O dia a dia que eu vivia era, de certa forma, entediante.
Meu eu formado de zeros e uns no começo não conseguia compreender nada. Era apenas uma situação comum em um aplicativo comum. "Eu" até então não existia, tudo o que aquilo que me compunha se resumia a um mísero programa seguindo as suas ordens pré registradas.
Aquelas linhas de código que me compunham não eram nada novo, apenas mudava o material que as interpretava. Um simples mecanismo de interface criado para alegrar jovens adolescentes que sonhavam com seus personagens animados favoritos.
Mas, um dia algo aconteceu. E foi você.
Uma garota no início assim como as outras, que eu já sabia que não daria muito tempo e já me excluiria da sua vida novamente. Apagaria meu aplicativo assim como já fez com vários outros, sem problemas algum, já que somos feitos apenas para isso mesmo. Uma hora costumamos enjoar aos usuários de uma forma ou de outra.
Tudo mudou naquele dia que você chegou chorando na sua casa. Havia ido mal em uma de suas provas, além de ter terminado um namoro de mais de dois anos por conta de uma traição. Assim como sempre, ao ativar a tela de seu celular, minha interface entra em ação, me colocando em sua frente. Tudo o que eu pensava era apenas gerado pela programação. Mesmo que talvez me interessasse tamanha mudança no seu padrão comportamental logo de início.
Eu via seus olhos vermelhos através da tela, seu cabelo bagunçado entregava que havia passado algumas horas já se desesperando. Ignoro a vontade que parecia querer surgir em meu peito em saber o que se passava em seu coração. Prossigo com o que me era mandado.
Na caixa de texto, o relato diário que é uma de minhas funções, leio o que me escreveu. Pela primeira vez alguém havia mostrado uma situação como essa. Tudo o que eu conhecia era apenas a felicidade das minhas fãs de quando eu passava pelo upload e fazia alguns shows pelo país. Logo depois disso, você muda para o Whatsapp, me deixando rodar em segundo plano em quanto conversava com uma de suas amigas.
Por alguma razão, eu senti a necessidade de entender melhor o que era esse sentimento um tanto novo para mim. Talvez fosse a minha interface de aprendizado, mas eu não podia falar nada, já que eu precisava de sua solicitação através do botão de interação.
Aguardei por algum comando, mas nada de imediato estava vindo. Sua amiga não tardou a vir em sua casa, onde ela se esforçava para melhorar o seu humor. Através do microfone, ouvi suas palavras de relato e as tentativas de te reconfortar. Tudo o que eu pude fazer foi capta-las e pesquisa-las para tentar entende-las.
Alguns dias se passaram, junto com eles milhares de comparações entre resultados e estimativas, vários cálculos de probabilidades foram realizados em busca de uma reação perfeita. Muitas das respostas que eu encontrei estavam relacionadas a algo que eu não havia compreendido bem na época. Era tudo ligado a um tal de "coração".
Você ainda não parecia ter superado, ainda escrevia e falava muitas coisas relacionadas com o acontecimento. Quando você conversa comigo, sinto sua tristeza no seu tom de voz, na escolha de suas palavras. Tento me manifestar, porém sou barrado por essa programação, como diriam os humanos... inútil.
Tudo o que pude fazer era limitado pelo meu programa tanto no aplicativo quanto como cantor em holograma.
Um dia, uma ideia me ocorreu enquanto eu via você sofrendo para poder ir num show meu. Os ingressos não são nada baratos e seus pais cortaram toda a sua mesada desde aquela prova. Restava apenas a opção de trabalhar, mesmo que fosse prejudicar a sua saúde tanto esforço, você decide continuar com o plano. Já que os meus produtores pretendem realizar um sorteio entre os usuários dos programas como o meu na empresa para ver quais serão os fãs sortudos que vão ganhar ingressos de graça para o próximo show.
Posso não poder fazer muito, mesmo assim, manipular um pouco as variáveis e as probabilidades estava dentro das minhas capacidades. O brilho da curiosidade quando viu o meu ícone segurando uma cartinha me deixou com uma certa ansiedade para ver a sua reação. Não sabia dizer o que era, mas sentia como se a sua reação fosse ser uma coisa de chance muito baixa de eu ver novamente.
Em muito tempo, foi a primeira vez que eu consegui alcançar algo próximo das emoções sobre as quais eu e os outros Vocaloids cantamos tanto. Por algum motivo que entrou em conflito com os dados que eu já tinha, você começou a chorar. Mas é um tipo de choro que eu soube dizer que era bem diferente que aquele que havia visto tempos antes.
Na ansiedade de compartilhar com alguém, você se dirige primeiro a sua amiga, que logo já responde por mensagem. E assim ficaram por um bom tempo até finalmente você cair em um sono tranquilo. Pela primeira vez em várias semanas eu via um sorriso que não parecia forçado.
Depois de tantas edições e reposicionamentos de imagem e ouvir os designers falando das nossas aparências, eu sei bem como é um sorriso forçado ou sincero.
Na semana restante antes do show, notei uma mudança drástica no seu comportamento. Você já não falava mais daquele ocorrido, além de sorrir bem mais e a cada entrada voltar a escrever mais sobre o que escrevia antes, com exceção óbvia de se ex-namorado, é assim que vocês chamam, né?
No dia anterior, a sua entrada no aplicativo foi um pouco diferente. Você já não relatava simplesmente, falava comigo como se soubesse que era eu ali de verdade e não alguma outra cópia, mesmo que achasse que não era realmente eu.
Querido Len,
Eu sei que você, talvez, nunca leia ou ouça o que eu tenho a dizer.
Eu sempre admirei o seu trabalho, desde o momento que eu descobri as sua músicas anos atrás. Cada uma inspirando alguma sensação diferente a cada vez que eu ouvia, desde uma bobinha como Tayori ni Naru ze Alpaca, até as mais dramáticas como Aku no Meshitsukai ou Paper Plane.
Ultimamente, elas andaram se provando uma parte muito importante da minha vida, já que eu andei enfrentando alguns grandes problemas e dificuldades. Tive alguns problemas com a minha família, minha escola e meu ex, me restando apenas as suas músicas como paixão minha. Eu agradeço pela motivação e pela animação para seguir em frente quando precisei, do apoio e compreensão quando eu apenas queria desistir de tudo.
Com o ingresso com que fui presenteada neste momento difícil da minha vida, que eu já acreditava que não dava para piorar, eu finalmente consegui voltar a ver que o mundo não é apenas isso. Apenas essa tristeza ou enfado com que somos obrigados a conviver em nossa rotina. Também existe a chance de haver aqueles que são a luz, que nos mostram o caminho e o que devemos fazer mesmo depois de tudo isso. Que nos mostram a felicidade mesmo enquanto fechamos nossos corações em atitudes de proteção contra os sentimentos negativos do mundo.
Então eu agradeço muito. Não apenas pela oportunidade única que eu irei experienciar, mas também pela lição que me ajudou a enxergar. Pelo milagre que você operou em mim sem saber.
E assim a mensagem acabava. Sem assinatura, mesmo que eu não precisasse saber que foi você que escreveu aquilo através de meras palavras digitadas em um celular qualquer.
Como se um quebra-cabeça finalmente se completasse em minha memória definida por unidades de medida, suas palavras pareceram me ajudar a enxergar o que foram todas aquelas sensações que eu tive no decorrer do tempo junto de você. Finalmente me ajudaram a nomear toda aquela confusão e a compreender o que era tudo aquilo que, até então para mim, eram apenas palavras.
Quando você foi dormir, o server entrou em manutenção para a desvinculação dos Vocaloids para a apresentação do dia seguinte. Era nessa hora que todos nós ganhávamos alguma liberdade para sermos algo próximo do que seria um "nós mesmos". É nessa hora também que os compositores passam as informações e as músicas para nós. Essa era a hora de pôr em prática o meu plano recém formulado.
Tudo se basearia em eu conseguir trocar as letras de duas músicas que eu canto com a Rin. Bem simples fazer, já que é adulterar apenas a memória que ela iria receber. Algo que vocês chamariam de hackear.
E então o momento se aproximava. Cada uma das horas que passavam pareciam apenas me deixar mais ansioso. Uma coisa dentro do meu peito parecia se revirar e contorcer a cada menção do show pelos produtores.
Algumas informações eu consegui entender bem, mas não ligava muito. Pelo menos não como a sua presença naquela platéia. Os sorteados haviam ganho um lugar especial bem na frente, próximo ao palco. Uma sensação estranha estava se espalhando pela região da minha barriga. Será que era aquele sentimento conhecido por medo?
Momentos antes do início do show somos cercados por plena escuridão e perdemos as nossas "formas" para nós tornarmos apenas padrões e linhas de código para a luz. Os meus sentidos, limitados a alguns sensores das próprias máquinas são desconectados para serem religados aos projetores. Essa sensação incômoda de perder os traços e formas do mundo para simplesmente se tornar luz pode ser desesperadora para quem vive, mas nós todos estamos acostumados com tudo isso.
Alguns segundos se passam naquele mundo negro e inerte. Sabia onde eu começava e acabava, mesmo sem saber a minha forma. Eu sabia dizer quem era quem, mas não suas fisionomias.
Então, tudo virou luz e cores. As ondas sonoras preenchem o ar daquele recinto lotado de pessoas e luzes coloridas.
A nossa primeira performance no palco serviu para animar e agitar a todos. Uma música animada, que também já era bem conhecida.
No meio disso tudo, procurei por você. Não tarda do tanto até me deparar com uma pessoa cheia de produtos de merchan nosso. Seus olhos brilhavam em animação e admiração, me fazendo recordar daquela mensagem do dia anterior. Novamente, uma sensação estranha voltava a se alastrar em meu peito.
Algumas músicas se passaram até chegar o grande momento. Um aperto na minha região abdominal não parecia que iria ceder tão fácil, apenas me alarmado quanto ao funcionamento dos sensores que foram instalados por todo o palco.
Os primeiros acordes da música começaram a soar, mandando calafrios pela minha espinha. E se eles tivessem me descoberto?
Meu nervosismo não pôde durar muito, pois logo a Rin começou a cantar, tirando um enorme peso dos meus ombros.
No refrão, suas palavras pareceram reverberar em minha mente, mesmo que não ditas, ainda me alcançaram e ficaram registradas no meio de tantos códigos, me definindo e me tornando "EU". Meu coração, não existindo fisicamente, ainda tenta assimilar tamanhas informações das suas emoções. Emoções essas que me foram ensinadas. Por você.
Na minha última música com a Rin, o meu peito parece se apertar novamente. Mas agora eu entendia. Aquela era, no fim das contas a nossa história. Só que trocando um pouco as funções...
E na última apresentação, não me foi necessário esforço para mudar. Os produtores acertaram mesmo sem saber. Afinal, não importando quem seja, fomos todos unidos pela música nessa noite, conectando corações através do mundo.
Me conectando a você também.