Brasileiras (peça teatral)

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Personagens

D. ROSA, uma senhora idosa
MARGARIDA, uma senhora de meia idade


Uma festa de aniversário bem simples, cadeiras encostadas à parede em frente a uma mesa com salgadinhos e refrigerantes.

As duas senhoras estão sentadas nas cadeiras, segurando bebidas e quitutes.

D. ROSA - Ai, minha filha, como é duro ser velho! Com tanto doce aqui e eu não posso nem experimentar.

MARGARIDA (fala em tom de segredo) - Ah, mas a senhora não perde nada! Estão horríveis! Também, eu sempre disse ao meu irmão que não se casasse com ela! Não presta nem pra cozinhar.

D. ROSA (concorda com a cabeça) - Esses pãezinhos também estão péssimos. O que economizou no patê está gastando com o guaraná que a gente tem que tomar pra descer!

MARGARIDA - Concordo que as coisas estejam difíceis hoje em dia, mas economizar na comida?! Francamente...

D. ROSA - Ai, nem me fale, filha... Hoje eu fui receber a aposentadoria, uma merreca!

MARGARIDA - Eles não têm consideração com a gente... Que guaraná horrível!

D. ROSA - Ainda por cima tive de pegar uma fila enorme e quando cheguei no caixa, aquela desgraçada queria que eu fizesse uma senha! Imagina! Com a minha idade ter que ficar lembrando números!

MARGARIDA - Eles inventam desculpa para não pagar os velhos, D. Rosa!

D. ROSA - Aí ela me disse que anotasse o número para não esquecer. Eu nem sei escrever, como é que ia anotar!

MARGARIDA (levantando para pegar mais um salgadinho) - É um absurdo... Mas a gente tem que se conformar com isso, o governo manda, a gente tem que obedecer, o que podemos fazer?! Ai, que horror! Essa coxinha está gelada!

D. ROSA - A última que eu peguei tinha um pedaço de osso no recheio!

MARGARIDA - Essa mulherzinha... Ah, não sei como meu irmão agüenta ela! Na casa da mamãe ele tinha do bom e do melhor, agora, vive por aí com essa cara de cansaço! Mamãe até fazia a barba dele, coitada!

D. ROSA - Era uma boa pessoa, que Deus, Jesus e Nossa Senhora da Conceição Aparecida a tenham consigo...

MARGARIDA - Amém, D. Rosa, amém! Mas como eu ia dizendo, minha pobre mãezinha fazia de tudo para ele, cortava-lhe as unhas, punha-lhe o prato... Agora ele é obrigado a se virar sozinho, que essa daí não mexe um fio de cabelo!

D. ROSA - Bem se vê que ela é preguiçosa. Dona Jurema, a que mora aí do lado, disse que ela nem faz comida! É tudo a empregada! Só chega pra almoçar e já sai!

MARGARIDA - Essa história de trabalhar fora, pra mim, é vagabundice! Onde já se viu, dar aulas, não cria nem o próprio filho!

D. ROSA - No meu tempo, virava professora só quem tinha dinheiro pra estudar! E pelo que eu saiba, essa aí não tem tudo isso, não!

MARGARIDA - Pois é, economiza no patê e arrota caviar! Pensa que o dinheiro que meu irmão sofre pra ganhar é capim!

D. ROSA - Pois é, não sabe dar valor...

MARGARIDA - Agora que a senhora falou da D. Jurema eu lembrei... Sabia que a filha dela está grávida?!

D. ROSA - Aquela bebadazinha?!

MARGARIDA - Ééé!

D. ROSA - Que horror! Onde é que esse mundo vai parar?! Ninguém mais leva a sagrada instituição da família a sério! E ela sabe quem é o pai?

MARGARIDA - Diz que é um moço de uma família rica, mas eu sei bem da onde vem esse dinheiro! Ah, se eu sei! Conhecendo aquela menina eu tenho certeza que o namoradinho dela é traficante!

D. ROSA (servindo-se de mais refrigerante)- E pensar que essa rua era tão calma... Logo vamos começar a ver desgraças por aqui...

MARGARIDA - Pois é, D. Rosa... É gente como essa aí que traz essa infelicidade para o mundo... Bem que merece uma vizinha dessas! Nosso Senhor com certeza não abençoa uma casa onde a mulher não cuida do marido!

D. ROSA (benze-se) - É mesmo...

MARGARIDA - E a senhora vê, D. Jurema falava tanto da vida dos vizinhos, criticava os da frente porque o filho era maricas...

D. ROSA (interrompendo) - O filho deles é maricas?!

MARGARIDA - A senhora não sabia?! Pois é! Dizem até que o primo do amigo do dono do açougue viu ele andando com outro garoto, mas isso, para mim, tá na cara! A mãe não deixava ele brincar na rua!

D. ROSA - Pois é, achava que ele era melhor que os outros! Bem feito! Olha o que virou! Sempre aí bem arrumadinho, perfumado, no carro novo, cumprimentando a gente como se fosse bem-educado! Que sem-vergonhice!

MARGARIDA - É aonde vai nossa comunidade, D. Rosa! Outro dia ele me viu e quis apertar minha mão! Eu, hein! Imagine, uma pessoa decente e religiosa ser vista apertando a mão de um... Aff!

D. ROSA - Isso é tudo culpa da família que não é mais como antigamente, Margarida... Vê se na nossa época a gente tratava os pais por "você"! Imagina, era "senhor"! E se não andasse na linha, levava surra pra ficar de cama!

MARGARIDA - Ai, eu que o diga! Uma vez apanhei de vara de marmelo! Fiquei cheia de vergões!

D. ROSA - Mas foi bom, filha, porque você agora é uma mulher de bem! Você tem amor no coração...

MARGARIDA - Ah, eu tento tento seguir os ensinamentos da Igreja, D. Rosa. Só faço o que o Senhor manda.

D. ROSA - Continue assim, filha, são de pessoas assim que o mundo está precisando... Bom, agora eu preciso ir... Ainda tenho que passar no bar do Seu João comprar meu licorzinho, que eu também sou filha de Deus, não é?

MARGARIDA - Eu também vou, logo vai começar a novela das oito e hoje eu não posso perder! A Inês vai descobrir que o marido tem outra filha!

D. ROSA - Hmm, então é melhor eu me apressar! Porque ainda prometi rezar um terço pra nora da minha concunhada e quero fazer isso antes da novela!

As duas se levantam fingem cumprimentar uma personagem, a dona da casa, que, obviamente não está presente no palco.

D. ROSA - Obrigada, filha, a festa estava muito boa.

MARGARIDA - Até mais, minha cunhadinha, venha lá em casa mais vezes!

Incultas Produções da JuventudeWhere stories live. Discover now