2º Capítulo - Apresento-lhes a Situação

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Estávamos todos no salão principal almoçando quando Francy entrou correndo no cômodo e exclamou:

_ Clara está no telefone!

Eu e meus pais nos entreolhamos e, quase que ao mesmo tempo, nos pusemos de pé e começamos a caminhar rumo ao escritório de mamãe. Era lá que o único telefone pertencente aos Luminescentes ficava.

Tudo bem, eu sei que, num passado não muito distante, a Luz não possuía este tipo de tecnologia, mas calma! Eu vou explicar.

Acontece é que, com Clara morando em New York e as conversas via sinal de fumaça fora de cogitação – eu bem que dei essa ideia -, tornou-se imprescindível que tivéssemos um telefone fixo. Quando Aurora era líder, não permitia este tipo de coisa por achar ser perigoso e arriscado demais. "Ela acreditava que tal tecnologia revelaria nossa localização..." explicou-me papai quando eu era criança e muito mais curioso.

Infelizmente, Aurora morreu, e minha mãe assumiu a liderança da Luz sozinha em seu lugar, podendo assim aceitar o meio de comunicação, ainda que tomando vários cuidados que não perderei tempo descrevendo.

"Mas não pensem que vou permitir celulares ou joguinhos eletrônicos!" Lembro-me de ouvi-la falando no dia em que comunicou a todos a recente mudança nas regras antigas. "Esses sim são perigosos. Destroem o psicológico, a concentração e a vida das pessoas!"

Pensando nisso, consigo quase recordar a expressão de decepção que invadiu o rosto de cada um dos jovens do lugar – inclusive o meu -, mas isso logo passou. Tínhamos questões maiores para nos ocupar, como quem conseguiria conversar com a Sara na semana seguinte ou o próximo rapaz que lustraria as armas do arsenal.

É engraçado pensar em como, na época, o telefone fez sucesso. Hoje, as únicas pessoas que fazem uso dele são papai, mamãe e tio Marcel, além de mim, porque sou obrigado a falar com Clara – finjam que eu não assumi, mas até que gosto daquela doida.

_ Está bem, filha, Deus te abençoe! – despediu-se mamãe. – Vou passar para ele.

Num gesto tímido, como se não quiser dizer tchau, ela estendeu o telefone na minha direção e eu, entorpecido, segui em sua direção para busca-lo.

Puxa... Pensei. Viajei tanto em lembranças que perdi a conversa de meus pais com ela e agora já chegou minha vez.

Acomodei o plástico frio em meu rosto e murmurei, meio perdido:

_ Quê?

_ Quê?! – repetiu minha irmã. – É assim que me atende?

_ É. – respondi, soltando em seguida uma leve gargalhada. Clara também riu.

_ Seu sentimentalismo é comovente. – um suspiro entrecortou sua fala e, ao retornar, trazia na voz um tom grave e preocupado. – Como andam as coisas?

De soslaio, notei mamãe e papai conversando aparentemente em tom animado. Ela sorria como nunca, enquanto segurava as mãos do marido.

_ De forma geral, as coisas vão mal. Sei que não quer saber da família, porque imagino que já conversou com todos, inclusive tio Marcel, então sabe que estamos indo. Entretanto, com a Luz não é bem assim...

_ Ainda estão tendo baixas? – sussurrou Clara, como se tivesse medo de ser ouvida.

_ Sim, e em quantidades consideráveis. As pessoas estão abandonando a Luz movidas por puro pavor. Cinco ou seis luminescentes por mês fogem pela floresta ou pedem para ir embora.

_ Pavor? – questionou minha irmã.

_ Clara, não temos uma combatente. Por séculos a tradição foi que uma mulher de nossa família lutaria pela Luz contra o Caos, mas agora já chegamos ao momento que, normalmente, a batalha aconteceria e... Não estou jogando a culpa em você, mas... Mentira, estou jogando sim. Resolva o problema.

_ O quê? – guinchou ela, assustada.

_ Brincadeira. – a tranquilizei por entre risos. – Na verdade, todos acham que a culpa é minha.

_ Sua?

_ Sim. Mamãe nega, mas eu sei que não devia ter nascido. Sou, literalmente, o "bendito fruto entre as mulheres"!

Clara gargalhou.

_ Até com isso você brinca? – reclamou, respirando fundo.

_ Se não brincasse, ficaria louco. – murmurei. – Quando vem para cá? Precisa ver como mamãe está cheia de cabelos brancos!

_ Vou contar para ela que disse isso. – ameaçou.

_ A culpa dos fios brancos é sua, louca. Pode contar. – respondi com um sorriso no rosto, ainda que Clara não o visse através do telefone.

_ É um dom. – comentou minha irmã, fingindo superioridade. Quase pude enxergar sua expressão brincalhona do outro lado da linha.

_ Mas, sério, mana. Quando vem para cá? Já faz muito tempo desde a sua última visita. – reclamei. Embora negasse, sentia falta dela.

_ Queria que viessem me ver para variar... – sussurrou em tom melancólico.

_ Sem drama, Clara. Sabe muito bem que não poderemos deixar a sede da Luz tão cedo.

_ Está bem, mamãe. – zombou. – Já entendi. Apareço por aí na próxima semana com Nani e uma sacola cheia de chocolates para você e Dendras.

_ Está tentando nos bajular? – acusei.

_ Claro que sim.

_ Então tudo bem. Eu e seu irmão-de-consideração vamos adorar esse presentinho. – engoli o riso.

_ Ótimo, ótimo. – respondeu com voz travessa. – Assim compro mais informações confidenciais desses dois pestinhas.

_ Pestinhas? – exclamei, fingindo indignação.

_ Ops, falei isso em voz alta? – murmurou, rindo.

_ Você me paga, maluca.

_ E você, cuide da nossa família por mim. – murmurou.

_ Queria você aqui para cuidar comig... – comecei, mas fui silenciado pelo som irritantemente monótono da outra linha sendo desligada. – Droga!

_ O que foi? – perguntou papai ao me ver guardando o telefone.

_ Nada, pai... – dei de ombros, caminhando em sua direção. Mamãe não estava mais no cômodo. – Então Clara vem para cá em alguns dias?

_ Sim. Ela vai aproveitar que o bebê de Ana e Marcel está para nascer e vai ficar para acompanhar tudo.

Balancei a cabeça em sinal positivo e comecei a caminhar de volta ao almoço acompanhado por papai.

Muita coisa estava acontecendo ao mesmo tempo, inclusive fatos preocupantes e ruins, entretanto, dentre tudo isso, o milagre da vida estava quase para acontecer. Um novo bebê chegaria à Luz.

Caramba... Pensei. Lembro de quando tio Marcel e tia Ana casaram e eu fui quem entrou com as alianças. Terninho, cabelo preto bagunçado, os olhos verdes brilhando de ansiedade... É, nunca vou esquecer desse dia.

Lembro que Dendras entrou com as flores e ficou furioso por isso! Clara foi madrinha e...

O quê? Você não sabe quem é Dendras? Ok, está bem, vou lhe contar... 

O Ciclo de Sangue - A Queda do Legado (livro 03)Onde histórias criam vida. Descubra agora