Estávamos todos no salão principal almoçando quando Francy entrou correndo no cômodo e exclamou:
_ Clara está no telefone!
Eu e meus pais nos entreolhamos e, quase que ao mesmo tempo, nos pusemos de pé e começamos a caminhar rumo ao escritório de mamãe. Era lá que o único telefone pertencente aos Luminescentes ficava.
Tudo bem, eu sei que, num passado não muito distante, a Luz não possuía este tipo de tecnologia, mas calma! Eu vou explicar.
Acontece é que, com Clara morando em New York e as conversas via sinal de fumaça fora de cogitação – eu bem que dei essa ideia -, tornou-se imprescindível que tivéssemos um telefone fixo. Quando Aurora era líder, não permitia este tipo de coisa por achar ser perigoso e arriscado demais. "Ela acreditava que tal tecnologia revelaria nossa localização..." explicou-me papai quando eu era criança e muito mais curioso.
Infelizmente, Aurora morreu, e minha mãe assumiu a liderança da Luz sozinha em seu lugar, podendo assim aceitar o meio de comunicação, ainda que tomando vários cuidados que não perderei tempo descrevendo.
"Mas não pensem que vou permitir celulares ou joguinhos eletrônicos!" Lembro-me de ouvi-la falando no dia em que comunicou a todos a recente mudança nas regras antigas. "Esses sim são perigosos. Destroem o psicológico, a concentração e a vida das pessoas!"
Pensando nisso, consigo quase recordar a expressão de decepção que invadiu o rosto de cada um dos jovens do lugar – inclusive o meu -, mas isso logo passou. Tínhamos questões maiores para nos ocupar, como quem conseguiria conversar com a Sara na semana seguinte ou o próximo rapaz que lustraria as armas do arsenal.
É engraçado pensar em como, na época, o telefone fez sucesso. Hoje, as únicas pessoas que fazem uso dele são papai, mamãe e tio Marcel, além de mim, porque sou obrigado a falar com Clara – finjam que eu não assumi, mas até que gosto daquela doida.
_ Está bem, filha, Deus te abençoe! – despediu-se mamãe. – Vou passar para ele.
Num gesto tímido, como se não quiser dizer tchau, ela estendeu o telefone na minha direção e eu, entorpecido, segui em sua direção para busca-lo.
Puxa... Pensei. Viajei tanto em lembranças que perdi a conversa de meus pais com ela e agora já chegou minha vez.
Acomodei o plástico frio em meu rosto e murmurei, meio perdido:
_ Quê?
_ Quê?! – repetiu minha irmã. – É assim que me atende?
_ É. – respondi, soltando em seguida uma leve gargalhada. Clara também riu.
_ Seu sentimentalismo é comovente. – um suspiro entrecortou sua fala e, ao retornar, trazia na voz um tom grave e preocupado. – Como andam as coisas?
De soslaio, notei mamãe e papai conversando aparentemente em tom animado. Ela sorria como nunca, enquanto segurava as mãos do marido.
_ De forma geral, as coisas vão mal. Sei que não quer saber da família, porque imagino que já conversou com todos, inclusive tio Marcel, então sabe que estamos indo. Entretanto, com a Luz não é bem assim...
_ Ainda estão tendo baixas? – sussurrou Clara, como se tivesse medo de ser ouvida.
_ Sim, e em quantidades consideráveis. As pessoas estão abandonando a Luz movidas por puro pavor. Cinco ou seis luminescentes por mês fogem pela floresta ou pedem para ir embora.
_ Pavor? – questionou minha irmã.
_ Clara, não temos uma combatente. Por séculos a tradição foi que uma mulher de nossa família lutaria pela Luz contra o Caos, mas agora já chegamos ao momento que, normalmente, a batalha aconteceria e... Não estou jogando a culpa em você, mas... Mentira, estou jogando sim. Resolva o problema.
_ O quê? – guinchou ela, assustada.
_ Brincadeira. – a tranquilizei por entre risos. – Na verdade, todos acham que a culpa é minha.
_ Sua?
_ Sim. Mamãe nega, mas eu sei que não devia ter nascido. Sou, literalmente, o "bendito fruto entre as mulheres"!
Clara gargalhou.
_ Até com isso você brinca? – reclamou, respirando fundo.
_ Se não brincasse, ficaria louco. – murmurei. – Quando vem para cá? Precisa ver como mamãe está cheia de cabelos brancos!
_ Vou contar para ela que disse isso. – ameaçou.
_ A culpa dos fios brancos é sua, louca. Pode contar. – respondi com um sorriso no rosto, ainda que Clara não o visse através do telefone.
_ É um dom. – comentou minha irmã, fingindo superioridade. Quase pude enxergar sua expressão brincalhona do outro lado da linha.
_ Mas, sério, mana. Quando vem para cá? Já faz muito tempo desde a sua última visita. – reclamei. Embora negasse, sentia falta dela.
_ Queria que viessem me ver para variar... – sussurrou em tom melancólico.
_ Sem drama, Clara. Sabe muito bem que não poderemos deixar a sede da Luz tão cedo.
_ Está bem, mamãe. – zombou. – Já entendi. Apareço por aí na próxima semana com Nani e uma sacola cheia de chocolates para você e Dendras.
_ Está tentando nos bajular? – acusei.
_ Claro que sim.
_ Então tudo bem. Eu e seu irmão-de-consideração vamos adorar esse presentinho. – engoli o riso.
_ Ótimo, ótimo. – respondeu com voz travessa. – Assim compro mais informações confidenciais desses dois pestinhas.
_ Pestinhas? – exclamei, fingindo indignação.
_ Ops, falei isso em voz alta? – murmurou, rindo.
_ Você me paga, maluca.
_ E você, cuide da nossa família por mim. – murmurou.
_ Queria você aqui para cuidar comig... – comecei, mas fui silenciado pelo som irritantemente monótono da outra linha sendo desligada. – Droga!
_ O que foi? – perguntou papai ao me ver guardando o telefone.
_ Nada, pai... – dei de ombros, caminhando em sua direção. Mamãe não estava mais no cômodo. – Então Clara vem para cá em alguns dias?
_ Sim. Ela vai aproveitar que o bebê de Ana e Marcel está para nascer e vai ficar para acompanhar tudo.
Balancei a cabeça em sinal positivo e comecei a caminhar de volta ao almoço acompanhado por papai.
Muita coisa estava acontecendo ao mesmo tempo, inclusive fatos preocupantes e ruins, entretanto, dentre tudo isso, o milagre da vida estava quase para acontecer. Um novo bebê chegaria à Luz.
Caramba... Pensei. Lembro de quando tio Marcel e tia Ana casaram e eu fui quem entrou com as alianças. Terninho, cabelo preto bagunçado, os olhos verdes brilhando de ansiedade... É, nunca vou esquecer desse dia.
Lembro que Dendras entrou com as flores e ficou furioso por isso! Clara foi madrinha e...
O quê? Você não sabe quem é Dendras? Ok, está bem, vou lhe contar...

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O Ciclo de Sangue - A Queda do Legado (livro 03)
FantasyNicolas é o segundo, último e inesperado filho de Lucy e Ícaro. Tem dezenove anos, foi criado na sede dos Luminescentes e, desde sempre, treina para ser um guardião. Entretanto, como seu irmão adotivo, Dendras, sempre diz, ele não é apenas um guardi...