Nós, em uma casca de noz!

By SanCrys

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❝Meu avô sempre me dizia, que estranhos são amigos que você ainda não conhece.❞ Uma história sobre amizade, e... More

Filho pródigo
Garota das meias listradas
A História Sem Fim
*Carpem Diem*
J.A.W.
Vitaminas, pensamentos e o Caderno dos Milagres
Quem avisa, amigo é.
Sobre más companhias e teimosia juvenil
Um abismo chama outro abismo
Recordações vazias como em uma fotografia antiga
Corações discordantes
O orgulho vem antes da queda
O bater de asas de uma borboleta
O menino que gritava ❝lobo❞
Corra, John, Corra!
Sentença de um garoto traído
❝Como lágrimas na chuva❞
A milagrosa lista dos desejos
Um pouco de esperança não machuca
Uma teoria chamada John
Câmbio, desligo!
Efemeridade do tempo
O Universo em uma caixa de papelão
Unicórnios antes dos garotos
Pó de estrelas mitigadas
Incandescente poder da cura
Déjà vu
Todas as coisas cooperam para o bem
Bom amigo
Para você, daqui a 30 anos!
Lembranças guardadas em uma garrafa de Coca-Cola
*Memento mori*
Não diga que eu não falei das estrelas
Há sempre o amanhã
*Ad astra*
Muito obrigado, Mary Marshall

O que ainda restou de mim

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By SanCrys

PARTE II

MARY


Quero gritar para alguém e dizer o quanto meu braço está doendo. Mas preciso ser forte. Toco a minha testa e percebo que está enfaixada. Semicerro meus olhos, forçando minha vista turva a desvendar quem é a pessoa que dorme apoiada sobre os cotovelos, cochilando na desconfortável cadeira de plástico. Os cabelos loiros, com algumas mechas castanhas, totalmente eriçados. A tez dele está pálida, a calça jeans desbotada, e a camisa branca possui homéricas manchas de tinta. Ele não pode me ouvir pois sua audição está preenchida pelos fones de ouvido de seu walkman. Engulo em seco quando meu cérebro enfim consegue juntar o desconexo quebra-cabeça. John Walker, vulgo Jaw, está dormindo aqui! E onde é exatamente "aqui"? Posso considerar como um quarto de hospital.

Quartos de hospitais são ambientes familiares para mim.

Movo um pouco meu pescoço e observo a bolsa de soro quase vazia ligada a mim. Franzo meu cenho. Mordo meu lábio inferior com força, exigindo que a minha mente foque em outra coisa que não seja a agulha do cateter perfurando a minha veia, ou John Walker dormindo a uma certa distância do meu leito. Uma enfermeira adentra o quarto, e abre um sorriso caloroso para mim. Ela parece ter a mesma idade da minha tia. Ela foi muito gentil comigo, enquanto trocava a bolsa de soro por outra.

— Ele está aqui desde que você chegou. — diz a enfermeira para mim. — É seu irmão, docinho?

— Não.  

— Seu primo?  

 — E-ele não é nada para mim — gostaria de parar de gaguejar.

— Logo vai ficar tudo bem, querida. Já contactamos os seus responsáveis.

— Minha tia está aqui?

— Sim, sua tia está aqui. Só está assinando uma papelada na recepção.

Ah, que alívio. O quarto é um pouco quente, devido ao aquecedor e tem cheiro de desinfetante de lavanda. 

Acabei por entrar novamente em uma maratona de exames e agulhadas. Meu braço direito, endurecido sobre meu abdômen, está com cateteres e acessos enquanto o equipo drena a bolsa de soro pendurada no suporte de inox. Desde que a enfermeira saiu deste quarto, conferi exatamente quantas gotas já passaram pelo dosador. Tento distrair-me para não contemplar o garoto adormecido na cadeira. Admito que, mesmo adormecido, John é bastante belo. Um belo adormecido. Mas se não fosse por ele, talvez, eu ainda estivesse estirada no chão da cozinha com minha cabeça afogada em cima do meu próprio sangue...

Entristeço-me comigo mesma. 

Espero ficar logo recuperada e retornar para a minha casa de uma vez por todas, e dizer "adeus" às agulhas. Mexo um pouco minha cabeça para a esquerda e noto o calendário com fotos de gatinhos na parede do quarto. Bonito calendário, penso comigo mesma. Logo recordo-me do Magrelo, digo, Panquecas, o agora gato da Lara. Tia Ellie e tio Carl nunca me deixaram ter um gato de estimação. Minha tia é extremamente alérgica. Gatos, cães, coelhos... Nenhum destes animais posso ter de estimação, por causa da alergia da tia Ellie. Quem sabe, em um futuro distante, eu não possa ter um peixinho dourado? Mas eu ficaria triste do mesmo jeito ao ver o bichinho preso para sempre em um aquário de vidro.

Suspiro profundamente.

 Eu nasci prematura, pesando apenas um quilo e quinhentas gramas. Passei metade do tempo dentro de uma incubadora em uma tentativa desesperada para que eu sobrevivesse. Um dia, minha tia disse que as enfermeiras falavam que eu era uma coisa cor-de-rosa e muito mole. Muitos médicos disseram que eu não chegaria aos meus dois anos de idade. Por um milagre, estou com dezoito anos.

Eu nunca fui uma criança saudável.

 Desde que me lembro, não passou um dia sequer que eu não ficasse doente. Até mesmo uma simples gripe acaba por me esmorecer.

Mas quando cheguei na adolescência, tudo piorou outra vez. Primeiro, foram as fadigas, o cansaço, a febre, os músculos do meu corpo que tinham espasmos sem explicação, a minha voz que ficava travada em minha garganta, minhas mãos que tremiam tanto ao ponto de eu perder o controle sobre elas. Depois disso, abriu-se uma nova fase para as minhas quedas. Minhas pernas de repente paravam de mexer-se, fazendo-me cair repentinamente, machucando-me no processo. E a cada ano, só piora.

Uso meias que cobrem minhas pernas até os joelhos para disfarçar os hematomas e cicatrizes que carrego. Minha perna, do joelho para baixo, ficara repleta de curativos adesivos que coloco estrategicamente para encobrir os meus machucados.

Ano passado, uma sensação de fraqueza dominou o meu corpo, enquanto eu trocava de uniforme para participar de mais uma aula de Educação Física, em que deveríamos dar oito voltas no ginásio, e em seguida, girar bambolês em nossas cinturas. Eu estava sozinha no momento e foi tudo tão repentino. Eu perdi o controle de meus próprios membros, como se minhas pernas e braços fossem desligados do meu cérebro. E eu caí. Devido ao forte impacto que sofri no chão, e por não ter colocado os meus braços como um apoio, tive uma contusão no crânio e desmaiei. Por pouco não quebrei o nariz no processo.

Quando eu despertei, em uma cama de hospital, disseram para mim que alarmei a escola inteira. Naquele mesmo dia, não conseguia mais andar como antes. Minhas pernas não obedeciam os comandos do meu cérebro, e só andavam quando bem quisessem.

O pior aconteceu depois... eu não esperava por aquilo. 

Os sintomas pioraram. Tivemos de visitar um neurologista. 

E, então, fui diagnosticada com Esclerose Lateral Amiotrófica aos meus dezessete anos.

Para os mais íntimos, ELA.

Não é o tipo de coisa que você espera ouvir com essa idade. 

Pesquisei a fundo sobre a doença, e quanto mais pesquisava, mais desesperada eu ficava.

Chorei noites e mais noites, sendo amparada por meus tios. Fiquei seis meses recuperando-me, enquanto os médicos tentavam encontrar uma solução para minha doença, um tratamento adequado.

Devido a vários empréstimos, tio Carl foi capaz de comprar vários aparatos metálicos, colar cervical e botas ortopédicas que poderiam ajudar-me no tratamento para que pudesse andar novamente, para que eu conseguisse repor pelo menos metade das aulas. Todavia, a falta de força em meus braços, os movimentos descoordenados, além dos espasmos, obrigaram-me a ficar na cama do hospital. 

Perdi muitos dias de aulas. 

Fiquei reprovada logo no meu último ano, por excesso de faltas. Tia Ellie até tentou justificar na escola porque eu me ausentei das aulas, porém eu disse a ela que não fazia mal repetir de ano. Era uma chance para que pudesse fazer tudo de novo e de forma diferente. Eu encontraria novos amigos, eu poderia tirar a foto para o anuário, e poderia ir para o baile de inverno... bom, eu não fui para o baile de inverno desta vez.

Com o tempo que sobrou-me internada no hospital e com o pouco tempo para visitas, tio Carl sugeriu-me um passatempo. Contou histórias maravilhosas de pessoas que superaram seus problemas e de fenômenos inexplicáveis pela ciência. Por que, então, eu não deveria dedicar meu tempo à caçar milagres? Existem tantos tipos de caçadores no mundo, por que eu não poderia tornar-me uma caçadora de milagres? Todo dia quando ia visitar-me no hospital, meu tio trazia uma centena de jornais velhos e eu perdia-me entre dias e mais dias a completar meu caderno com notícias boas.

Notícias que podiam me trazer esperanças. Que renovassem a minha fé.

Quando pude enfim retornar para a minha casa, retornei a ter várias recaídas. Mantive-me calada, escondendo meu padecimento no silêncio de minha alma. Não queria ver meus tios sofrendo e gastando seu suado dinheiro com remédios de preços exorbitantes. Eu só quero ser uma adolescente normal.

— Olá. Tudo bem? — a porta abre-se revelando uma mulher de cabelos castanhos bem presos com grampos e óculos com armação vermelha. — Sou a Dra. Cherry Baker.

Ela é bem mais jovem do que eu pensei.

— Mary Marshall.

John remexe-se na cadeira. Coça os olhos, atordoado com a nova presença no quarto. Levanta-se como se seu corpo estivesse dolorido (e como não estaria depois de dormir em uma cadeira tão desconfortável?) tira os fones do ouvido e coloca seu walkman sobre o assento da cadeira de plástico. E como se estivesse tonto ele caminha rumo à porta do quarto.

— Espere, mocinho. Ainda não pode sair do hospital. — diz a doutora.

— Só vou tomar café.

E John sai do quarto.

— Oh, e esse mocinho? — A doutora olha-me, conspiradora. — É seu namorado?

Sinto que meu rosto tornou-se vermelho como uma pimenta malagueta.  

— Nunca! — tenho absoluta certeza que minhas bochechas, quentes como estão, são capazes de derreter calotas polares.

— Olha, querida, se um rapaz liga para a ambulância e se prontifica a passar a noite toda em um hospital, velando por você, certamente ele sente algo.

— Deve ser dor na consciência — digo, quase inaudível.

Segundos depois, minha tia Ellie irrompe pela porta do quarto, chorando sobre mim, esquecendo-se até mesmo da médica que jaz ao meu lado. Em um instante, acaba por se recompor em tempo recorde, e arruma o xale quadriculado nos ombros, enquanto cumprimenta a doutora.

— Ellie Marshall — ela aperta a mão da doutora. — Sou a tia dela.

— Prazer em conhecê-la, Sra. Marshall — diz a doutora Baker.

— Recebi uma ligação de que a minha sobrinha estava internada. Fiquei aflita. — Minha tia tremia-se.

— Mantenha calma. O pior já passou.

— Ah, doutora. Mary já adoeceu antes. Tenho medo de ser uma recaída.

— Não precisa se preocupar. Temos uma equipe médica que fará tudo que estiver ao alcance.

Minha mente perde-se em divagações e nervosismo. Mal percebo que meus olhos estão voltados para a reluzente parede branca.

— No que está pensando, meu bem? —  a Dra. Baker tira-me de meus pensamentos, tentando desvendar meu rosto. — Ah, já sei! Está pensando como deve ficar linda no vestido do baile de formatura e como vai arrasar na pista de dança. Acertei?

Vejo minha tia fazer uma expressão de desaprovação quanto ao comentário da doutora. Ela não iria querer ver nenhum rapaz com a mão agarrada em minha cintura. Permito-me apenas divertir-me com a conversa adocicada daquela mulher tão gentil.

— Na verdade, não sei dançar. — desminto.

— É tímida, meu bem? — a Dra. Baker descansa a mão debaixo do queixo. Ela teria uma ótima carreira como modelo de capa de revista.

— É que... — baixo minha vista mirando minhas pernas imóveis. — Não sei se alguém me convidaria para dançar.

— Uma moça tão linda como você, ficar segurando vela? Negativo. Tenho absoluta certeza que um rapaz galante e educado dançaria com você. — Cherry pisca para mim. — O que pensa em fazer quando acabar o ensino médio?

— Não sou muito ambiciosa — sorrio para ela. — Mas ando pensando bastante sobre o que sonho em ser no futuro.

A Dra. Baker troca o soro, retirando com cautela os cateteres do meu braço, instigando-me a conversar, para distrair-me da dor que as agulhas causam-me ao saírem de minha carne.

— E eu poderia saber em primeira mão, o que a mocinha pretende ser? — a Dra. Baker continua muito alegre em sua falação. Sinto-me tão à vontade em sua presença, que mal lembro-me que titia ainda está ali.

Não há muitas profissões que posso seguir em minha vida. Nunca serei uma atleta ou uma bailarina. Nunca poderei ser uma policial ou uma professora. Mas se há algo que aprendi desde que achei-me adoentada é que, se uma porta fecha outra porta abre.

— Eu queria ser astronauta quando era criança, e acredito que esse ingênuo sonho não tenho evaporado de minha mente e nem do meu coração. Tenho o desejo ardente de descobrir o que está além de nosso céu. Explorar outros planetas, mergulhar entre as estrelas, desvendar o Universo.

— Ah, isso é ótimo. É maravilhoso que você ainda possua os mesmos sonhos. Regue-os como se fosse uma plantinha, e no final, você verá o resultado. Desejo uma boa sorte para você — Cherry toca a minha nuca e apoia a mão no meu ombro. — Consegue ficar sentada, meu bem?

Consinto. Tia Ellie ajuda-me a ficar assentada.

— Essa é a parte mais chata do exame — Cherry ajuda-me a ficar sentada. — Vou precisar que tire sua camisola, florzinha.

Sim, essa é a pior parte do exame. A Dra. Stuart sempre pedia para que eu retirasse a camisa, sem conversas ou forma de alívios. Após isto, uma seringa, com uma agulha de dez centímetros é enfiada em minha vértebra. Uma vez, tremi tanto que a Dra. Stuart ralhou comigo, porque receava que eu quebrasse a agulha da seringa com minha tremedeira.

Tia Ellie ajuda-me a tirar a camisola. Timidamente, cubro meus seios do tamanho de uma maçã. Cherry leva um bom tempo analisando minhas costas, e sinto o toque de seus dedos em minha pele. Inquieto-me em saber se ela falará da minha postura, assim como a Dra. Stuart. Ela não cansava em repreender-me e falar o quão curvada sou.

— Passa muito tempo deitada? — a Dra. Baker questiona, um misto de compaixão com tristeza.

— Sim. — respondo, a voz baixa e embargada.

— Vou recomendar uma pomada para você, querida. Isso não é normal.

Ficar deitada por muito tempo, como é o meu caso, ocasiona a aparição de úlceras de pressão em minhas costas. E desde que minha doença retornou, só consigo ficar nesta posição.

— Feche os olhos, Mary. — Cherry avisa-me. — Vou aplicar o remédio agora.

Mordo com força meu lábio inferior, enquanto a doutora fala palavras de conforto. Tais palavras são abafadas pela dor da agulha espalhando-se por minhas costas. Aperto meus olhos com força, impedindo as lágrimas de correrem pela minha face, mas é tarde demais quando um soluço foge da minha boca. Tia Ellie consola-me, afagando meus cabelos e sussurrando uma canção de igreja.

— Pronto. Acabou, querida. — Cherry tranquiliza-me. — E como está a mocinha? — a doutora questiona-me.

— Um pouco zonza...

— Deve ser o efeito do remédio.

Visto a camisola, retornando a deitar-me no leito.

— Responda-me, Mary, como está a sua alimentação?

— Eu só consigo comer gelatina... e sopa de vez em quando. Eu gostava de comer caramelos, mas não consigo mais comê-los. Engoli-los é um sofrimento.

— Entendo... — a Dra. Cherry tem o olhar distante. — Podemos conversar lá fora, Sra. Marshall?

Minha tia assente, seguindo a doutora.

— Vai ficar tudo bem com você, querida? — Tia Ellie soluça.

— Firme e forte, tia.

A porta é fechada e logo sou tragada pelos meus pensamentos solitários.

Enrolo a mecha do meu cabelo nos meus dedos, fitando o teto branco do quarto. Consigo mexer um pouco as minhas pernas. Mas, por mais que eu queira, uma hora ou outra as minhas pernas irão simplesmente parar de me obedecer. Estou aqui, neste quarto de hospital, por causa disto. Porque tentei fazer algo que estava além do meu alcance e machuquei-me gravemente.

Não demora muito para meu rosto ficar molhado. Não quero testemunhar o sofrimento de meus queridos tios. Não quero perder mais um ano, com uma doença que afoga-me em amargura e paralisa meus sonhos. À noite, sempre escuto meu tio chorar enquanto ora. E toda vez que eu o ouço prantear, meus olhos transbordam de angústia. Eu sei o quanto faço meus tios sofrerem, com essa doença silenciosa que tirou-me a capacidade de viver normalmente. E isso só faz-me infeliz.

Escuto a porta do quarto abrir e me apresso para enxugar a minha face. Era John, ainda com uma expressão sonolenta. Adentra o quarto, com um copo descartável contendo café em mãos. 

— Sua tia está no fim do corredor conversando com a doutora — sorve o café. — Aconteceu alguma coisa séria?

— Eu não sei... Talvez... 

Não tenho coragem para encará-lo ou mesmo falar com ele. Tenho medo de agradecê-lo. Medo de que as palavras engasguem em minha boca.

— Não precisa me agradecer — John diz, como se pudesse ler minha mente.

Olho para ele, atordoada.

— Quero dizer, eu sei que sua família e você me enxergam como a escória da sociedade — bebe o café, mais uma vez. — Eu sei que fiz um monte de besteira, e mereço esse tratamento mesmo.

Não ouso agradecê-lo. Sei que devo perdoá-lo, mas é realmente difícil. Todavia somente por saber que ele ficou neste quarto, vendo meu estado de dormência, uma sensação de vergonha toma conta de mim.

Sorrio. É normal sentir-se estranhamente louca?

— Você está bem? — John arqueia uma sobrancelha.

— Sim — respondo, ainda enrolando minha mecha. — Deve ser o efeito da morfina que a enfermeira aplicou em minha veia.

Respiro profundamente. John Walker, o delinquente da escola, o rapaz que fuma cigarros baratos, velou pelo meu sono. Meus devaneios somem como fumaça e as borboletas no meu estômago perdem a força quando percebo que ele está olhando para mim.

— John, quando você veio comigo, os enfermeiros disseram algo para você?

Fico temerosa caso John fique a par de minha condição. Afinal, ele deve ter assinado algo na recepção do hospital. Devem ter perguntado qual o remédio que uso, há quanto tempo estou dando sinais...

— Não, nada. Apenas mandaram assinar uns documentos para que eu pudesse acompanhá-la — mostra-me a pulseira, uma tira branca com a palavra "acompanhante" em azul.

— Tem ideia de que horas são?

— Acho que são 4h45 da madrugada.

— E seus pais não ficarão preocupados por você não ter voltado para casa?

— Acho que eles não se importam muito com isso — diz, um pouco amargurado.

— Eu posso explicar para o Sr. Walker onde você esteve, que foi culpa minha...

— Não há necessidade de fazer isso — e encerra a conversa, bebendo mais um gole de café.

 A porta fica entreaberta. Com um pouco de dificuldade, escuto as vozes do outro lado. 

— Ficará difícil para Mary respirar e até mesmo falar.

— Quanto tempo, doutora? Oh, os outros médicos deram meses à ela...

— Ainda não sabemos, contudo, Sra. Marshall, não quero enchê-la com falsas esperanças. Já procuraram um neurologista?

Tia Ellie passa pela porta, junto com a doutora, e seus olhos cansados fuzilam John.

— O que faz aqui? — pergunta, rancorosa.

— Foi este garoto, senhora, quem ligou para o 911 e disse a situação de sua sobrinha. Um verdadeiro herói. — diz a doutora Cherry.

Minha tia não faz questão de parabenizá-lo, tratando de permanecer ao meu lado, fingindo consolar-me.

— Não tem mais necessidade de ficar aqui.

Tia Ellie sequer o agradece e isso de alguma forma, a maneira como ela o destrata, machuca-me.

— Antes, rapaz, precisa assinar um formulário, já que passou a madrugada toda aqui. Seus pais sabem que ficou no hospital?

— Digamos que eles não se importam muito com a minha situação — sinto a falta de fé na voz de John.

Puxo minha tia de canto, curiosa acerca do que a doutora lhe dissera.

— Tia — sussurro —, o que a Dra. Baker lhe disse?

— Nada demais, querida. — seus lábios tremulam. — Apenas que os níveis de açúcar no seu sangue estão altos.

— Tia — puxo seu xale de leve —, é só isso mesmo? A senhora parece tão preocupada!

— Sim, querida, é só isso. Não se preocupe. 

Repousa a mão de temperatura gelada na minha bochecha. Tia Ellie inclina-se e beija a minha testa. Percebo que suas mãos não pararam de tremer um minuto sequer, desde que adentrou esse quarto. Sei que ela está nervosa, e sei que isso é culpa minha. Por favor, Deus, não deixe a minha tia sofrer de novo por minha causa.

— Você sabe que é o meu maior milagre, não sabe? — os olhos da tia Ellie assemelham-se a duas poças de água.

Assinto. Observo, John deixar o quarto. Apoio-me nos cotovelos, para desagrado de minha tia, tendo tempo suficiente para avisá-lo.

— John, esqueceu o seu walkman!

Mas sequer escuta-me. Enquanto isso, uma confusão de sentimentos agitam meu âmago, como um arco-íris desbotado que ressurge nos céus. 


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