Capítulo 19

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Uma semana havia se passado.

Até quando Céu me ignoraria como se fossemos completos estranhos? Como se ele nunca houvesse feito mil e uma peraltices — inclusive me raptar — só para me levar até a sua presença ou dando um jeito para vir até a mim, como no dia em que invadiu o meu quarto, ou quando se apresentou aos meus pais como se fosse um cara normal e depois me levou a um encontro em que eu ainda tinha gravado em minha memória cada segundo.

Bufei, olhando-o pelos cantos dos olhos na feira de artesanato que acontecia no meio da comunidade.

James parecia gostar realmente de mim. E eu... bem... eu havia descoberto há exatamente uma semana — no dia do encontro, que talvez, o sentimento fosse recíproco. Não havia dormido na noite da descoberta. Depois que Noah foi embora, me tranquei no quarto e chorei. Chorei por entender que aquele sentimento era totalmente inapropriado. Céu não era cristão. Apesar de conhecedor da palavra — mas até o diabo conhece, não é mesmo? —, nós não tínhamos a mesma fé e muito menos seguia os mesmos princípios. Éramos jugo desigual.

Mesmo sabendo de tudo isso, o sentimento ainda permanecia lá, me torturando, estraçalhando o meu coração. E agora, ele me ignorava completamente. Parecia que sabia exatamente o que se passava no meu interior e como já havia atingido seu objetivo, me desprezava, tendo a tira colo uma morena seminua.

Revirei os olhos quando o vi pousar a mão na cintura da menina.

— Incircunciso — resmunguei entre dentes.

— O quê? — Kim se virou para mim. — Quem é incircunciso? — Eu não respondi, mas minha amiga, esperta como sempre, seguiu o meu olhar. — Não me diga... — Ela arregalou os olhos de volta para mim.

— Tá bom, eu não digo. — Me virei e segui a passos largos para outra barraca, onde uma moça vendia brincos de capim dourado.

— Desembucha, Amber da Silva! — inquiriu ela, ao meu encalço.

— Você não acha que esses ficariam bem legais na minha irmã? — A ignorei, levando um par de brincos até minha orelha para ela ver como ficaria.

Kim cruzou os braços e me fitou impaciente.

— Tá bom, eu conto, mas você tem que ficar de bico calado!

— Minha boca é um túmulo lacrado — respondeu ela com um gritinho eufórico.

Segurei em seu braço e nos afastamos das barracas para termos privacidade.

— Eu estou lascada — falei, sentindo as lágrimas vindo à tona.

— O que houve, amiga?

Respirei fundo e por cima dos ombros de Kim, avistei o Céu rindo com a fulaninha. Ele desviou os olhos e me pegou os observando. Eu queria desviar os olhos, mas ao invés disso, o encarei de volta e foi ele que desfez o contato visual, sussurrando algo no ouvido da periguete que o acompanhava, que voltou a rir como uma hiena louca.

— Não precisa me explicar nada — disse Kim, e só então percebi que ela me observa outra vez. — Você está apaixonada pelo dono do morro.

— Loucura, não é?

— Como isso foi acontecer, Amber?

Sentei-me em um bloco de concreto erguido no meio da calçada e passei a relatar a minha melhor amiga todas as minhas interações com James. Falei dos raptos até sua casa no topo do morro, de como ele queria que eu lhe fornecesse informações sobre o morro das trevas, da invasão ao meu quarto, do sequestro e de como o ajudei com a mãe dele, contei sobre a visita dele aos meus pais e como ele havia me surpreendido ao me levar ao projeto social financiado por ele em outra parte da cidade. Quando dei por mim, eu o estava elogiando e exaltando suas qualidades, externando toda a admiração que até então eu guardava somente para mim.

— Isso, a meu ver não é só uma paixãozinha. Você o ama, Amber.

Tampei o rosto com as mãos e esfreguei os olhos.

— Fico me perguntando por que nunca senti isso por alguém como o Noah? Cristão, temente a Deus e que se encaixa exatamente no sonho de genro de todo pai — disse, me recordando como meu pai o havia tratado há alguns dias, deixando bem claro seu apreço pelo meu melhor amigo.

Kim se virou na direção em que nosso amigo conversava com um grupo de rapazes, com certeza aproveitando a oportunidade para evangelizá-los, e sorriu.

— Noah, além de ser um chato às vezes, é um exemplo de cristão, eu tenho que concordar. Quem se casar com ele, sem sobra de dúvidas terá uma vida tranquila e feliz.

Encarei Noah, desejando que em um passe de mágica, todo o que sentia pelo libertino do Céu, transferisse para o meu melhor amigo casto. Nada aconteceu.

Noah se afastou dos rapazes e quando nos viu, sorriu abertamente e caminhou até nós.

— Vocês não vão acreditar! — disse ele eufórico, sentando-se ao meu lado. — Um daqueles rapazes se mostrou muito interessado em aprender mais sobre as escritura. Serei seu discipulador. Reuniremos todos os sábados em sua casa para estudarmos a bíblia juntos. Isso não é o máximo? — Os olhos dele brilharam. — Isso é incrível! Finalmente conseguimos arranhar as armaduras. — Eufórico, Noah passou o braço pelo meu ombro, levando-me ao seu encontro.

Tão rápido quanto havia chegado, Noah partiu rumo a outro grupo, decidido a alcançar o mesmo êxito do grupo anterior.

Kim quis ir ao banheiro e saiu logo em seguida e eu fiquei ali, sentada no bloco de concreto no meio da calçada, perdida nos meus sentimentos.

De repente, o sol foi bloqueado por alguém que se pôs em minha frente. Ergui os olhos e lá estava James, com os olhos fixo em mim, como se lesse a minha alma.

— Vem comigo. — Sem esperar por minha resposta, Céu me puxou pelos punhos em direção a um beco deserto.

— O que você pensa que está fazendo? — Tentei me soltar ao vê-lo me levar cada vez mais longe, beco a fora. — Me solta seu ogro!

James olhou para mim por cima dos ombros e eu estremeci ao ver raiva faiscar em minha direção.

Engoli em seco quando ele parou e se virou se supetão para me encarar.

— O que você está fazendo comigo, Amber? — Ele estava tão perto que senti seu hálito quente tocando meus lábios.

— Nada... — minha voz quase não saiu.

— Eu vi como você anda olhado para mim. Mas um minuto depois, você está de novo nos braços de outro.

Arregalei os olhos e o fitei surpresa.

Ele estava com ciúmes do Noah? Era por isso que vinha me ignorando?

Uma coisinha dentro de mim fez meu coração bater mais forte e sem perceber, meus lábios repuxaram em um sorriso.

— O que é tão engraçado? — Ele deu um passo e eu recuei. Minhas costas tocaram na parede fria do beco e um segundo depois senti seu corpo forte pressionar o meu.

Seus olhos desceram até a minha boca e ali ficaram por algum tempo.

— Nem pense em me beijar — falei, encontrando forças em algum lugar dentro de mim.

— Por que não? Eu sei que você quer tanto quanto eu — sussurrou ele.

— Eu não posso.

— Sou tão ogro assim? — perguntou sarcástico.

Apertei os olhos, decidida a ser a mais sincera possível.

— Eu só beijarei o meu esposo. No dia do meu casamento em diante...

Céu se afastou no mesmo instante e quando abri os olhos, ele me encarava como se havia visto uma aberração da natureza.

— Você só pode estar brincando — riu sem humor.

— Nunca falei tão sério em toda a minha vida. — Abracei meu próprio corpo, sentindo frio após ele se afastar.

Ele me encarou por mais alguns minutos em silêncio, antes de virar e sair andando para fora do beco, deixando-me para trás.

***

Eita, eita, eita!
É tudo que tenho a dizer...

V. E.

O dono do morro da Luz e a missionária cristãOnde as histórias ganham vida. Descobre agora