Ceres - O Retorno Da Escuridã...

By erika_vilares

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TERCEIRO LIVRO DA SÉRIE AS ADAGAS DE CERES Após o hediondo banho de sangue e o regicídio ocorrido no reino no... More

Prólogo
Capítulo Um - Parte I
Capítulo Um - Parte II
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Conspirações Cerianas agora no INSTAGRAM!
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta - Parte I
Capítulo Trinta - Parte II
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Nos capítulos anteriores das Adagas de Ceres...
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Capítulo Trinta e Sete
Capítulo Trinta e Oito
Capítulo Trinta e Nove - Parte I
Capítulo Trinta e Nove - Parte II
Último Capítulo - Parte I
Último Capítulo - Parte II
Último Capítulo - PARTE III
Agradecimentos + Novidades
PRÉ VENDA

Capítulo Vinte e Seis

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By erika_vilares

Capítulo Vinte e Seis

De queixo erguido e costas aprumadas, os olhos esmeraldas retribuíam o olhar depravado que recebia do senhor de Blackridge. Era jovem, mais jovem que esperava. Os senhores feudais do astral costumavam herdar oficialmente o trono dos pais após o trigésimo ano de vida. O menino deveria ter recentemente entrado na sua segunda década. Esguio e magro, o que deveria lhe dar mais peso eram os inúmeros acessórios de ouro. Ajeitava a cabeça sobre o braço apoiado no seu trono, com um sorriso corriqueiro nos finos lábios, que quando abriam-se, revelavam dentes extremamente brancos como leite. Um sinal de sua juventude ainda florescente.

Era compreensível a preocupação do imperador.

Marcus era metódico, dotado de um talento nato para estar sempre a um passo a frente de tudo e de todos. E aquela característica somente era capaz de prevalecer quando ele controlava tudo e todos a sua volta. Seus planos sempre estavam revestidos no seus reflexos.

Quando soubera que seu maior aliado, rei Talib, senhor do Oeste, já velho conceberia seu primogênito, Marcus certificara-se que o menino seria criado no Sul. Ekos aprendera ser imparcial, frio, meticuloso e disciplinado, uma cópia mal feita de seu mentor. Provara seu valor quando quebrou o coração de Mintaka, sua irmã, quando ela ainda era uma estrela pura, diferente de tudo aquilo que Nádia encontrou de retorno a Gardênia.

A Dominadora nunca conseguiu entender como Marcus aceitara aquela relação, uma moderatóris com o futuro rei de Helsker. A resposta somente viera com sua reintegração no império dos horrores. A relação deles somente prosperara, porque ela poderia atingir Nádia. Ekos quebrara o coração de Mintaka, corrompendo-a, e sua irmã simulou uma morte brutal para fazer Nádia acreditar que estava sozinha e seu único refúgio seria a escuridão. Se não quisesse sentir a culpa e a dor da solidão, deveria se corromper. Mas, a estrela nunca estivera pronta para se entregar, sua solução fora fugir e por aquilo, Marcus não esperava.

Agora olhando para aquele jovem menino, Félix Blackrigde, sentado no trono ainda quente do corpo do pai, observando-os superiormente como se o mundo lhe pertencesse. Era algo que Marcus certamente detestava.

– Permita-me entender – Félix arranhou a garganta, mexendo delicadamente o macaco que levava em seu ombro, um pequeno ser extremamente curioso com os olhos levados. – Vossa Majestade Imperial enviou-vos aqui para...?

– Protegê-lo, meu senhor – Sor Hawley pronunciou, com falsa cortesia. – Vossa Majestade Imperial entende a dor brutal de perder um pai, sobretudo para essa guerra traiçoeira...

– Que tomou início, se assim me recordo, com a ordem de nossa Majestade Imperial, ao derramar sangue nortenho sobre seus próprios tapetes.

Sor Hawley lhe mostrou um sorriso azedo.

– Tudo em nome de proteger nossos deuses – acrescentou o cavaleiro, com uma voz solene.

– Ah, deuses – Félix pareceu divertir-se. O macaco guinchou, como se risse com seu dono. – Penso que essas criaturas divinas devem ter uma baita diversão assistindo o caos que eles causam nessa terra.

– Os hereges são responsáveis pelo caos, e Vossa Majestade Imperial certifica-se de puni-los.

– Certamente, cavaleiro – o senhor assentiu, colocando-se fugazmente em pé, sobre as finas pernas. O primata trocou de ombro, andando com uma admirável facilidade sobre o couro do sobretudo que o senhor vestia. – Poderia ser relembrado de vossos nomes?

Sor Hawley apresentou-se, com uma paciência limitada, apontando para os dois outros homens que lhe acompanharam na viagem. Não pareceu achar de suma importância a apresentação da estrela.

– Guardou o melhor para o final? – Ele sorriu com um ar petulante, encarando a Nádia. – Não é todo dia que cruzamos com uma Moderatóris.

O jovem aproximou-se dela.

– Dominadora Alnilan – ela corrigiu com uma voz límpida.

Ele a olhou com fascinação, escorregando para seu lado, quase respirando o ar que saia de seus lábios.

– Não lhe aconselharia estar tão próximo– Sor Hawley acrescentou. – É perigosa.

– Que criatura esplendida – pronunciou, examinando cada detalhe de seu rosto.

Nádia tomou a liberdade de observá-lo. Tinha cabelos encaracolados, curtos, os olhos claros eram marcantes como um desenho, afundado em profundas olheiras. A barba balbo era rala, dando a impressão de um maxilar escuro ou sujo.

– Por acaso você brilha? – ele quis saber, com um ar intrigado. – Ou voa, minha querida?

– Não – ela respondeu com uma voz seca.

– Maldição, nem isso deixa-a menos fascinante. Que criatura esplendida!

Os olhos penetrantes e curiosos somente se desviaram quando o senhor ouviu seu título ser invocado por um dos guardas, avisando que seu convidado estava próximo.

Félix balançou as mãos nas mangas largas, o gesto parecia a introdução para uma dança inusitada.

– Bem a tempo! – vangloriou. – Um mercenário diz ter algo do meu interesse. Iremos apreciá-lo juntos.

– Que tipo de interesse? – Sor Hawley questionou, franzindo a enrugada testa.

Os olhos confusos de Felix caíram sobre o cavaleiro.

– Essa é a parte engraçada da coisa. É uma surpresa.

– Receberá um mercenário sob seu teto sem saber a natureza dessa visita?

Félix se sentou sobre o trono, solenemente e sorriu, com naturalidade.

– Vocês estão aqui para minha proteção, certamente. Vamos, enfileire-se. Faremos uma cena para meus convidados de honra. Estou ansioso para ver essa surpresa.

O cavaleiro parecia desdenhoso, deveria achar a cena de um rido sem limite. Certamente esperavam lidar com um velho sulista rabugento e com dificuldades em saber baixar sua crista para suas garras ansiosas para a verdadeira pantera negra. Algo diferente daquele jovem peculiar. Ainda assim, Sor Hawley preferiu seguir o ritmo das coisas e ordenou que todos ficassem enfileirados diante a pequena escadaria que levava ao trono.

As portas se abriram e dois homens atravessaram o portal. Um aprumado, com um orgulho sem limites, arrastando o segundo, com os braços algemados.

Nádia analisou a cena, viu por cima do ombro a ansiedade transbordar do senhor feudal, como uma criança estaria no dia de seu aniversário.

– Acham que é um mágico? – ele perguntou baixinho.

Quando o homem atravessou o grande salão, sujando o carpete azul marinho, atirou ao chão, aos pés deles, o homem que arrastava.

– Fico feliz de ter uma plateia – ele pronunciou com audácia, deixando um sorriso ardiloso mostrar-se ao encontrar o senhor da casa e também ao ver Nádia. – Primeiramente adoraria agradecer essa oportunidade, Lorde Blackridge. Me nomeio, Enzo Ford, e quando mais novo prestei serviços ao seu pai.

A estrela encarou quem trazia. Um menino judiado, com roupas esfoladas, extremamente sujo, com cabelos que um dia pareciam ter sido loiros.

– Sinto muito por esses anos de serviço, Enzo Ford. Meu pai não era digamos, aquele homem amável. Era como um vinho de uva azeda.

Enzo parecia ter amado aquela passagem e apenas concordou com o jovem senhor.

– O que me traz hoje? Quem é esse ser que suja meu belo carpete?

– Nada mais, nada menos, que o próprio rei do Norte, meu Lorde.

O silêncio varreu a sala como um vento e os olhares desdenhosos tornaram-se curiosos e intrigantes.

Felix levantou-se de seu trono, lentamente, para observar o jovem caído ao chão. O mercenário para dar valor a atenção atribuída, apanhou os cabelos louros e puxou-os para cima. O jovem revelou sua face, com a boca amordaçada. Mesmo atrás de tanta imundice que cobria seu corpo, os olhos de Nádia arregalaram-se, surpreendida, capazes de reconhecer os traços do jovem que outrora  fora um príncipe.

– Ora, meu caro jovem, você poderia ter amordaçado qualquer ocidental e fazê-lo se passar pelo rei do Norte que já fora descrito com cabelos com cor de sol. Algo facilmente encontrado em qualquer poema.  Qual seria a prova de que ele é de fato, o rei do Norte?

– Creio que algum desses cavaleiros possam reconhecê-lo – Enzo dirigiu o olhar para os homens que abeiravam a escada, ainda com audácia. – São homens viajados, suponho.

– Quer nos fazer acreditar que um ser medíocre como você sequestrou sozinho o rei do Norte, mercenário? – Sor Hawley cuspiu. – Saia desse salão antes que minha misericórdia acabe e lhe mande apodrecer numa cela.

– Não, eu o reconheço – Nádia manifestou-se, ainda pasmada. – Esse que jaz aos seus pés é de fato o rei do Norte, meu Lorde.

Os olhos confusos de Elliot finalmente caíram sobre a estrela no canto da sala que agora tomava a palavra e subitamente arregalaram-se com horror.

Nádia precisava rapidamente tomar as rédeas da situação. Tendo consciência do perigo, aproximou-se do mercenário que trazia seu prisioneiro.

Felix desceu suas escadas e impediu que um de seus guardas se aproximasse, com um gesto manual.

– Eu fui responsável pelo início dessa guerra, revelando ao imperador o que sabia. Eu viajei pelo Norte, espiei a família real, eu reconheço esse menino. Ele é de fato o rei. – ela entoou a voz e deu as costas para eles, fixando o olhar no lorde.

– Sabia com o fundo do meu coração que você era especial – ele retribuiu as palavras, como se estivesse tocado. – Que dia encantador, com tantas surpresas.

Um tilintar atraiu seus ouvidos e Nádia avistou Elliot colocando-se sobre os pés, roubando a faca do mercenário. Não foi rápido o suficiente, para pegá-la de surpresa, mas Nádia deixou a lâmina atravessar sua barriga e perfurar sua pele. O aço atravessou sua pele e ela sentiu o impacto do golpe.

Ela ficou os olhos do senhor Blackridge, pedindo sua ajuda.

– Minha estrela! – ele exclamou e correu até sua mais nova joia tão preciosa.

Nádia cambaleou sobre suas pernas, e Felix a segurou, vendo o sangue escorrer até o chão.

Uma vez que ele estava ao seu lado, a estrela arrancou a faca de sua barriga e a levou para o pescoço do Lorde. Todos se alertaram, arrancando suas armas. A estrela, agilmente, desferiu uma cotovelada no nariz de Elliot levando-o para o chão.

Uma vez que tinha todas as atenções voltadas para si, arrancou da calça o espelho e apontou para os homens.

– Esquecerão que o rei do Norte apareceu aqui – o espelho formou a imagem em seu reflexo da entrada do mercenário adentrando a sala, sozinho. Todos fixavam seus olhares no espelho, arregalados, confusos, sem conseguir desviar seus olhares.

Nádia certificou-se que Elliot ainda estava atirado ao chão, provavelmente inconsciente. Ela observou os olhares turvos dos homens, enfeitiçados pelo reflexo do espelho que mudava suas memórias. Apontava o espelho a cada um, para que todos fossem submetidos a seus efeitos.

– Apenas lembrarão que esse mercenário entrou nessa sala e fizera o Lorde de refém, colocando uma lâmina afiada contra o pescoço dele. Eu salvei sua vida e vocês serão eternamente gratos a mim. Me mandarão sair da sala com os prisioneiros enquanto conversam sobre meu feito heroico depois cada um irá para sua devida tarefa. Sem mais ladainhas!

Ela largou Félix e afastou-se com cuidado. Içou o corpo mole do rei do chão, parecia ainda estar consciente, mas ao mesmo tempo faltava-lhe lucidez. Guardou o espelho e levou o mercenário pelo braço, saindo com pressa da sala e deixando os homens confusos para trás.

Nádia entregou o mercenário para o primeiro guarda que cruzou seu caminho, e afirmou que ele tinha colocado a vida do senhor feudal em perigo. Deveria ser preso. Quando o homem questionou sobre o outro, retorquiu com frieza que ele não merecia a vida.

Andou com passos apressados pelo corredor, arrastando Elliot que sangrava do nariz e tinha os passos descompassados.

– Por que se dá o trabalho de me arrastar para fora se vai me matar! – Ele esbraveou, fazendo esforços para se desvencilhar dela. – Me responda!

– Eu estou lhe ajudando, menino estúpido! – Ela rosnou, dobrando a força que usava no seu braço. – Não atrapalhe mais as coisas.

– Eu não quero a ajuda de alguém como você – Elliot rebateu, furioso.

A estrela o ignorou. Eles saíram do castelo as pressas, e ela olhava a volta a procura de alguma possível saída, mas pouco conhecia o local.

– Você é um monstro, um ser imundo! Matou Anna, matou meus pais e matou Amélia! – ele balbuciou, desprovido de mais forças para lutar.

Os olhos de Nádia perderam o foco e ela interceptou o passo, encarando o menino. Estava sujo com o sangue que escorria no nariz e a poeira das estradas. Elliot parecia ter envelhecido muitos anos desde a última vez que lhe vira no vale, mas lhe olhava com os mesmos olhos de garotinho assustado.

– Eu não os matei porque quis. Nenhum deles – revelou, com os olhos tristonhos que rapidamente se dispersaram ao vislumbrar uma passagem subterrânea para um esgoto.

– Eu não acredito em você, maldita!

Nádia apertou seu braço e fez um gesto para que ele ficasse em silêncio.

– Eu não peço que acredite em mim, eu falo a verdade! Fui capturada, torturada e violada. Invadiram minha cabeça para conseguir respostas sobre o que eu tinha visto sobre esse mundo. Marcus usou magia para descobrir tudo. Entrou na minha cabeça e descobriu sobre sua família. Eu nunca teria deixado ele matar minha única chance de ter liberdade nesse mundo! – Ela urrou, cravando os dedos em seu braço. – Ceres era a única capaz de enfrentá-lo. Se ela morreu, não foi por minha escolha!

Os olhos marejados dele deixaram lágrimas escorrer por suas bochechas.

Passion and Danger – Michel Suby (music score)

– Quanto Anna? – Ele pronunciou com raiva. – A jovem menina de quatorze anos que você arrancou a vida brutalmente? Fizera Amélia escolher entre eu ou ela!

– Anna precisava morrer – Nádia respondeu, com dor.

Elliot, aproveitou-se de seu momento de liberdade, levantou os braços e deu um soco na sua face. Nádia cobriu a bochecha dolorida e continuou.

– Se ela estava naquele mundo foi unicamente porque o Oráculo permitiu que ela nascesse! Protegeu-a de morrer como seus pais. Para impedir que Anna morresse, ele lhe deu partes de seus poderes de visões, um poder muito grande para uma simples menina. O Oráculo estava preso naquele Vale por eras, tinha sido aprisionado por Ceres, por ser um ser poderoso. Aqueles poderes viriam destruir Anna cedo ou tarde, e ela tinha consciência disso. Ela sabia que sua vida se terminaria no momento que ela cumprisse sua missão, levar Amélia ao Vale de Trinton.

– Não, você está mentindo – ele balbuciou.

– Abra sua mente e tente se lembrar se Anna não tentou se despedir de você, da maneira dela! Ela sabia o que lhe esperava naquele local. Ela não estava com medo de morrer, Elliot. Ela e o Oráculo foram libertados desse mundo, de seus poderes.

Ele parecia demasiado confuso, perturbado. Ao ponto de ter um ataque. Talvez as dúvidas no seu espírito deveriam enfim ter um esclarecimento, mas de forma brutal.

Nádia segurou sua roupa e o puxou para perto dela.

– Preciso que você se concentre em minha voz. Marcus, ele não pode ganhar essa guerra! Está me ouvindo? Você não pode deixá-lo ganhar! Você precisa sair daqui e retornar ao seu reino. Por favor, Elliot. Você é nossa última chance.

Elliot ouvia suas palavras, mas sua mente estava embaralhada. Nada mais parecia ter sentido. Sua vida sendo salva pela suposta assassina de todas as pessoas que ele mais amava naquele mundo.

Pessoas que gostariam de vê-lo ganhar aquela guerra.

O rei tentou colocar sua cabeça no lugar, respirou fundo e retomou a consciência. Balançou a cabeça em afirmativa, e Nádia parou de sacudi-lo.

– Entrará nesse esgoto e tentará encontrar uma saída. Mantenha-se longe das estradas e siga para noroeste! É uma viagem longa, somente peça ajuda para alguém quando estiver na Cidade-Livre e sobretudo, não morra! Está me ouvindo? Não morra!

Ele assentiu com a cabeça sem ter a certeza que ouvia suas indicações. Virou-se para o buraco no chão, não tivera tempo de hesitar, fora atirado aos esgotos antes que pudesse pensar. Elliot escorregou na úmida pedra lisa e despencou com rapidez numa água amarronzada e pútrida. Submergiu. Seu corpo foi enrolado por inúmeras algas, e com pressa, ele tentou imergir até superfície. Fitou com horror e asco aquele local, o cheiro de fezes agora impregnava sua pele. Ele correu pela água, vendo imensos ratos nadando ao seu lado. Não sabia ao certo para onde ia, mas apenas seguiu a luz que enxergava no fundo do corredor.

Elliot tentava locomover-se, mas o chão desnivelado dificultava a tarefa, escorregou uma, duas vezes, e foi obrigado a encontrar apoio nas paredes musgosas. Sentia suas roupas pegajosas, arrepios corriam por sua pele. Decidiu nadar, somente assim poderia ir mais rápido. Chegou com pressa na saída, que revelava-se um riacho, e mergulhou na água fria que penetrou na sua pele. Nadou com dificuldade até a borda, e encontrou apoio em pedras para sair. Caiu na terra úmida, sem fôlego, e antes que pudesse relaxar seu corpo, sentiu uma intensa dor no pescoço.

Levou sua mão ao local e sentiu uma superfície rude, dura, sobre sua pele. Os dedos molhados pinçaram o inseto e retiraram-no com pressa ao notar que tinha mais de trinta centímetros, dotado de inúmeras patas arrepiantemente pontiagudas. Uma enorme centopeia negra com uma casca rude. Elliot estremeceu atirando a abominação para longe. Ficou coberto de arrepios. Demorou a sentir o sangue correr pelas roupas e compreender que tinha sido picado.

Sentiu-se imundo, desejou por um banho como nunca tinha desejado na vida. Estava enjoado, confuso, atordoado e agora dolorido. Não teria coragem para adentrar naquele lago novamente, e decidiu, com muito custo, seguir a viagem.

Movimentou-se com cuidado, como se a água suja agora tornassem suas roupas em cimento. Elliot sentia vividamente sua ferida no pescoço, era atormentado com uma constante sensação de que a centopeia ainda estava ali, desfrutando do seu sangue. Aqueles pensamentos começaram a mexer com sua cabeça, e quando menos esperava, estava estapeando-se.

Olhava a volta constantemente, tendo a impressão que algum animal perigoso lhe circundava. Sua picada ardia, e a cada segundo, sua lembrança da centopeia ficava maior e mais assustadora. A sombria floresta parecia afunilar-se ao mesmo tempo que escurecia. Viu um bando de pássaros fugirem de seus ninhos nas árvores peladas.

Olhava para trás sem cessar, pensando ter visto algo rastejando atrás de si. Seu corpo não se movimentava com facilidade, parecia ficar mais lento a cada minuto, Elliot estava sucumbido numa terrível aflição.

Caiu no chão, sentindo seu corpo contraindo-se e atrofiando, via uma gigante centopeia envolvendo seus membros e ele gritava por socorro. E antes de ver o que pensava ser sua morte, vislumbrou a bruxa Winston diante seus olhos.

II

Os olhos cinzentos de Valerye Alksen fixava a bela imagem de seu irmão adormecido, com o corpo nu enrolados nos lençóis. Já estava ali há algum tempo, não acreditava que naquela hora da manhã, ele já estaria acordado. Mas isso não a impediu de ficar a beira da cama, admirando-o.

– Não sei se os deuses estavam me tornando a garota mais sortuda do mundo – ela serviu-se do vinho, certamente mais caro de Skyblower. – Ou se eles estavam, na realidade, me amaldiçoando ao tornar-me sua irmã, Izaak.

Sem pensar duas vezes, a garota virou sua taça de vinho em cima do irmão. A uva alcoolizada serpenteou no ar, encharcou sua sedosa pele e em seguida penetrou os lençóis que eram verdadeiramente de sedas. Izaak saltou, sacudindo-se sobre o colchão. Seu choque era explícito, e era tão injusto que até mesmo a cor de uva pudesse lhe cair tão bem.

– PELOS MALDITOS INFERNOS, VALERYE!

Ela sorriu, graciosamente, tornando a se confortar na parte seca do colchão.

– Bom dia, meu tão querido grande irmão.

– O que você tem nessa sua cabeça?! – ele sacudia as grossas mãos, esperando arrancar o suco melado da pele.

– Temos assuntos sérios para serem discutidos. Entretanto, quando adentrei, estava tão sereno nos seus sonhos.

Izaak subitamente estava vermelho de raiva, e levantava-se, chutando os panos, sendo descuidado quando cobria seu sexo rijo.

– Ah, eram sonhos pervertidos! – Ela exclamou, arregalando os olhos. – Isso explica muita coisa.

– Saia daqui! – ele urrou, cada sílaba, enfatizando sua expressão.

– Por acaso, sonhava com nossa tão querida rainha, caro irmão?

Subitamente, sentiu uma das grossas mãos de Izaak contornar seu pescoço, a outra lhe apontava um dedo na cara. Ele não fora delicado, mas Valerye amava aquele lado bruto, quando via o irmão soltar a besta dentro de si.

– Feche essa maldita boca antes que eu lhe mande fazer uma mordaça.

Ela gargalhou, sorrindo e sentindo vontade de tocar nos seus braços.

– Eu lhe entreguei o trabalho inteiramente mastigado, e ainda assim, Astrid tornou-se rainha regente. Não me diga que ficou seduzido por aquela sereia? Nunca gostou de nenhum wander! – provocou-o com veneno.

Izaak lhe soltou, bruscamente. Ajeitou o lençol molhado contra o corpo e seguiu para a sala de banho.

– Rogo para que não ignore, irmão – ela continuou a rir, mas percebendo o silêncio contínuo de Izaak, um arrepio correu pelo seu corpo.

Valerye saltou da cama e seguiu até onde ele se encontrava, na banheira, já estava cheia. Ela mesma tinha mandado a criada fazê-lo, pensando que talvez, ela também seria convidada para um banho. Vislumbrou os lençóis manchados para a eternidade com o tom mórbido da uva, atirados no chão, absorvendo a humidade do local. Seu irmão de molho na água morna, e a quentura apenas lhe deixou mais embravecida.

– Você não ousará me dizer que realmente foi de fato seduzido por ela! – A ideia lhe fez tremer.

– Acho que despertar com enxaqueca não seria tão torturante quanto acordar com você por perto.

– Responda minha pergunta, Izaak! – Ela vociferou, batendo os pés no mármore, domada pela fúria.

Com um olhar ranzinza, ele respondeu:

– Não. Astrid conseguiu mais soldados e isso encheu os olhos do conselho. Isso lhe tornou rainha regente.

Valerye sentiu quase um alívio, mas apenas a ideia lhe dava ânsia.

– Eu não quero mais que você se intrometa com ela, Valerye. Me ouve bem?

Um toque na porta lhe dera a deixa perfeita para se retirar dali. Sorridente, ela se afastou. Amaria ser vista nos aposentos de Izaak tão cedo, especialmente se fosse pela rainha. Com um belo sorriso, Valerye abriu a porta e no mesmo instante, ela fechou as expressões do rosto. Subitamente, tinha perdido a voz.

– Por que não estou surpresa de vê-la aqui a esta hora? Sempre atormentando seu irmão – Mirella Alksen falou nas palavras gélidas e cortantes.

– Mamãe?

III

Savannah junto com outros treze jovens da sua idade, maioritariamente meninas, viajavam aos passos das mulas na descida traiçoeira do Vale de Trinton. A alegria não lhes acompanhava, mesmo o limite de bobagem ditas por Yoan tinha se reduzido. Todos estavam exaustos e fracos. Alimentavam-se de raízes e frutos secos quase que obrigados. A barriga parecia rejeitar alimentos secos que não lhe proporcionavam o mínimo de hidratação, mas se queria manter-se montada até o final da viagem, deveria comer e controlar-se para não vomitar. Aquela descida do vale tivera sido uma das noites mais longas de sua vida.

Quando os primeiros raios solares atravessaram o céu, Savannah não impediu-se de sentir um mero alívio. Sabia que a negociação tinha a promessa de ser penosa, entretanto, sentia-se mais forte após aquela viagem exaustiva.

Tocaram as portas dos portões, entretanto, ninguém abriu a entrada.

– Velho Jon! – ela urrou, com a garganta urrando. – Precisamos conversar.

Savannah esmurrou a porta, mas continuou sem resposta.

– Savannah – Yoan chamou sua atenção, e levantou a mão para a diagonal, onde ela avistou um buraco feito na madeira, próximo a mata. – Aquilo não estava ali quando partimos.

Os jovens se entreolharam, e a arqueira foi a primeira a aproximar-se.

Savannah abeirou-se do buraco analisando como a madeira tinha sido violentamente cortada. Ela abaixou-se com leveza e espiou o que se encontrava além. Olhou de um lado ao outro, não avistou ninguém.

– Vamos entrar.

– Talvez ele não queira que nós façamos isso – uma menina pensou.

– Então ele deverá ouvir o que temos a dizer antes – ela garantiu, atravessando o portal, inclinada.

Esticou o corpo e olhou a volta, sem avistar nenhum sinal, pediu para que os demais viessem. Todos a seguiram. Eles exploraram o terreno, agora silenciosos, tudo parecia vazio. Um mal pressentimento tomou Savannah.

Ouviram uma aproximação, e todos os jovens se armaram, aflitos. No fundo do corredor de tendas, eles avistaram homens com arcos e flechas. Savannah não demorou a reconhecer a face de alguns arqueiros que ela acompanhara na guerra.

– Há sobreviventes! – Um deles gritou, e mais apareceram, por volta de cinco.

A menina foi tomada por um alívio súbito ao ver aqueles homens, guerreiros. Ela esperou ver Zahari ou Jared dentre os conhecidos, mas não os avistou.

– Onde vocês estavam? – um deles perguntou, com uma voz autoritária. Reconhecia-o de vista, um homem espadaúdo, com diversas espinhas no rosto. Se não se enganava, chamavam-no de Savella.

Savannah aprumou suas costas, apesar de vê-los como uma ajuda, não pode se encolher e responder num murmúrio como habitualmente faria.

– No Vilarejo de Cima. Saímos desse vilarejo porque era perigoso continuar aqui com os portões quebrados. Quanto a vocês? – Ela retorquiu a pergunta numa voz fria, demonstrando que eles deveriam justificar a ausência diante ao povo.

– Lutar por uma causa injusta não vale de nada – o homem respondeu. – O rei está desaparecido.

Savannah tentou controlar sua expressão de choque.

– Onde estão os outros habitantes?

– Me siga – exigiu, dando-lhe as costas, com pouca cortesia.

O grupo não se contrapôs e juntos atravessaram o vilarejo. Na parte das plantações, a primeira coisa que atirou sua atenção foram as inúmeras covas sendo cavadas por vinte homens, os quais ela nunca tivera nenhum verdadeiro contato.

– Eles foram todos mortos – Savella anunciou.

Savannah perdeu temporariamente os sentidos, vendo a pilha de corpos de todos aqueles que ficaram para trás. Não fora capaz de contar, mas sabia que era por volta de uma centena de corpos.

O coração da menina parou, apavorada. Poderia ser Ulysses, Heida, Danira, Kety, Yoan caídos numa pilha prontos para serem enterrados e esquecidos ao correr das estações. Um horror tomou seu corpo.

– Pelo quê? – ela balbuciou ao ver os corpos destroçados.

– Monstros. Aproveitaram-se dos portões quebrados. Vocês fizeram bem de não estar aqui.

Ela tentou respirar e retomar sua consciência.

– Não podemos dizer isso por muito tempo, falta-nos água. Precisamos de água com urgência, há feridos no Vilarejo de Cima.

Assim, unidos cavaram covas e enterraram a centena de mortos. Encheram baldes de água pesados e tiveram de ser resistentes para aguentar mais uma caminhada que duraria uma noite inteira até o vilarejo de cima. Muitos insistiram para repousarem, mas Savannah persistiu para que continuassem, Heida como outros dependiam daquela água. Com as solas gastas, as pernas fracas, a exaustão atrofiando seus corpos, eles chegaram no alvorecer no Vilarejo de Cima.

Tudo para Savannah ouvir Kety lhe dizer, quando fora correndo ao seu encontro, que Heida como outras setes pessoas tinham morrido na madrugada.

IV

As passadas pesadas, porém atenciosas, de Thor sobre a vegetação espessa e abundante da floresta se faziam com mais destreza, menos agonia. Outrora, teria sido um verdadeiro inferno marchar sobre um terreno escorregadio, traiçoeiro e desnivelado. Graças o poder de cura que os filhos da lua beneficiavam, ele fora perfeitamente curado!

Seus olhos desconfiados caiam sobre a silhueta da princesa, que apesar dos ombros relaxados, armava-se de sua arma predileta. O arco. Ela estava extremamente focada na caça. O príncipe desejava aquela atenção, mas a realidade que a presença de Amélia não estava somente lhe distraindo, como lhe incomodando.

– Eu não consigo ver nenhum porco maldito – Mia suspirou, aprumando o corpo e procurando o olhar de Thor, era a terceira vez que ela tentava iniciar uma conversa, mas Thor ignorava.

Enfrentando seu olhar impaciente pela falta de sucesso na caça e pelo seu silêncio, o príncipe foi pego de surpresa pelas palavras que pularam de sua boca:

– Por que está aqui, Amélia? – Ela respondeu com um olhar desentendido, mas Thor insistiu. – O que faz aqui?

– Ajudando-lhe a caçar essa maldito porco selvagem? – Mia replicou, num tom implicante, como se dissesse o óbvio. – Precisa matar o javali com uma flecha. Claramente precisa de minha ajuda. Ou esse tempo com o Lucky se fizera aprender algo, além de beber o triplo do que costuma beber?

A provocação fizera Thor responder secamente:

– Apenas gostaria de saber suas razoes para ficar quando não conheço as que te levam embora. Como hoje de manhã, quando acordei você não estava mais ali. Estava no corredor, conversando com Berbatov.

O tom cobrador deixaram ambos surpresos, Thor sentiu-se subitamente a falta de controle que sempre domou suas palavras. O silêncio se demonstrou mortífero, nem mesmo os pássaros cantavam.

– Quando você adormeceu, eu fui incapaz de dormir. Saí do quarto na alvorada e, nós nos encontramos...

Ouvi-la dizer tais palavras fora cortante, repentinamente Thor envergonhou-se da cena de ciúmes. Balançou a cabeça confuso, e terminou por encontrar apoio num tronco tombado. Sentou-se e refletiu quietamente. Mia pareceu desnorteada, tomou a decisão de sentar-se, não tão próxima, mas ao seu lado.

– Não quis agir dessa maneira... – ele revelou, enrugando a testa. O silencio de Mia prevaleceu, assim ele continuou: – Apenas acredito que nós nos precipitamos. Dormindo juntos.

Ela pareceu preferir evitar seu olhar, fixando o chão, questionou com pouca entonação:

– Você se arrependeu?

– Claro que não. Entretanto não foi certo. Posso parecer o homem careta que se prende a regras ultrapassadas, porém, eu acabei de fazer uma cena de ciúmes por insegurança. Acreditei que você tinha ido ao encontro dele. Quando na realidade, você estava saindo do quarto na alvorada porque passou a noite em claro. Sem conseguir dormir, mesmo após um dia fastidioso.

Mia prensou suas mãos entre as pernas esticadas, porém preferiu o silêncio.

– Eu lhe contei tudo que aconteceu na minha vida, em Skyblower e em Wanderwell, as ameaças de meu pai, e sobre os Venatores. Mas, em compensação, você não me fala mais de você, Mia. Preferi fazer o que sempre faço: deixar seu espaço. Afinal, você sempre terminava por me contar seus receios cedo ou tarde. Entretanto, sinto que agora, você está se afundando em assuntos de política e de guerra somente para evitar falar de si mesma. Quer ocupar sua cabeça, para você não ouvir seu coração.

Após uma longa pausa, Mia franziu o cenho e respondeu num murmúrio glacial:

– Uma vez, você me disse que o mundo era cruel. Cruel de uma maneira que eu era incapaz de imaginar. Agora, eu não somente entendo, como sinto essa crueldade a flor da pele.

Mia ergueu os olhos ariscos, sutilmente marejados, para Thor.

– Muitas coisas aconteceram antes do Baile de Sangue, durante e depois. E todos esses eventos, apenas me provaram que não sou a mulher forte que sempre pensei. Mas, eu me recuso ficar sentada sentindo pena por mim mesma. Minha escolha é me levantar e lutar.

Mia bruscamente se levantou. Thor seguiu seu impulso, mas tocou no seu braço com delicadeza e insistiu para que ela não fugisse.

– Lutar com seus punhos pode parecer uma boa maneira de se livrar da dor, porém isso não passa de um entorpecimento passageiro, Mia. Acredite, sei do que falo.

Ela revirou o rosto incomodada.

– Não peço para se abrir comigo por obrigação. Porém, isso pode lhe fazer bem.

– O que você quer ouvir, Thor?! – a entonação invadiu sua voz, e Mia subitamente estava ofegante. – Que eu fui destruída?! Porque é isso que tenho a dizer. Sem belas frases, sem profundos pensamentos! A verdade nua e crua!

Ver a fúria nos seus olhos e as palavras escarradas com raiva fez Thor engolir em seco.

– Rei Erwin era meu verdadeiro pai – Mia terminou por revelar, ainda fervorosa e arfante. O príncipe arregalou os olhos. – O rei de Skyblower sempre foi meu verdadeiro pai, apenas omitiu esse sórdido segredo porque teve um caso com a amante de seu irmão, Henry, o homem da raposa, o verdadeiro sucessor do reino. Cirelli? Aquela senhora que me ajudou durante toda minha vida, ela era minha avó. E antes que eu tivesse a chance de conhecê-la de verdade, ela foi assassinada com uma flecha na cabeça. Em seguida perdi a rainha, que estava grávida. Ela morreu agonizando nos meus braços, tentando salvar o filho que estava na sua barriga. Vi meu reino arder e pessoas que conheci, morrer. Fui sequestrada, presa durante meses num maldito quarto sem saber o que aconteceu com todos aqueles que eu amava. Fui chantageada e ameaçada durante esse tempo para seguir as vontades deles! Me provaram que eu não era nada além de uma marionete. Encontrei minha verdadeira mãe e tudo que recebi em retorno foi um grande desprezo e um mar de frieza, ela não fez esforços para esconder que eu era o maior erro de sua vida – Mia balançou a cabeça, deixando as lágrimas cobrirem suas bochechas avermelhadas. – Eu quis acabar com minha vida. Quis morrer! Tinha perdido tudo e todos. Mas não erradiquei com minha vida porque sabia que eu era a única que poderia garantir a sobrevivência de Elliot, e de meus irmãos. E agora corro o risco de perdê-los igualmente.

Thor se sentia estapeado, chocado e confuso por todas aquelas informações.

– Sim, eu fui destruída. Porém não está nos meus planos desistir. Não me entregarei para ninguém, nem mesmo Ceres! Por isso, somente lhe peço que não me veja como a inocente princesa que você não pode proteger de conhecer a dor de viver, mas que me veja como aquela que não cairá sem antes lutar. Porque minha batalha não terminou e está longe de terminar!

Naquele momento, ele pôde enxergar não somente a princesa Mia, mas a guerreira Amélia. Aquela que tivera todos os motivos para desistir, mas que estava decidida de ganhar sua guerra. Seguir sua luta. Thor sorriu, involuntariamente. E quando viu a expressão confusa na face dela, foi levado pelo impulso de abraçá-la.

– Eu estou orgulhoso de você. Agradeço por me provar suas próprias palavras, nós fazemos nosso próprio destino – ele sussurrou no seu ouvido. Amélia pareceu por segundos estática, mas retribuir o abraço e deixar sentir aquele conforto, talvez entendendo que aquilo não lhe faria menos fraca.

Permaneceram um tempo naquele abraço, depois ambos perceberam que não estavam preparados para retornar a caça. Deram preferencia para o descanso. Sentaram-se e com mais sutilidade Thor tentou entender os eventos traumatizantes da história de Amélia.

– Então, Henry, o homem que vivia na colina com a raposa. Ele é seu tio?

– Ele me levou de volta para Skylower. Foi um questão de tempo para que eu fizesse a ligação das histórias.

– Rei Erwin sempre fora seu pai?! – Ele soltou, abismado.

– Fui abençoada com dois maravilhosos pais, nos quais provaram que a mentira e a frieza corre no sangue. Nada melhor para a reencarnação da sacerdotisa manipuladora e controversa, não é mesmo? – Mia satirizou, mas ainda assim, ele pôde sentir uma ponta de magoa. – Felizmente tive rainha Adelaide e Rosa na minha vida.

O assunto foi se prolongando a medida que o céu cinzento avertia a chuva que estava por vir, com relâmpagos e furiosos ventos. Aquilo não os incomodou, estavam vidrados na conversa que adentraram. E Thor num momento de culpa, contou até mesmo sobre seu caso com Julieta.

– Deuses, você dormiu com ela? – A princesa desprezou.

– Ela despiu-se e disse que tinha frio.

– O que você respondeu?

– Que ela deveria então se vestir.

Mia caiu na gargalhada, profundamente e quase chorou de rir. Eles conversaram, trocaram segredos e contaram seus receios tal como costumavam fazer quando estavam sentados nos jardins de Skyblower. E aquilo confortara Thor, perceber que apesar das cicatrizes, a princesa continuava a viver, apenas era necessário procurá-la um pouco mais fundo.

– O crepúsculo se aproxima. Devemos encontrar esse javali. Do contrário será sua cabeça que servirão no jantar – Thor fez careta. – Apenas estou brincando.

– Aquilo não são pegadas? – O príncipe apontou para algumas marcas que estavam não muito longe deles e ela foi a primeira a alcançá-las.

– Sim! Venha.

Eles seguiram os rastros do animal pela terra durante poucos minutos até a entrada de uma caverna, numa cavidade rochosa do Vale de Trinton. Enquanto o príncipe observava a abertura escura entre as portas, ouviu Mia soprar seu nome.

– Há algo errado... – O príncipe a fitou, mas ela ainda tinha seus olhos cravados no chão. Subitamente os ergueu, arregalados e receosos. – Essas pegadas são muito perfeitas para um dia que ainda nem fora chuvoso.

Thor enrugou a testa e tornou a olhar a entrada da caverna. Seus olhos notaram um vulto mover-se. Sem pensar duas vezes, o príncipe enrolou sua mão no fino pulso da princesa e juntos deram meia volta. Rodaram nos seus calcanhares e antes que pudessem correr pela floresta, avistaram duas silhuetas na mata, que seguravam grandiosas lanças afiadas e com uma aparência mortífera numa mão, e na outra escudos.

Thor analisou aqueles que estavam armados. Apesar de seus olhos reconhecer formas humanas, sua mente levou um tempo para acreditar naquela hipótese. Afinal, os dois seres que estavam estarrecidos diante deles, a cabeça fazia aparentar que era dois homens: um deles tinha metade do couro cabeludo coberto por uma cabeça de onça que deveria um dia ter sido branca, mas fora banhada no seu próprio sangue; o outro no lugar de cabelo, tinha cicatrizes enormes e simétricas. Certamente tinham sido feitas naquele proposito. Com os olhos pintados de vermelho sangue e a boca parecia estar coberta com algo que parecia ser mordaças, como bestas aprisionadas. Usavam armaduras no peitoral, coberta de espinhos, mas os braços estavam livres, banhados num tom de rubro vibrante. Era uma verdadeira aberração que fizera Thor temer que tanto ele como Mia não retornariam para o vilarejo.

– Quem são eles? – ele sussurrou a princesa.

+++

Quando o calor do corpo se atenuou, o ladrão sentiu-se imediatamente renovado. O medicamento da filha da lua tinha lhe renovado como mágica. Durante a caça, o ladrão já sentia-se revigorado. Seu corpo ainda sofria com os hematomas, mas nada se comparava com seu estado anterior.

Sua primeira reação quando lhe indicaram que deveria caçar foi recusar, ninguém iria comer as suas custas. Entretanto, quando um arco lhe foi entregue em mãos  a única maneira de saciar a vontade de matar os seus estúpidos guardas, foi caçando malditos porcos.

Antes que a tempestade que ameaçava chegar com fúria despencasse com toda bravura, ele matara seu terceiro javali. Ao ouvir sussurros dos trogloditas que lhe cercavam, Berbatov acrescentou:

– Se estão se perguntando se eu os mataria como esses javalis com um único tiro certeiro – ele atirou um olhar caricato para os dois homens. – Eu não seria tão misericordioso. Faria a coisa ser mais dolorosa, e mais divertida.

Um dos guardas ameaçou avançar na sua direção, mas o parceiro segurou seu ombro.

– Deixe ele falar – indicou. – Quero ver ele onde ficará essa confiança quando Caliana acabar com ele.

Berbatov riu, divertidamente.

– Então ela precisará se esforçar mais.

Um trovão ressonou e ele observou o olhar preocupado dos filhos do sol para o céu.

– Temem a chuva? Água não queima, pelo contrario lhes faria bem. A água removeria a tinta que passam na cara e vocês perceberiam que não precisam gastar vosso tempo pintura porque a feiura veio com o nascimento.

O menor cravou os olhos no ladrão e sussurrou palavras na sua língua própria, que apesar de serem inteiramente incompreensíveis, foram pesadas e frias.

– O que ele está ladrando? – Ele perguntou ao mais magro, incomodo.

– Disse que ele deixará você ser devorado vivo pelo que pode vir com a tempestade.

– E o que vem junto com a tempestade?

– Está na hora de retornar. Mexa-se verme.

Berbatov ajeitou o arco no tronco do corpo e fitou a expressão selvagem do troglodita que parecia recusar-se a falar seu idioma. Mesmo precisando abaixar-se para apanhar o grande porco no chão, ele não arrancou o olhar do arqueiro.

Foi sua vez de apanhar o porco selvagem e colocá-lo sobre o ombro, e quando estava em pé, a tempestade já caía. Apesar do estrondoso som que as gotas violentas provocavam ao cair sobre a natureza, ele foi perfeitamente capaz de ouvir os estridentes gritos que vinham da aldeia.

+++

Quando as ágeis mãos prepararam uma flecha no arco, a princesa tinha certeza de que poderia atacar ambos os homens que surgiram na mata. Tinha treinado o suficiente para derrubá-los simultaneamente com dois tiros ligeiros. Entretanto hesitou ao reconhecer a vestimenta, eram dos homens que habitavam as montanhas. Os Montantes. Subitamente algo espetou-lhe a espinha,  uma cortante lâmina pressionou suas costas, deixando um frio percorrer sobre seu corpo.

Ouviu uma grossa voz lhe dizer algo numa língua desconhecida, apesar de ter reconhecido o tom autoritário, ficou imóvel. Sentiu o aço prensar-se contra sua pele. Ela engoliu em seco e abaixou o arco por dedução. Subitamente, uma violenta chuva desabou dos céus, e foi sob a água e violentos ventos que os príncipes foram arrastados para a caverna, enquanto tinham suas mãos e seus pés atados.

Apesar de reconhecer os Montantes, não ficou mais aliviada por estar rodeada por cinco deles. Lembrava-se vividamente do seu último encontro, e aquilo não lhe trazia pensamentos bons. Apesar de ter ajudado a livrar aquelas crianças do ataque planeado por Caliana, duvidava que tinham atraído eles para aquela armadilha somente no intuito de demonstrar gratidão.

Foram violentamente atirados ao chão.

Um trovão rugiu.

Mesmo em meio o lusco-fusco, Mia avistou as rudes botas paradas a sua frente. O receio correu pelo seu corpo e ela obrigou-se a içar o olhar. Vislumbrou o sombrio homem que lhe encarava com um olhar sequioso, através a pintura facial. Não tinha sobrancelhas, somente duas cicatrizes que saiam do fundo da cabeça e se encontraram na metade da testa. Com a mão esmaecida, ele retirou a máscara que cobria sua boca, revelando mais cicatrizes. Estas agora se encontravam nos cantos da boca. Não se lembrava de ter cruzado seu caminho no dia que decidira fazer aquela visita infeliz ao povo da montanha. Isso não lhe fizera ter menos medo.

No momento que ele abriu os lábios cortados, suas palavras gélidas falaram no idioma no qual ela tinha pouca familiaridade. Não foi nem mesmo capaz de compreender uma única palavra.

– Eu... – as primeiras palavras vieram gaguejadas, Mia obrigou-se a fazer o esforço de falar com mais clareza. – Eu não falo seu idioma.

O homem aparentou absorver suas palavras, mas tornou insistir em se comunicar no idioma local.

– Eu não entendo – ela balbuciou. O montante agravou seu tom, desta vez com agressividade. E Amélia somente balançou a cabeça, estava assustada demais para pensar nas poucas palavras que conhecia na língua deles. O homem mostrou perder sua paciência e apontou para seu comparsa. Este apanhou severamente o cabelo de Thor, que estava desarmado, violentamente colocando sua cabeça para trás e levando sua mortífera lâmina ao seu pescoço.

– Por favor, não!

Amélia viu sangue correr pela pele de Thor. Seu coração bateu ferozmente, tentando perfurar seu peito.

Mea nanme Amélia kan Eklisi! Et ay dunat sum langage ! – Ela vociferou, num desespero sufocante, sem ter certeza de que falava as palavras certas. Palavras que Kaleb tinha lhe ensinado, mas que no momento de pânico sumiram de sua mente.

A lâmina parou e Thor gemeu, arfando de dor. Ela fitou, ofegante, o homem que liderava a conversa, e este tornou analisá-la.

– Você não fala nossa língua – ele pronunciou glacialmente na língua comum. Os batimentos de Mia sentiram um momentâneo alívio ao ouvir seu idioma, assim ela balançou a cabeça em negativa.

– Portanto, diz ser filha do Eclipse.

Os lábios secos se selaram e ela afirmou, novamente com a cabeça.

– Por que você com a nossa casa, Amélia kan Eklissi? – Mia levou um breve momento para se lembrar que com significava vir.

– Eu queria ajudar vossas crianças.

– Você mente. Est uma espiã de Caliana kan Hakan! O que você viu em nossa casa?! – O montante bradou, com uma fúria repentina.

Ela balançou a cabeça para os lados, exaltada.

– Não sou nenhuma espiã de Caliana kan Hakan e posso jurar pelos deuses. Eu não vi nada.

– O que você descobriu em nossas terras e falou para Caliana?! – o tom era violento, e Mia não entedia o que poderia fazê-lo entender que aquelas não eram suas intenções.

– Nada – suspirou.

O montante impaciente novamente fez um gesto para seu cumplice que rapidamente se atacou a Thor, preparado para acabar o trabalho que havia começado.

Ay desidero seme chose qui tu – ela gritou, com força, retomando a atenção dele ao dizer que queria a mesma coisa que ele e vendo a vida de Thor ser poupada momentaneamente. – Nós queremos ganhar essa guerra – Mia balbuciou, sem poder continuar no idioma dele. – Foi por esse motivo que fui a casa de vocês. Eu não quero que entremos em guerra, quando nosso ennemi viv in auster! Nós não devemos nos matar, devemos matar aquele que iniciou todo o caos em Reynes. Por esta razão não queria que aqueles guerreiros fossem mortos! Eu quero provar para nossos povos que podemos nos unir novamente!

O montante se aprumou, com os coléricos olhos fixos nela, penetrantes e mortíferos.

– Ay sais, nós podemos trabalhar juntos para unir nossos povos. Podemos sair destas terras, juntos ganhar essa guerra e vivermos melhor. Os filhos da lua querem a paz com o povo a montanha, se nos unirmos, os filhos do sol também aceitarão.

O montante arrancou um grande facão da mão de um dos acompanhantes, ele rodopiou a caverna. Mia sentiu um frio na espinha quando o viu aproximar-se dela. Aquela seria sua morte e sua dignidade lhe faria morrer sem deixar de encarar seu assassino. Ele atirou a lâmina mortal no ar, na direção dela. O ar fugiu de seu peito antes que percebesse que o aço apenas cortara a corda que atava as mãos. Mia arregalou seus olhos para o homem, incrédula. Viu Thor também ser solto. E eles foram colocados de pé.

Mea nanme Serbous, guerreiro e guardian da montanha. Também procuro pelo fim desse conflito entre nossos povos. Mas, precisava ter certeza de suas razões antes.

Tudo tinha acontecido muito rápido, Mia sentiu assim que seus batimentos descompassados não sabiam acompanhar a troca súbita de emoções. Ela olhou para Thor, confirmando com o olhar que ouviam as mesmas palavras.

– Talves juntos possamos encontrar um possível fim para esse conflito de povos para que assim possamos seguir para nosso verdadeiro ennemi

+++

Quando Berbatov alcançou o vilarejo dos Kadawgis atormentado por uma violenta chuva, coberto por uma neblina mais forte que o comum. Ramey arrancou brutalmente o arco e a aljava de seu ombro.

– Veremos quem terá uma morte brutal! – Hakim grunhiu com amargura. Assim, ele e o companheiro desapareceram após uma longa corrida.

Lucky desconhecia a natureza de todo aquele pânico, mas sabia que não existiria melhor oportunidade para uma fuga. Tudo que precisava era encontrar Amélia.

A tempestade que caía era turbulenta. Estrondosos relâmpagos preenchiam seus ouvidos uma vez ou outra eram acompanhados de uma ensurdecedora enxurrada de água que chocava-se contra o solo de maneira voraz. O arqueiro esgueirou-se à beira das tendas, sendo atencioso com seus movimentos mesmo sabendo que dificilmente alguém notaria sua aproximação.

No limiar da floresta, ele se escondeu. Ainda não tinha total conhecimento do terreno, por isso dava preferência a visão que uma alta árvore poderia lhe proporcionar. Escalou com mais dificuldade do que o comum. Estava longe de ter destreza sequer, afinal os dedos esfolados pelas minas não conseguiam segurar-se com firmeza no tronco encharcado e a fraqueza pela falta de comida lhe circundava. Rapidamente o peso de seu corpo pareceu triplicar com as roupas encharcadas.

Conquistou a subida e deu-se um minuto para retomar o fôlego. Tentou limpar o excesso de água que cobria a pele do rosto, em vão, a chuva não daria uma trégua tão cedo.

O corriqueiro olhar observou todo o campo sendo atacado pela furiosa tempestade. Apesar do torrente de água, Lucky ouvia gritos e urros daqueles que pelejavam, foi quando o atentivo olhar alcançou a origem do caos.

Num primeiro relance, acreditou que via homens cobertos por emendas de panos colados ao corpo, mas precisou de mais tempo para perceber que o que cobria seus corpos eram algas do mar.

Apesar das distorções causadas pelos pingos que eram chicoteados contra sua pele e sua visão, Lucky avistou o filho do sol, Hakim. Tinha o observado lutar naqueles dias, e sabia que ele combatia com um animal. Mas suas habilidades pareciam desmerecidas em vista de seu adversário.

Uma criatura esguia, dotado de membros longos, coberto por uma pele escamosa e uma arrepiante cabeça angulosa maiormente dominada por grandes dentes pontiagudos. Lucky levou longos segundos para tentar decifrar que criatura via diante seus olhos. Era uma verdadeira aberração vinda dos piores pesadelos com o oceano que o homem poderia ter.

Lucky se abaixou e subitamente começou a avistar a posição dos demais. Para seu desgosto, já tinha avistado mais de dez somente num primeiro vasculho. Um grunhido arranhado e arrepiante chamou sua atenção. O ladrão fitou as raízes da árvore que subira. Um dos monstros escalava ferozmente o tronco, com os animalescos olhos fixados no arqueiro.

– Malditos infernos! – exclamou, tudo que menos precisava era um peixe que escalava árvores!

Ouviu um urro e seus olhos retornaram para o filho do sol, que tinha sido mordido no pescoço e tinha sua pele estraçalhada. Não demorou para encontrar-se no chão, sem vida. Lucky não tivera tempo para comemorar sua morte, sua atenção focou-se no arco deixado a volta de seu tronco.

O ladrão viu a criatura aproximar-se de sua altura. Sem escolha, Berbatov saltou para a árvore vizinha, não garantia que seus galhos segurariam seu peso, mas atreveu-se. Era melhor cair e ter a queda levemente amortecida que ser estraçalhado por aquela coisa que tentava lhe alcançar.

Atirou-se no ar e tentou apanhar o galho, que imediatamente se quebrou, e Lucky caiu. Seu corpo foi espetado por inúmeros ramos, ganhando arranhões, todavia o baque foi levemente amortecido. Fez o melhor para colocar-se em pé enquanto podia e procurou a criatura que lhe perseguia, gritar bestialmente da árvore. O coração de Berbatov acelerou e não pensou duas vezes correr.

Suas pernas trepidaram com a velocidade, no peito faltou uma grande massa de ar, porém ele conseguiu alcançar o arco. Atirou-se contra o chão e numa agilidade indescritível, conseguiu armar a flecha e estourar a face da fera que saltava na sua direção, e ainda assim, caiu sobre seu peito.

O arqueiro não conseguiu retornar a respiração ao ser esmagado pelo peso morto da criatura. Ele a chutou para longe, respirou com dificuldade, pensando incrédulo no que acabava de enfrentar. Colocou-se em pé, arfante. Arrancou sua flecha e abateu ligeiramente um segundo que se aproximava.

A chuva dobrava sua intensidade e rapidamente o arqueiro via sua visão embaçada. Precisava definitivamente ficar num ponto preciso onde a enxergaria. Por isso tomou a decisão de retornar para a árvore, mas daquela vez escolheu uma mais alta. No topo, abrigado de alguns pingos, ele avistou o verdadeiro campo de batalha que se formava pela aldeia.

Cada membro da tribo pelejando fervorosamente contra os invasores que, vertiginosamente, vinham do mar. Seus olhos caíram sobre Myesha, com magia atacava três monstros. Um quarto a surpreendeu e antes mesmo que lhe abocanhasse, o arqueiro o matou.

Não esperou nem mesmo sua reação, seus olhos continuaram procurando quem ele não via. Lucky sentiu seu estômago contorcer-se quando percebeu que Amélia não estava entre os batalhantes.

– Maldição de lugar! – rosnou, levado pela raiva, começou a atirar inconsequentemente. Mesmo que estivesse longe do chão e que todos seus alvos eram velozes, Berbatov estava sedento por sangue. – Morram peixes malditos!

Seus tiros eram todos certeiros, na cabeça, e sem mesmo precisar descer, abateu mais de dezessete adversários.

A chuva abrandou, tornando-se mais mansa. Impaciente, Berbatov aprontou-se para descer, para ir a procura da princesa. Esgueirou-se assim entre as casas, quando finas vozes alcançaram sua audição. Avistou duas ruas depois, Caliana e Kaleb guiando um grupo de crianças, as pressas, pelo vilarejo.

Lucky revirou os olhos, aqueles gritos todos apenas atrairia mais atenção. Ele encolheu-se contra a parede. Era fora de questão gastar seu tempo servindo de ama de leite. Olhou a volta, verificando quais seriam os próximos caminhos que seguiria.

O estridente grito lhe obrigara a retornar sua atenção para as crianças, quando viu uma deles caída no chão, afastada do grupo. Subitamente, Berbatov avistou quatro monstros marinhos cercarem o local.

– CONTINUE! – Caliana ordenou com avidez a Kaleb, enquanto abandonava o grupo. Ela correu rapidamente, atirou duas facas e acertou o peito da criatura marinha que preparava-se para atacar o menino caído.

Berbatov forçou-se a continuar sua busca, ignorando a situação de perigo. Tinha coisas mais importantes com que deveria se preocupar.


Caliana apanhou a mão do garoto, arrancou sua espada e enfrentou as outras três aberrações que se aproximavam. Foi ligeira para perfurar a primeira, matando-a com um único golpe. O menino, apavorado, gritou quando os outros dois monstros atacaram.

A espada dela foi atirada para longe ao tentar acertar o segundo e quando menos esperava, estava cercada. Tentou lutar com seus punhos, em vão. Sem escolhas, a filha do sol agachou-se esperando proteger o menino do ataque e lhe disse para fugir quando ela gritasse. Subitamente, sentiu um sangue fervente espirrar contra seu rosto.

Demorou a perceber que não era seu, nem do menino que protegia. Caliana olhou para cima e viu as duas criaturas cambalearem, as duas cabeças ligadas por uma única flecha. Ela procurou seu autor e viu quem menos acreditaria.


Lucky Berbatov abaixou o arco e fitou severamente a mulher que envolvia o garoto nos braços. Ela se levantou, arfante, ainda chocada com seus olhos. Ao ouvir um outro grunhido, o arqueiro já preparava-se para abater a próxima criatura. Entretanto, esta foi derrubada antes por uma flecha que não lhe pertencia.

Seus olhos encontraram Amélia Norwood.

Ela pareceu estagnada em vê-lo. Certamente, como Caliana, nunca imaginaria vê-lo salvando a líder dos filhos do sol e a criança. Lucky por sua vez, sentiu-se momentaneamente aplacado de ver que a princesa estava viva.

Em seguida, ele percebeu a presença de Thor. Este correu até um dos monstros caídos e apressou-se de roubar as facas pontiagudas de Caliana. Lucky rapidamente entendeu que tal como ele, Thor deveria ter sido envolvido numa caça com o arco e flecha. Certamente, Mia lhe acompanhou, afinal o príncipe era uma vergonha com aquela arma.

A princesa apressou-se ofegante, ainda com os olhos fixos no arqueiro, logo desviando-os para Caliana.

– Quantos são?

– Mais do que eu posso contar – ela apanhou o menino no colo. – Tentem proteger os feridos – fez uma breve pausa –, por favor. Preciso levá-lo para o esconderijo.

– Eu a ajudarei – Thor voluntariou-se. A líder pareceu hesitar, mas terminou por aceitar. Assim ambos partiram.

Surpreendentemente, ele viu Mia estender-lhe um punhado de flechas.

– Você vai precisar.

– Posso estar pensando em fugir, Norwood – Lucky retorquiu. Resolveu ocultar a parte que a levaria com ele.

– Apesar de fugir ser uma de suas habilidades, não é muito seu feitio esquivar-se de grandes brigas, Berbatov – daquela vez, o tom não viera com frieza e o olhar não foi momentâneo. Ele poderia jurar que tinha um tom de cumplicidade e um olhar confiante.

Subitamente Lucky foi levado para o dia que ambos se envolveram numa briga em uma das tavernas do Norte, com Ari e Louis, e foram obrigados a fugir. Aproveitando antes a boa briga, na qual Amélia pareceu desfrutar da adrenalina. Por isso, naquele momento, ele viu nos olhos dela que estava pronta para uma boa luta, um espírito selvagem que gostava de observar em Mia. Subitamente, Berbatov deu um sorriso torto e aceitou as flechas. Sentiu vontade de lutar, lutar ao seu lado.

Soldiers Eye's – Jack Savoretti

No final da tarde, a tribo saiu com a vitória da batalha. Os corpos dos monstros eram atirados em pilhas, onde teriam o couro arrancado e outras partes para serem aproveitadas, provavelmente venderiam partes daquelas criaturas para caçadores, colecionadores, compradores de tecidos. Algo recorrente em Sharwood, Lucky lembrou, quando os arqueiros desmembravam criaturas caçadas nos fundos das florestas em troca de dinheiro.

Cruzou os braços e deixou seu olhar seguir para Mia, perto da praia. Esta fitava os familiares despedindo-se dos corpos enfileirados. Não eram muitos em comparação as criaturas marítimas. Mas a dor parecia ser a mesma para os próximos que perderam os seus. O ladrão pensou que a princesa deveria questionar-se como era despedir-se dos entes-queridos. Afinal nunca tivera aquela chance com seus pais ou com sua suposta avó. Quis seguir até ela, mas sua presença somente pioraria seus remorsos. Subitamente, ela ergueu seus olhos e fitou Berbatov. Mia não desviou, fitou-o com pensamentos profundos nos quais Lucky não foi capaz de decifrar. Assim ficaram, se encarando a distância.

– Isso é para você – Myesha lhe ofereceu um odre, surgindo ao seu lado.

– O que é? – ele quis saber, percebendo pelo canto do olho que Mia já abraçava Thor e se afastavam da confusão.

– Cerveja.

Os olhos do ladrão brilharam e rapidamente apanhou o odre.

– Deuses, que você seja abençoada pelo seu pai ou pela sua mãe, ou qualquer outra coisa que você encontre no céu para te abençoar.

A filha da lua riu. Ele encheu a boca e sentiu o gosto da vagem e do álcool invadir seu paladar. Seus membros relaxaram.

– Deuses, ficar sóbrio por tanto tempo é o sinônimo de infelicidade.

– Você merece. Todos somente falam de suas flechas certeiras na cabeça dos demothalos.

– Me parece um nome bem mais apropriado para o que eu dei.

– E qual seria?

– Cabeça de peixe infernal.

Ela tornou rir.

– Salvou minha vida e a de muitos.

Ele deu de ombros.

– Pensei que se atirassem neles, vocês ao menos me dariam a chance de escolher se prefiro ser comido vivo ou assado. Com eles, não parecia ter muita opção.

Myesha sorriu, e disse que retornaria mais tarde ao perceber a aproximação da líder dos filhos do sol.

– O que bebe? – ela quis saber, no clássico tom autoritário.

– Nada de seu interesse em vista que o ganhei por bom comportamento – ele ironizou. – Mato alguns malditos peixes e ganho álcool. Deveriam ter me dito isso antes. Meu eu assassino estaria mais animado para entrar em ação.

– Não é o fato de matar que lhe faz ganhar álcool. Não somos assassinos. Somos uma irmandade, e sabemos reconhecer nossas dividas. Principalmente quando ela vem de altruísmo.

Berbatov ergueu suas costas, enchendo a boca de cerveja. Mostrando que não se importava com suas palavras.

– Devo lhe dizer que sua dívida está paga – ela deu continuidade. – Sangue por sangue. Não sei se preciso lhe dizer que você não pode ainda partir, mas não será mais visto ou tratado como um traidor. De qualquer maneira, eu acredito que você não iria embora.

Os olhos de Caliana se direcionaram para o lado, e eles caíram sobre quatro pessoas que conversavam: Altair, Kaleb, Thor e, obviamente, Mia.

Berbatov empurrou a bochecha com a língua e tornou a fitar a líder.

– Aprecio saber disso. Por isso acho que também devo anunciar uma coisa para que fiquemos claros – ele aproximou o rosto do dela e sussurrou:

– Toque num fio de cabelo de Amélia – Lucky arqueou seu olhar para Caliana. – E eu nem mesmo me darei o trabalho de parecer um acidente quando minha flecha atravessar sua cabeça.

O olhar que Caliana lhe retribuiu foi inexpressivo, mas o arqueiro não esperou por uma resposta, ombreou-a e continuou o caminho sem rumo sobre os destroços do vilarejo.


_________________

Vigésimo Sexto Capítulo do terceiro livro da série ADDC.

9875 PALAVRAS

Dedico à @ThatyPaixo , obrigada por estar aqui há tanto tempo, e obviamente vi que você anda comentando mais <3 só tenho agradecer. Beijão!

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