Prólogo

9.5K 314 32
                                    

"Pra começar, cada coisa em seu lugar e nada como um dia após o outro. Pra quê apressar? Se não sabe onde chegar. Correr em vão se o caminho é longo." - Um dia após o outro – Tiago Iorc


    2 meses antes:

     Consigo lembrar perfeitamente da última vez em que encarei com tanta concentração as mediações desse quarto de casal repleto de objetos e souvenirs de tantos lugares por onde meus avós já passaram e que, em conjunto, formam uma espécie de ode ao mundo. O mapa mundi caprichosamente emoldurado e posicionado acima da cabeceira da cama, suas fotografias distribuídas em porta-retratos bonitos... Tudo uma arte da minha avó, claro. Meu avô insiste não precisar de nada disso para lembrá-lo dos detalhes que viveu em cada cantinho onde já pisou. 

     Mas de todos os objetos, nada nunca conseguiu prender mais minha atenção do que a velha estante que guarda uma vasta coleção de globos de neve de muitas formas, tamanhos e países diferentes. Por algum motivo curioso, o da Rússia sempre foi o meu favorito. Desde sempre gostava de focar nele em momentos complicados. Ajudava-me a perceber que meus problemas nem eram tão significantes assim. "A Rússia, sim, é grande, os problemas não", era meu lema. Confesso que hoje essa percepção não surge tão facilmente. 

     Por muito tempo, a cena de Aurora olhando para o globo já passava a mensagem de que algo estava errado e antecedia a entrada em ação da dupla de avós que se reuniam no quarto para uma conversa e tentativa de consertar tudo. Geralmente conseguiam. Foi assim com a primeira paixonite da infância, com o primeiro fora adolescente, com cada briga feia entre meus pais, com o divórcio cansativo e arrasador, com a primeira traição em um relacionamento sério e, até então, sólido... Incrível como, mesmo viajando sem parar, os dois sempre estiveram tão presentes. 

     A última vez nem foi tão digna de lembranças pela traição em si, mas por tudo o que aconteceu depois e por ter sido realmente a última onde puderam me confortar direitinho. Hoje, nesse momento, a grandiosidade russa não vai conseguir me convencer de que o que perdi foi pequeno e o casal não vai entrar no quarto para um diálogo interessante e inspirador sobre a existência. Porque hoje é o dia que perdi um deles. Imagino que a morte deva considerar um feito bastante imponente conseguir levar alguém que sempre amara tanto a vida. 

     Ah, se naquele dia, há quase um ano atrás, a gente soubesse de tudo o que estava por vir...

     Se vivêssemos dentro de um filme, na certa esse seria aquele momento de entrada de um flashback tamanha é a perfeição com que consigo nos ver e ouvir tudo que foi dito nesse quarto naquela última vez. 

     — Seu avô já chegou a mudar os globos de lugar na esperança de ver você dar mais atenção para o da Escócia, mas, pelo jeito, não funcionou — minha avó se apoiava no batente da porta de entrada do quarto e não era possível calcular quanto tempo ela já devia estar parada ali, observando minha conversa silenciosa com a redoma de vidro responsável por abrigar uma mini Moscou.

     — Esse eu vou sempre deixar pra vocês. — Sempre dona de uma presença marcante (talvez essa tenha sido sua mais forte característica), meus olhos automaticamente desviaram, passando, então, a acompanhar o caminho que fez da porta até a cama e seu sentar nela. 

     Com traços finos e uma expressão sempre gentil, olhos verdes maciços e cabelos bem cuidados preenchidos pelo branco que gradualmente o tempo foi lhe dando em troca do natural castanho avermelhado de antes, minha avó parecia ter consigo uma aura que iluminava qualquer ambiente por onde passava e uma calma e sabedoria invejáveis.

     — Aurora, porque eu tenho certeza de que você está mais decepcionada com você mesma do que com o cafajeste que fez aquele papelão? — a batidinha que sua mão dava no colchão, incentivando-me a sentar ao seu lado, não é difícil de recordar. 

O Outro Lado do Mundo [DEGUSTAÇÃO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora