Nós, em uma casca de noz!

By SanCrys

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❝Meu avô sempre me dizia, que estranhos são amigos que você ainda não conhece.❞ Uma história sobre amizade, e... More

Filho pródigo
Garota das meias listradas
A História Sem Fim
*Carpem Diem*
J.A.W.
Vitaminas, pensamentos e o Caderno dos Milagres
Quem avisa, amigo é.
Sobre más companhias e teimosia juvenil
Um abismo chama outro abismo
Recordações vazias como em uma fotografia antiga
Corações discordantes
O orgulho vem antes da queda
O bater de asas de uma borboleta
O menino que gritava ❝lobo❞
Corra, John, Corra!
Sentença de um garoto traído
❝Como lágrimas na chuva❞
O que ainda restou de mim
A milagrosa lista dos desejos
Um pouco de esperança não machuca
Uma teoria chamada John
Câmbio, desligo!
Efemeridade do tempo
O Universo em uma caixa de papelão
Unicórnios antes dos garotos
Pó de estrelas mitigadas
Incandescente poder da cura
Déjà vu
Todas as coisas cooperam para o bem
Bom amigo
Para você, daqui a 30 anos!
Lembranças guardadas em uma garrafa de Coca-Cola
*Memento mori*
Não diga que eu não falei das estrelas
Há sempre o amanhã
Muito obrigado, Mary Marshall

*Ad astra*

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By SanCrys

   Domingo. 9 de fevereiro. 6h00.

A chaleira está sobre o fogo, o vapor escapando a dançar pelo ar, fazendo-a apitar furiosa no processo. Susan coloca um pouco de água quente em uma xícara com pintura de dálmatas e outra com florezinhas cor-de-rosa, cada uma com seu sachê de chá, e distribui-as para mim e para Robert. Estamos sentados na mesa da cozinha, com a luz débil da lâmpada sobre nossas cabeças, um de frente para o outro, ainda de pijamas e roupão. 

O grande dia finalmente chegara. O dia em que finalmente veríamos o cometa Halley. Bem, daqui a quatorze horas, para dizer a verdade.

— Você tem certeza a respeito disto, John? — Robert indaga, preocupado comigo. Aperta a xícara entre seus dedos.

— Tenho, pai. Absoluta certeza. 

 — Sabe mesmo o que está fazendo, John?

— Eu sei bem o que estou fazendo. — digo, um pouco desconsolado. Dói-me que ele veja com maus olhos o que estou tentando fazer por Mary. — Meus amigos também vão me ajudar no que pretendo fazer. 

Contei a respeito do meu plano para o Jake e para a Lara. Pela primeira vez na vida, eu precisava da ajuda de alguém para iniciar algo tão grandioso.

Mary veria o cometa Halley e, por mais incrível que pareça, tanto a Lara quanto o Jake concordaram em me ajudar sem hesitar.

— Confio em você — é a voz de Susan a apaziguar tudo. — Se a sua amiga é tão preciosa para você, então tenho certeza do que está fazendo é um ato verdadeiro de amizade. 

— Afinal, já não é mais um menino. Tornou-se um homem responsável — Robert entrega-me um sorriso.

— Obrigado, pai — digo, tomando um gole do chá. O calor mordisca a minha língua.

Eu não poderia ser mais grato. Eu aprendi a agradecer pelos momentos bons, pelas situações ruins, aprendi com meus erros do passado, as angústias sofridas, toda a aflição do ano anterior, praticamente eu já havia esquecido. 


Às 7h45, Jake ligou-me, aparentemente, de um telefone público, e cogito isso devido ao vozerio descontrolado que estava do outro lado da linha. 

— O idiota do meu colega de quarto resolveu jogar Super Mario Bros com seus amigos a noite TODA, e não me deixaram dormir. Quer saber? Ficar longe daquele apartamento é uma benção! Quando eu retornar, John, vou chutar aquele imprestável pra fora!

Viajou a durante a madrugada para retornar à Paradise de ônibus. Disse-me que estava a caminho colocarmos nosso plano em ação, e que me esperaria para apanhá-lo no terminal rodoviário. Provavelmente, Lara também estaria vindo como prometera. 

Meu relógio de pulso tornou-se o meu aliado enquanto eu cronometrava as horas. Visto uma camisa branca de algodão, e por cima desta visto a minha velha jaqueta de couro que usei no primeiro dia em que pisei os pés em Paradise.

Tic. Tac.

Saio de casa às 8h30, ansioso — e atrasado — demais para tomar um café da manhã decente, rumo à Flower&Art. Eu sentia-me como uma criança arteira. Hoje é domingo, o trabalho era pouco na loja de flores, além disso, eu precisava demais do furgão da loja, e pediria o veículo emprestado para a Sra. Florence. O furgão era grande o suficiente para que a Mary ficasse confortável durante nosso trajeto até a Montanha Luna. Descobri que a Montanha Luna não era bem uma montanha, estava mais para uma colina de tamanho razoável, mas enfim, foi o nome que lhe deram.

Sempre há chuva em Paradise, nunca há calor, e na primavera as flores quase nunca desabrocham nesse lugar. O tempo em fevereiro está mais frio do que nunca. Espero que não haja nuvens de chuva durante a noite, ou isso poderá fazer com que todo o nosso plano vá por água abaixo.

Tudo é possível para aquele que crê⁵⁶.

Sim. Tudo era possível.

 • • •

— A passagem do cometa Halley é hoje. Está sabendo, John? — Jane diz, com as folhas do jornal abertas e espalhadas sobre o balcão da loja. —  Acho que esse deve ser o evento mais importante da História. E o cometa Halley só passará de novo daqui a setenta e seis anos! Oh, eu preciso ver esse cometa! Mas, acho que vê-lo daqui da cidade não dará certo.

Vi a sonhadora garota de camisa dos The Rolling Stones e sorri. Mais alguém estava empolgada para o evento.

— E você tem razão, Jane. As luzes irão atrapalhar. Precisamos ir para um lugar longe, tipo a Montanha Luna. Lá será um local perfeito para vermos a passagem do cometa.

— O ápice do cometa Halley será entre as 19h30 e 20h00, segundo os astrônomos — Jane aponta para as letras no jornal. — Você está planejando isso para hoje, não é mesmo? É por isso que está trabalhando às pressas, John?

— Não estou trabalhando às pressas. Isso é impressão sua!

Na verdade, estou trabalhando com pressa. Muita pressa. Deixei metade dos arranjos com laços tortos, mal feitos, e cometi o pecado de misturar violetas com margaridas. Jane fica em minha frente com seus imensos olhos acinzentados. Imagino no mesmo instante que ela me dará bronca porque baguncei os arranjos.

— Você vai ver o cometa, John?

— Vou levar a Mary para ver o cometa Halley — confesso em um sussurro.

Vejo Jane abrir um largo sorriso, como se esperasse que eu dissesse aquilo.

— Posso ir também? Vamos lá, John. O cometa só passará de novo daqui a setenta e seis anos. Só tenho dezesseis anos, não posso esperar mais sete décadas para vê-lo outra vez. Talvez, nem mesmo estaremos vivos até lá. E, eu vou poder contar amanhã na escola o que meus olhos contemplaram! — Jane dá pulinhos, muito empolgada.

Penso a respeito disso. Ela tinha toda a razão. Olho para o meu relógio. São 10h05. O tempo não parecia que nos daria folga hoje. 

— Qual é o plano? 

— Pegar a Mary e levá-la para a Montanha Luna para vermos o cometa Halley.

— Estou bem decepcionada. Achei que seria um plano longo com mais de sete passos, inclusive, achei que o tivesse feito em uma cartolina com giz de cera azul.

— Por que tão específica?

— Sou uma garota específica.

— Vou pegar o furgão da loja, emprestado. Mas como a Sra. Florence não se encontra, achei que você poderia pedir permissão por mim.

— Deixa que eu dirijo o furgão! Eu não lhe disse que tirei a minha carteira de motorista? Além do mais, de que serve uma carteira se não posso usá-la?

— Você não vai desistir mesmo, hein?

— Não! E aí? Eu posso ir junto? Prometo que sou uma motorista zelosa. Exceto que o instrutor da autoescola disse que "tenho que pegar leve no freio". Não sei o que isso quer dizer, mas deve ser alguma coisa boa.

Assinto, um pouco relutante. 

— Então, que hora pegamos a Mary? — Jane estava mais ansiosa que eu, talvez porque ela colocaria o furgão na estrada.

A sineta da porta toca, e nós olhamos para a cliente que entra na loja. Jane demonstra seu melhor sorriso para atender a freguesa que segura um bebê nos braços, enquanto a mim, reconheço de imediato a mulher. Era Karen Watterson. Estava mais magra, o cabelo mais comprido amarrado em uma trança que descansava em um dos ombros, usava calças jeans, um casaco de camurça e um cachecol, botas que realçavam seus um metro e setenta de altura, além de uma bolsa de couro ao redor de seu corpo, que estava entreaberta revelando um chocalho e uma mamadeira. O bebê em seus braços estava bem agasalhado, envolto em uma manta cor-de-rosa com renda branca. 

— Oi, John — Karen sorri, timidamente. Ela em nada lembrava aquela Karen que conheci, a namorada de Billy, a rebelde dos dias escolares. 

— Olá, Karen. Veio fazer o pedido de algum arranjo floral? 

— Passei para olhar algumas flores, porque o aniversário da minha mãe está perto e pensei em comprar um arranjo para ela, quando eu te vi do outro lado da vidraça. Você mudou, John.

— Você também, Karen. Ficou sabendo que...

— Que Billy morreu no ano passado? Sim, eu soube. Até tentei chorar por ele, mas não consegui derramar uma lágrima sequer. Ele nunca quis saber da nossa filha. Sabe, John, você tinha razão. Eu pensei que meus pais me matariam por eu ter ficado grávida. Eles ficaram decepcionados quando souberam da notícia, obviamente, mas assim que minha pequenininha nasceu, eles viraram uns avós babões. Eu demorei a aprender. Tive de aprender na dor. O delegado Carson quer conhecer a neta. Pobre homem. Perdeu dois filhos. 

Olho para o bebê em seus braços. A pequenina tinha bochechas rosadas e olhos fechados que mostravam seus vastos cílios, além da cabeleira castanha e ondulada. Suas mãos, miúdas e rechonchudas, estavam repousadas sobre a boca. Era uma boneca que respirava. Karen, então, apresenta-a para mim e para Jane.

— Esta é a Bella — ela sorri, encostando a testa na da filha. — Meu raio de luz. Acho que eu nunca te agradeci por você ter me escutado naquele dia, e, acima de tudo, nunca o agradeci adequadamente pelo conselho que você me deu. Obrigada, John. 

Karen sai da Flower&Art com Bella em seus braços. Ela mudara. Nós mudamos. Não havia resquícios em nós dos artifícios do passado. 

— Poxa, ela não comprou nenhum arranjo floral — Jane lamenta. — Mas que eu fiquei com uma vontade danada de segurar aquela bebezinha tão fofa, só que eu senti vergonha em fazer um pedido desses, afinal, ela nem me conhece. Aquela bebê parecia uma bonequinha, você não acha?

Assinto, com um sorriso no rosto. Vejo as horas no meu relógio. 11h20. 

— John, quanto mais você olhar para o relógio, mais as horas vão passar impiedosamente.

— E o que você sugere que façamos?

— Vamos pegar a Mary — balança as chaves do veículo em minha frente. — Me espera no furgão, eu fecho a loja! Vou escrever um bilhete para a vovó para que ela não fique preocupada.

— Primeiro, Jane, nós vamos buscar uns amigos — aviso-a.

 • • • 

Tive de dizer para Jane, com muita paciência, para ela não acelerar o furgão e ao mesmo tempo pisar no freio. Céus, como ela conseguiu tirar a carteira de motorista desse jeito?  Ainda bem que ela estava contente ao ponto de não se irritar com cada dica minha. Em outros dias, ela teria me ignorado e me chamado de "idiota", mas hoje ela parecia realmente querer levar o plano adiante.

Fomos até o terminal rodoviário — que nada mais eram que duas plataformas com pilares que eram troncos de árvores. A cobertura do lugar era simples, com um banco de madeira que tinha três lugares e uma mera cabine onde eram vendidas as passagens. Achamos Jake e a Lara. Jake estava em pé, com uma mochila nas costas, e Lara estava sentada no banco, com uma mala ao seu lado. 

Ambos estavam diferentes do habitual. Jake usava uma jaqueta de couro marrom (estilo aviador) sobre uma camisa de flanela vermelha, e cortara um pouco o cabelo. Lara estava sem óculos e seu cabelo estava um pouco maior. Vestia uma minissaia jeans preta e por baixo dela, uma calça legging roxa, além de ter aderido ao uso de botas de cano curto, para deixá-la um pouco mais alta. Vestia, também, uma jaqueta jeans cinza e uma camisa preta por debaixo. Ao lado dela, uma mala de viagem com rodinhas.

— JOHN — essa foi a voz dela preenchendo o ambiente. — Oh, e a Jane veio junto! Olha, Jake, é a Jane!

— Sim, Lara, estou vendo ela — Jake desconversa. — Mas por que o furgão? Sei que você ama a gente, mas isso já é demais, Walker. É muito mimo.

— Para de palhaçada e entra logo, Benson — olho para o meu relógio. — Estamos perdendo tempo.

12h35. Jane, no banco do motorista, olha-me com desaprovação. Eu sei, Jane, eu sei. Mas se eu não ficar a par das horas, eu vou ficar maluco.

Lara e Jake entram no furgão, não sem antes eu ajudar a Lara com a sua mala de viagem, que, pelo amor de Deus, estava mais do que pesada.

— Trouxe itens básicos desta vez. Meus livros de Medicina, pois pretendo estudar um pouco no caminho, colírio, brilho labial, rímel, protetor solar, barras de cereal, barras de chocolate, chicletes de menta, uma garrafa de água, salgadinhos, repelente para mosquitos, um mapa, óculos de sol, uma capa de chuva, uma manta, desodorante, creme hidratante, uma escova de dentes, uma escova de cabelo, lenços umedecidos, uma troca de roupas, uma lanterna e as chaves da minha casa — ela diz, orgulhosa. 

— Acabei de ter lembranças sobre isso, Lara. A excursão para Sunriver — Jake diz — Espero que não tenha uma câmera filmadora nessa mala.

— Ah, fala sério. Eu esqueci a câmera — Lara fala, desapontada consigo mesma.

Jane dirige em direção ao hospital, enquanto Lara ainda fala sobre suas peripécias na universidade.

— Optei por usar lentes de contato — Lara diz. — Fica difícil usar o microscópio enquanto estou de óculos. Ah, e eu superei a minha hematofobia⁵⁷. Oh, e parabéns, John por ter passado na Universidade de Oregon. Querem saber das novidades? Mamãe me ligou e disse que Panquecas teve filhotes!

— Panquecas não era macho? — Jake questiona, sentado de modo que seu corpo estivesse afundando na assento, como se fosse tirar uma soneca.

— Era isso que todos nós achávamos — ela explica. — Ah, mal posso esperar para ver Panquecas e os seus filhotes.

 Não é estranho que ao invés de ir para as nossas casas, estejamos indo ver a Mary? — Jake indaga. — Quer dizer, mamãe não sabe que estou aqui, e se papai souber, com certeza me fará trabalhar na farmácia.

— Tem toda a razão. Mamãe e papai também não sabem que estou em Paradise, mas se soubessem, não me deixariam ir de jeito nenhum para a Montanha Luna. Acredito que estamos indo para outro lugar ao invés de nossos lares, porque é onde colocamos o nosso coração, Jake. Assim como a Bíblia nos diz: "onde está o teu tesouro, aí está o teu coração" — Lara recita o Evangelho de Mateus capítulo seis e o versículo vinte e um.

O que a Lara falava tinha lá a sua verdade.

Mary deveria ser o nosso tesouro, nesse caso. O nosso elo, a corrente que ainda nos mantinha ligados. Depositamos os nossos corações nela. Um pensamento ácido ronda em minha mente. Se ela se for... se a Mary partir... Jake, Lara, e eu, ainda seremos amigos? Ainda nos falaremos ou o nosso elo se quebrará com a partida dela? Um sabor amargo permeia em minha boca. Eu não queria pensar a respeito da solidão. Poxa, eu já iria estudar em Eugene! Nem queria pensar em como seria a minha vida depois do que aconteceria hoje.

Chegamos na entrada do hospital, com o nosso nada charmoso furgão da Flower&Art. Quem nos via, talvez pensasse que era alguma encomenda de flores para velórios. Jane e eu descemos do veículo enquanto Lara e Jake continuaram lá dentro a nos esperar. 

Fomos para a recepção do hospital perguntar se uma paciente chamada Mary ainda encontrava-se lá. 

Eu tinha um pressentimento de que em breve a maré não estaria nada favorável para nós.

Eu estava certo.

 Houston, nós temos um problema⁵⁸. 

Mesmo após ter sido desenganada pelos médicos, Mary não retornara para casa. Para meu desespero, ela ainda estava no hospital.

A Sra. Ellie não poderia ter tomado a pior decisão de sua vida. Ela simplesmente permitiu que Mary ficasse no hospital. Condenada a permanecer reclusa e sozinha em um quarto de hospital, a definhar. Um quarto sem janelas, sem cores, sem sons, sem vida. 

Ela não entenderia. A Sra. Ellie jamais entenderia. 

Eram 13h50. 

Encontramos com ela e o pastor Carl na porta do quarto de Mary. Pedimos para visitá-la. Ellie estava com os olhos mui vermelhos e inchados. Sim, ela havia chorado desde então e não parara mais. Aquilo era de nos entristecer. Escutei sem querer a frase: "ela tem só mais um dia".

— Podemos ver a Mary? — pergunto.

O pastor Carl assente para mim e para Jane adentrarmos o quarto da Mary. 

Ela não se foi.

Mary ainda estava deitada em seu leito, mas não estava vestida com roupas hospitalares. Estava vestida com roupas casuais, tais como calças jeans, o conhecidíssimo moletom cinza com a estampa da NASA, e meias listradas em amarelo e laranja.

— Oi, gente — Mary sorriu para nós.

Seus lábios estavam pálidos, ela estava muito magra e seus olhos estavam com manchas escuras abaixo deles.

Por favor, Deus, nos dê só mais um pouco de tempo. Ainda não a tire de nós.

— Foi difícil convencer a minha tia a me deixar usar essas roupas. Oh, John, hoje é o dia que o cometa Halley passará não é mesmo? Queria tanto vê-lo.

— Sua tia não vai permitir, não é mesmo? Ela não vai deixar você ir com a gente... — Jane conseguiu entender as entrelinhas.

Mary meneia a cabeça em uma negativa.

Aquilo me chateou profundamente.

As horas estavam passando e a Sra. Ellie realmente achava que a melhor solução era deixar Mary trancafiada no hospital, quando o maior fenômeno do Universo passaria sobre nós dentro de algumas horas? A Montanha Luna não parecia mais estar em Paradise, mas em Plutão.

Tentei conversar com a Sra. Ellie, mas ela era irredutível. Sequer deixou-me explicar. Ela estava com os ânimos à flor da pele. Eu compreendia de todo o coração que ela queria o bem da Mary, e que ainda via uma faísca de esperança para a sua condição, todavia, ela estava passando por cima dos desejos dela. Sua proteção soava como egoísmo para mim.  

— Todos estão esperando por ela no furgão — tento barganhar. — E a Mary quer muito ver o cometa Halley.

— Ela não vai!

Jane sai do quarto com a Mary na cadeira de rodas (Jane deve tê-la colocado sem ter feito qualquer esforço, pois Mary estava muito abaixo do peso). A Sra. Ellie tenta argumentar para que Mary voltasse para o seu leito, porém, a minha amiga era tão cabeça dura quanto ela. 

— Por favor, tia Ellie. Eu quero ver o cometa Halley. A ELA já tomou a minha vida. Não permita que ELA roube os meus sonhos também.

Diante daquelas palavras tão tristes vindas da Mary, a Sra. Ellie ainda tenta convencê-la a ficar no hospital.

— Se eu tenho só mais um dia de vida, que permita que seja esse. Que hoje seja o dia perfeito.

O pastor Carl segura a Sra. Ellie pelos ombros com muita delicadeza, olhando-a firmemente nos olhos.

— Deixe ela ir com seus amigos, minha esposa. Mary ficará bem — a voz mansa do pastor Carl alcançou o coração machucado da Sra. Ellie. — Você sabe que ela ficará. Ela tem amigos que se importam com ela. Amigos que a amam.

A Sra. Ellie soluça, chora, derrama-se naquele corredor de hospital. Após se recompor, ela inclina-se sobre Mary, e despeja um beijo na fronte da garota. Um beijo estalado, era doloroso abrir mão da Mary. 

— Vai dar tudo certo, Mary — a voz de Ellie era de partir o coração.

— Já fui medicada e alimentada, tia Ellie — Mary sussurra. — Eu vou ficar bem.

— Nós prometemos trazê-la de volta — digo, levando-a minha amiga na cadeira de rodas.

 • • • 

— Vamos parar naquele posto ali e encher o tanque — Jake aponta para o posto de gasolina na estrada.

São 16h15.

O embate com a Sra. Ellie durou muito mais do que deveria, mas no fim, valeu a pena. Mary está confortavelmente acomodada no furgão, com os olhos curiosos focados na janelinha. 

Paramos no posto, que também possui uma loja de conveniência, e enchemos o tanque do furgão. A gasolina está um dólar o litro. Jake, com toda a sua pomposidade, se oferece para pagá-la. Eu resolvo comprar uma latinha de refrigerante. Lara entra na lojinha de conveniência e sai de lá com uma caixinha com alguns palitos em mãos.

— São velas sparkles. Eu as vi e fiquei com uma imensa vontade de comprar — Lara relata a nós. — Acho que essas velas servirão para alguma coisa. 

— Ainda falta mais uma hora de estrada, pessoal — Jane buzina, para que nos agilizemos. 

Jake paga a gasolina e espera pelo recibo. Abro a porta de correr, esperando-o entrar. 

— É sempre bom pegar a nota fiscal. É nosso direito como cidadão — ele diz.

  Para de ser besta e entra logo — digo.

Retomamos para o nosso objetivo, enquanto Jane põe o pé no acelerador. 

— Oh, essa música é tão linda — Mary fala em uma enorme empolgação. — Pode aumentar o volume, por favor?

Sem mais ou menos, giro o botão do rádio automotivo de acordo com o pedido da Mary.

 Dentro do furgão submergimos na letra de Stand By Me⁵⁹. A pleno pulmões, todos nós cantamos o refrão. 

Desafinados. 

Eufóricos. 

Uma voz se sobrepondo à outra. 

Inesperadamente, sinto as lágrimas, completamente incompreensíveis por mim, quentes, roliças e brilhantes a rolarem pelo meu rosto.  Um sentimento agridoce apertando em meu peito. Não apenas eu, mas todos no furgão estão a chorar, até mesmo a nossa motorista. 

— Se continuarem assim, eu também vou chorar — Mary diz, com a voz a embargada.

São 17h55.

A Montanha Luna ganhava forma diante de nós. Um amontoado de terra com grama esverdeada. Era apenas uma colina, mas que serviria para o nosso desígnio. Jane estaciona o furgão, e com cuidado, Jake e eu tiramos Mary do veículo. 

 Se a montanha não vem até a Mary, Mary vai até a montanha — digo, muito brincalhão.

Subimos a colina-barra-montanha Luna, e consigo levar a cadeira de rodas da Mary até o topo com ela. Minha amiga pareceu divertir-se.

Lara estende uma toalha xadrez no chão. Nós cinco, oramos, agradecendo a Deus por tudo que nos foi dado e feito por nós. 

Enquanto esperamos o cometa Halley jogamos conversa fora.

— Acabei de ler todos aqueles quadrinhos que você me falou naquele dia, Jake. Acho que vou querer mais dicas de quadrinhos em breve — Lara diz.

— Ah, assim terei uma rival em campo, que saberá mais sobre os super-heróis que eu — Jake dá uma mordida em uma das barras de cereal que a Lara trouxera.

— Seu bobo.

Graças a Deus, as nuvens de chuva haviam se dissipado. Contemplava no topo daquela colina-barra-montanha o límpido céu noturno. Eu poderia até mesmo vislumbrar a Via Láctea.

Mary eleva seus olhos para o céu à procura do seu cometa. Está tão pálida e franzina, mas ainda assim, existe um brilho que emana dela. É essa fé tão resplandecente, esse amor tão infinito e belo que ela sente pelo Criador.

— São 19h30! Esse cometa está atrasado.

— Calma, seu apressadinho — Mary sorri para mim.

Após, ela fica muito séria, e olha-me com urgência.

— John, me promete uma coisa?

— O quê?

— Me promete que você, apesar de tudo, continuará a viver? Fará faculdade, terá uma família e que será muito feliz? 

— Falando desse jeito, Mary, até parece uma despedida.

— Prometa-me, John. 

Meus olhos estão marejados. Meu peito está doendo e nem sei o porquê.

— Eu prometo — exclamo, determinado a cumprir aquela promessa.

— A vida é muito linda para ser pintada de cinza.

— O que isso significa? — sorrio, embora meus olhos queiram me trair e despejar lágrimas.

— Não sei. Me deu vontade de falar isso.

Ela sorri, uma única lágrima correndo pelo seu rosto. De repente, canta um trecho de um hino cristão, reconheço-o, pois semana passada, o coral da Igreja estava cantando-o. Era Nearer, My God, to Thee⁶⁰, e cantado pela voz falha e quase fraca de Mary, sinto uma intensa vontade de chorar.

— Ele está chegando, pessoal! — Lara anuncia, a voz acima de uma oitava.

O cometa Halley estava vindo. O grande milagre que ela tanto almejava contemplar.

No horizonte noturno, onde a escuridão se mistura com o brilho das estrelas, o cometa Halley se aproxima lentamente, como um viajante solitário em um mar de éter. Sua cauda, uma longa e etérea pintura de luz, ondula suavemente atrás dele, como um véu celestial que dança ao sabor do vento cósmico.

Ele nos tinge com seu brilho azulado.

À medida que o cometa Halley se aproxima, seu núcleo brilhante, como uma gema celeste, corta o firmamento, deixando um rastro efêmero de faíscas e mistério. As estrelas parecem piscar com admiração enquanto o cometa desliza graciosamente pelo espaço, deixando para trás uma trilha de poeira estelar que cintila como diamantes em um manto escuro.

Nossos olhos seguem o movimento do cometa com suspiros maravilhados, contemplando sua passagem. Cada um de nós encontra um significado único na visão, pois aquele cometa, com sua beleza fugaz e sua jornada imprevisível, inspira sonhos. Reflexões. Esperanças.

Lara acende as velas sparkles e entrega uma para Jane. Elas sacodem as velas que faíscam, brilhantes, como se houvesse uma estrela cadente na ponta da vela.

— Oh, John, que obra linda do nosso Senhor! — Mary está estupefata. — Obrigada por me trazer aqui. Muito obrigada.

— Gostaria de ter tirado uma foto do cometa — digo, em um cochicho.

— Melhor do guardar um milagre, é testemunhá-lo com os próprios olhos.

— O cometa Halley é o seu grande milagre, Mary?

Mary não me responde, fechando os olhos e abrindo um sorriso para mim.

Como prometido, retornamos com a Mary para o hospital. Enquanto nos despedimos dela, envolvendo-a em abraços calorosos e palavras de amor, sabemos que sua jornada não termina aqui. A Sra. Ellie, tomada por um sentimento maior, decidiu levá-la para casa. Jane ainda a visitava depois da escola, e eu, visitava Mary depois do trabalho. Mary perdera a capacidade de falar, mas ainda assim, o seu olhar ainda era carregado de amor e paz. Fiquei com ela por cada precioso minuto.


E, então, uma semana depois ela partiu, abraçada pelo sono eterno. Ascendeu aos céus. Tornou-se uma estrela. Levando consigo seus sorrisos admiráveis, seu amor incomparável e a sua fé inquebrantável.

Per aspera, ad astra. Por caminhos ásperos, até as estrelas.

Foi bom ter te conhecido. A garota das meias listradas. A caçadora de milagres. Descanse em paz, Mary Marshall. 


˚ . ˚ . * ✧🌌🌠✧˚ . ˚ . *

💫Nota 56: Marcos 9:23.

💫Nota 57: Também chamada de "hemofobia", a hematofobia é um tipo de fobia específica caracterizada pelo medo intenso e irracional de sangue

💫Nota 58:  Frase famosa que foi dita pelo astronauta Jack Swigert, a bordo da nave espacial Apollo 13, durante a missão lunar Apollo 13, da NASA, em 1970.

💫Nota 59: Música escrita pelo cantor e compositor americano Ben E. King, Jerry Leiber e Mike Stoller. Foi lançada em 1961.

💫Nota 60: "Nearer, My God, to Thee" ou "Mais Perto, Meu Deus, de Ti" é um hino tradicional protestante do século XIX escrito por Sarah Flower Adams, vagamente baseado em Gênesis 28:11-19, a história de sonho de Jacó.


💫Nota off: Apesar de haver registros de que a passagem do cometa Halley em 1986 foi a menos favorável de todas, quase passando despercebido no céu, quis ainda assim, criar um momento mágico no livro onde os personagens pudessem contemplá-lo. 

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