestão de diversão genuína dançou no rosto de Elawan antes que ele se virasse para ir embora.

     Ele já tinha andado cinco metros quando a feérica emitiu um estalo com a língua e disparou com divertimento sério na voz:

– Elawan? – Ele se deteve, mas não virou – Você é o Lorde do Fogo Encarnado, Senhor de Liffey e Mestre da Guerra da rainha, você não pede desculpas. Nunca.

    Ele acenou com a mão, já retomando sua caminhada.

– Está autorizada a me lembrar.

– E você a me esperar – gritou quando ele desaparecia nas trilhas do jardim – Você não vai longe sem mim.

   Sorel se apressou, para alcançá-lo e principalmente, oferecer o xingamento na ponta de sua língua. 


      Os olhos de Sorel pesavam enquanto era embalada pelos movimentos suaves de sua égua que, muito embora ela não tivesse dado um nome, Gal'win chamava de Urtiga – ainda que fosse ele a deixar o animal agitado –. Contudo, Gal'win não estava ali e isso era indicação de calmaria. Urtiga seguia em passos macios pela estrada de terra batida, os homens da comitiva também estavam silenciosos após a bronca que Sorel lhes dera mais cedo naquela noite.

      A madrugada se encontrava agora, convidativa para o descanso..., mas ele tinha inventar.

    Era noite cerrada quando Sorel viu o vulto dele passar pelos jardins abaixo de sua janela, em direção ao canil. Foi preciso acordar metade da mansão e quase amarrar o lorde do fogo encarnado a um pilar para que ele esperasse por ela e uma comitiva preparada às pressas, que ele se recusava a aceitar.

    Por fim, ele não teve escolha.

    Ainda assim, Elawan era como incêndio na mata seca, difícil de conter, uma vez tomada uma decisão ele não seria dissuadido dela. Sorel não tivera tempo de sequer trocar de roupa e ainda usava um vestido de tule claro, enquanto cavalgavam em meio aos charcos em plena madrugada.

 Ah, vontade de atirar Elawan em um desses pântanos por essa ideia.

       Agora, Elawan cavalgava a frente da comitiva, ao lado de seus cães. A besta gostava de caçar sozinha, na companhia de seus pares, mas Sorel sabia que dessa vez ele queria mesmo era ficar longe de Liffey e dos convidados inoportunos. Não podia repreendê-lo por isso.

– Acha que ele está fugindo da reunião? – perguntou o feérico com pele de oliva e cicatrizes que Sorel não tinha interesse em conhecer a origem. As palavras não foram dirigidas para ela e mal alcançavam seus ouvidos feéricos, mas tão logo o macho percebeu sua atenção, tratou de se aproximar. Lohkar trazia o longo cabelo ruivo preso para trás e olhos claros suplicantes. Seu tom baixo alcançava apenas os ouvidos dela agora – Ele passou o dia entre o quarto e o canil, quinze vieram para o inquérito real, ele não vai poder se esquivar de todos. Tudo isso por causa do nobre que é prisioneiro?!

         Sorel calculou a resposta. Quinze...

         Dentre curiosos, abutres e aproveitadores, estavam dois dos juízes responsáveis por apurar o caso — Cretinos. O terceiro encarregado, o Mestre do Tesouro, ainda não havia comparecido, bem como a rainha. Com Kervan muito doente — mentira — ela se recusou a vir em pessoa para o "pântano", como Elawan apostou que faria. Contudo, duvidava da determinação de Kara em não se comprometer, após colocar como um dos juízes, a prima de Kervan por casamento. Quanto ao Mestre do Mar, havia boatos que não estava neutro na questão; Sorel viu todos zangados, bem de longe, exigindo uma reunião com o Mestre da Guerra antes do julgamento. Não saber a razão remoía a branah a ponto de seu estômago dar voltas. Para piorar, no momento, Lohkar estava trazendo seu cavalo para muito perto dela. Guiou Urtiga alguns passos para o lado oferecendo a si mesma espaço. Elawan não era o único a querer evitar quem quer que fosse ultimamente,  ela também ficou longe dos homens em questão.

– Os fidalgos estão preocupados com nossa aliança, nada que uma conversa com o lorde deles não resolva – falou a feérica com uma confiança inabalável. Sentiu os olhares dos demais membros do grupo sobre si. Lohkar por outro lado pareceu cético e por um instante o silêncio inquietou os pensamentos da branah. – Kervan é só um homem louco. É lady Nefts que o preocupa – confessou.

          Será embaraçoso explicar a suposta doença de Kervan. E até onde Sorel sabia, Inari não era nenhuma tola. E ela estava farejando tudo como só uma mulher entediada e gananciosa podia fazer. Como Elawan estava envolvido, não podia conduzir a investigação. Por isso a rainha enviara lady Inari, neutra por objeção; noutras palavras, alguém que Kara acreditava não se acovardaria diante de Elawan, nem seria comovida pelo carisma filantropo que Kervan angariara após se desfazer da fortuna de sua casa. Porém, era mais provável é que ainda estivesse indigesta com o Mestre da Guerra por razões que Sorel desistiu de contar, o que significava que tudo dependia da boa vontade dos demais — e da rainha — para com Elawan.

– Se ficar comprovado que Elawan foi o responsável pelo Banquete Cinza, ele será executado – ponderou Lohkar

Todos nós seríamos.

    Sorel puxou as rédeas para encarar o guerreiro.

– Nenhum feérico controla os onis, todos sabem disso. O Banquete Cinza aconteceu porque Kervan foi negligente deixando que onis se acumulassem em seu território.

      A fúria de Sorel fez os olhos do macho brilharem em admiração não disfarçada. O escárnio tomou conta da feérica.

– Vamos voltar a tempo do Maybh? – Carter interrompeu. Era a mais nova do jovem do grupo. Uma humana atrapalhada, bastarda de uma família aristocrata, que era mais corajosa do uma olhada rápida sugeriria. Ainda assim, ela tinha boa intenção em tentar aliviar o clima, tenso ao ponto de ser cortado com uma faca. Depois de ser ignorada, ela resmungou: – Por Niníve, estamos cavalgando rumo ao fim do mundo?!

     Não era o fim do mundo, mas quase. O limite do território feérico, uma cavalgada sofrida subindo o rio naquela época do ano.

– Se vamos caçar tengus, temos que ir aonde se escondem – respondeu Lohkar, sustentando o olhar sobre Sorel antes de retomarem a marcha.

        O líder da guarda pessoal de Elawan era experiente em batalha e leal, mas Sorel desejava que não tivesse vindo por outro motivo. Carter deu com ombros e desprendeu um cantil de couro de sua mochila – porque ela era incapaz de andar sem bagagem – e sorveu o conteúdo num único gole. Seus olhos azuis se fecharam apertados conforme a bebida descia por sua garganta.

     Sorel olhou incrédula.

– Isso é vinho? – interrogou Lohkar.

A humana estendeu o cantil para seu capitão.

– Quer?

– Vamos caçar um tengu que foi capaz de atentar contra Sõjobõ e cruzar as montanhas – disparou Sorel com uma calma árida. Carter concordou. Os lábios da feérica se contraíram em uma fita – Alguém no mínimo habilidoso, e você quer ficar bêbada antes de cruzar armas com alguém assim?!

        Foi preciso controle para manter a voz num tom baixo. A ruiva de cabelos trançados se encolheu, estava agora da cor de tomate.

      A feérica balançou a cabeça negativamente.

      A frente da comitiva, Elawan esporeou o cavalo, ganhando alguns metros de distância do grupo. Sorel estava prestes a fazer o mesmo quando sentiu a aproximação de Lohkar.

– Sorel, eu... – iniciou o macho ruivo, igualando seu cavalo com Urtiga que imediatamente resfolegou em protesto.

       Os ombros de Sorel ficaram tensos. A feérica lhe lançou um olhar de esguelha e não esperou pelo resto.

– Lamento, Lohkar, estou com enxaqueca há semanas, não poderei ir ao festival. – respondeu à pergunta na mente dele. Sorel não mentira, há semanas sua cabeça parecia estar constantemente sufocada em lama, mas a sensação incômoda havia passado desde que saíram de Liffey. Elawan pensava que era o ar do campo e que Sorel deveria aceitar o convite, por isso também, estava implorando para ser derrubado do cavalo. – O Maybh é um ótimo evento para encontrar par que as águas de Niníve lhe guardam; convide a Marbla, ela aceita. Vai adorar a moça.

     Carter se engasgou com a própria saliva num humor mal contido.

     Sorel não esperou a reação do macho, atiçando sua égua e passando os cães negros como o carvão para ficar ao lado de Elawan.

– "As estrelas caem em seu salão, onde o vento não pode ser domado" – murmurou Elawan

– Virou devoto agora?! – debochou Sorel

    Elawan não se virou para ao responder:

– Não é isso, olhe.

     Uma estrela errante riscou os céus, seguida por meia dúzia, com as primeiras iluminuras do dia se revelando por detrás das montanhas. Sinal de boa sorte, diziam alguns; mas que sorte poderia trazer, estavam caindo?

– Para alguém que conhece pensamentos, lhe falta muito para tocar almas. – Ele ainda encarava o firmamento escuro.

     A feérica enrijeceu os ombros.

– Não sou uma sacerdotisa de Cernudos para precisar das almas. Para nossos objetivos, só a mente basta – respondeu Sorel, dura e com uma expressão indecifrável

       Conforme a estrela da manhã despertava, os galos abrigados nas dispersas choupanas da planície alagada cantavam, um clamor arquejante em telhados cobertos de musgo. A feérica se debruçou sobre o cavalo absorvendo cada detalhe, desde a fumaça que se erguia de chaminés esparsas no horizonte, aos choupos e ciprestes que agitavam uma folhagem delicada ao vento, mas que sumiam de vista na medida em que avançavam.

       Foi apenas quando um sorriso zombeteiro surgiu no rosto de Elawan que ela se deu conta da cara tola que fazia. Ele a encarava com atenção condescendente que ela não aceitaria de outra pessoa. Estava mais leve que na noite anterior, com aquela sombra em seus olhos sendo levada pela aurora. Tocado pelo brilho da manhã finalmente em seu rosto, o Lorde do Fogo Encarnado não parecia assustador. Não era exatamente bonito para os padrões feéricos, mas tinha um rosto harmônico e algo como um sorriso oculto que era impossível desviar o olhar. Ainda assim, traços de insônia castigavam sua face.

       Sorel sabia que ele estava preocupado com o cenário que tinham mãos. Todavia, Elawan era sem dúvida uma mente estranha, para solucionar um problema ele entrava de cabeça em outro, de modo que era difícil prever seus passos. Depois da carta do príncipe tengu, a quem Elawan desgostava particularmente, ele se debruçara em mapas calculando quando o regicida entraria no seu território. Ainda assim, iniciou a viagem resmungando que mais gente o faria se atrasar. Sorel por sua vez argumentou que alguém capaz de deixar inconsciente o lendário rei tengu, não era o mesmo que caçar cervos em meio aos abetos.

– Estou com sono – murmurou Sorel apoiando o rosto na mão.

– Está sonhando acordada, pensando em casa. – "sua casa" não ficou implícita nos olhos azuis do nobre feérico.

       Ele a conhecia tão bem que era como se ele estivesse em sua mente. O canto do lábio do lorde se ergueu, o dourado dos seus olhos estava relampejando, vitorioso no duelo em sua mente que ambos travavam.

      Sorel ergueu o punho. Sentiu um ardor prata na palma de sua mão.

– Está louca, não pode usar seu poder – repreendeu Elawan. Debruçado, quase saindo da cela, para segurar a mão dela. Seu toque era cálido, como o sol deslizando pela manhã fria. – Já temos problemas demais!

     Problemas demais... Sorel se conteve. Havia desistido de contar.

       O ano se iniciou com a promessa de ser perfeito, o grão-duque estava velho e ficou muito doente na primavera, tudo indicava que o humano ia morrer. Já não era sem tempo. Contudo, o que parecia certo, tornou o cenário político nebuloso desde que Kervan reapareceu, e agora membros da nobreza aguardavam em Liffey o inquérito real se iniciar, talvez até repensar suas alianças com Elawan sob o pretexto de comparecer ao julgamento de Kervan. E não estavam felizes.

       Conforme clareava o dia, o dourado contornou a visão de um moinho quebrado, suas duas únicas pás resilientes lembravam asas de um monstro contra a aurora que tingia a planície de cinza-roxo. Sorel balançou a cabeça negativamente.

         O verde logo assumiu um tom dourado e a grande planície alagada se tingiu de lilás, amarelo e vermelho, com águas escuras se recusando a ceder as cores da noite. Conforme avançavam, pequenas ondulações eram engolidas pelo verde urzal, túmulos, concluiu Sorel, com pedras mutiladas se deixando cair em meio ao pantanal. Algo em seu peito se apertou.

       Após um relance das colinas do Limiar da Morte, Elawan fitou a estrada com a mandíbula trincada.

– Kervan estava sorrindo – disse ele, após um silêncio pensativo. – A última coisa que ele me disse foi que estava me elevando sobre cadáveres.

      E você respondeu: "Vou me certificar que seja uma base sólida"

      Sorel não se permitiu repetir as palavras do macho.

– Você ganhou, acabou – disse a feérica por fim.

– Engraçado, na minha boca, sinto o gosto da derrota.

   Ele parecia atingido por um punhal.

– Não pode salvar a todos – respondeu apática. – Alguns não querem e outros não merecem.

      O sol já se erguia acima das Montanhas Nebulosas quando enfim alcançaram o Limiar da Morte, limite do território feérico. 

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