Cap 15

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Acordo ainda abraçado a minha jaqueta, que infelizmente não contem mais nenhum vestígio do cheiro de Katniss. Olho pela janela, e vejo que já amanheceu. Não sei ao certo que horas são, pois apesar de estar claro lá fora, uma neblina cobre toda a cidade. A dor em meu corpo, e em minha cabeça, denuncia que eu devo ter sonhado a noite toda, mas não consigo me lembrar de absolutamente nada. Vou para o banheiro, e tomo um longo banho. Quando eu saio, encontro uma troca de roupas em cima da minha cama. Uma calça preta, um pouco apertada na minha opinião, uma espécie de túnica cor de vinho, e botinas de couro. Me visto, e antes de sair me olho no espelho. Não há sinais de que chorei a noite passada, e isso me deixa aliviado.
Encontro Haymitch no corredor, e fico surpreso, pois acho que é cedo para ele estar de pé. E para completar ele não aparenta estar bêbado. Não muito, pelo menos.

Quando entramos na sala, Katniss já está lá a nossa espera, comendo pãezinhos com chocolate quente. Ela gostou mesmo disso, penso, e dou um meio sorriso. Percebo que as suas roupas são exatamente iguais as minhas. Gosto dessa ideia, pois para mim nunca seremos inimigos, adversários ou coisa do tipo, e nos vestirmos iguais, por mais que pareça bobo, reforça a ideia de que somos uma equipe, uma dupla, companheiros.

Eu e Haymitch desejamos bom dia a ela, enquanto nos encaminhamos em direção a mesa. Eu me sirvo de quase tudo o que há, e estranho o fato de Katniss ter comido tão pouco. Quando Haymitch termina de comer, suspira fundo e dá um longo gole, de um frasco que tira do seu bolso. Estou nervoso, e ansioso com o início dos treinamentos. Conhecer cada tributo pessoalmente vai ser essencial para saber quais devemos temer.

— Então, vamos direto aos negócios. Treinamento. Primeiro de tudo, se preferirem, eu os treinarei separadamente. Decidam agora. – diz Haymitch.

— Por que você nos treinaria separadamente? — ela pergunta.

— Digamos que você tenha uma habilidade secreta que talvez não queira que o outro saiba — ele diz.

Eu a olho, e ela sustenta meu olhar. Não vejo porque nos treinar separadamente, já que eu jamais seria uma ameaça para ela.

— Eu não tenho nenhuma habilidade secreta — digo. — E eu já sei qual a sua é, certo? Quero dizer, já comi bastante esquilos seus.

E isso é verdade. Mesmo minha família não sendo tão pobre quanto a maioria, nós ainda não somos ricos a ponto de esbanjar dinheiro comprando carne de açougue. Meu pai sempre compra algo dela. E de Gale.

— Pode nos treinar juntos — ela enfim concorda.

— Tudo bem, então me deem uma ideia do que conseguem fazer — diz Haymitch.

— Eu não consigo fazer nada — eu digo, percebendo agora, o quanto posso ser inútil para Katniss nesses jogos. — A não ser que conte assar pão.

— Desculpa, não conta. Katniss. Já sei que é habilidosa com uma faca.

— Na verdade não. Mas consigo caçar. Com arco e flecha.

— E você é boa? — pergunta Haymitch.

Ela pensa por um instante.

— Sou mais ou menos — ela diz.

— Ela é excelente — sou obrigado a discordar — Meu pai compra os esquilos dela. Ele sempre comenta como as flechas nunca penetram o corpo. Ela acerta todos no meio dos olhos. É o mesmo com os coelhos que ela vende ao açougueiro. Ela consegue até mesmo derrubar veados.

Ela parece surpresa, por eu saber tais coisas sobre ela.

— O que você está fazendo? — ela pergunta, num tom, quase de acusação.

— O que você está fazendo? Se ele vai nos ajudar, tem que saber do que você é capaz. Não se subestime — eu rebato.

— E quanto a você? Eu te vi na padaria. Você consegue levantar sacos de farinha de quarenta e cinco quilos — ela retruca. — Diga isso a ele.

— Sim, e estou certo de que a arena estará cheia de sacos de farinha para eu atirar nas pessoas. Não é como ser capaz de usar uma arma. Você sabe que não é — eu atiro de volta, sentindo uma certa raiva de minha incapacidade.

— Ele consegue lutar — ela continua para Haymitch. — Ele ficou em segundo na competição da nossa escola ano passado, só depois do seu irmão.

Agora eu que fico surpreso. Talvez em algum momento ela tenha reparado em mim.

— Qual o uso disso? Quantas vezes você viu alguém lutar com outro até a morte? —digo, enojado com o que acabei de falar.

— Há sempre combate corpo-a-corpo. Tudo o que você precisa é arranjar uma faca, e você pelo menos terá uma chance. Se eu for surpreendida, estou morta! — ela diz, com raiva agora.

— Mas você não será surpreendida! Você estará vivendo em alguma árvore comendo esquilos crus e alvejando as pessoas com flechas. Você sabe o que a minha mãe disse para mim quando ela veio dizer adeus? Como para que me animar, ela falou que talvez o Distrito Doze finalmente tenha um campeão. Então percebi que ela não quis dizer eu, ela quis dizer você! — digo, sentindo de novo toda a mágoa  que senti, ao ouvir aquela frase da minha própria mãe.

— Ah, ela quis dizer você — ela diz negando com a cabeça.

— Uma vez ela me disse, "Ela é uma sobrevivente, aquela. Ela é" — digo.

De repente, seu rosto se contrai em um misto de vergonha e tristeza.
Talvez eu a tenha magoado discutindo com ela desse jeito. Quero pedir desculpas, mas antes mesmo de eu formular alguma frase, ela diz:

— Mas só porque alguém me ajudou.

Eu fico sem reação. Não estava esperando que ela tocasse nesse assunto. Meus olhos vão diretamente para o pedaço de pão que ela segura nas mãos, e isso soa como uma confirmação de que eu também me lembro daquele dia. De que eu nunca vou me esquecer daquele dia. Tento não demonstrar a dor que sinto e apenas dou de ombros.

— As pessoas irão te ajudar na arena. Elas estarão se estapeando para patrocinar você.

— Não mais do que para patrocinar você — ela rebate.

Reviro os olhos e me viro para Haymitch, que está nos observando.

— Ela não faz ideia do efeito que pode ter. – digo.

E com essa frase me refiro não só ao efeito que ela pode ter na arena, mas também ao efeito que ela tem sobre mim, desde o primeiro dia que eu a vi.


Jogos Vorazes - Peeta MellarkOnde as histórias ganham vida. Descobre agora