Cemitério de rosas CAPITULO VII

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Antes de retornar para a casa, Egbert decidiu fazer uma última pergunta — A porta de entrada do mausoléu, você viu como o coveiro fez para abri-la? — Sua irmã que estava do seu lado esquerdo, se dispôs a responder — Eu o vi uma vez, parecia que estava usando uma chave. Ele a tirou de um de seus bolsos e a colocou na fechadura. Era estranho, pois após entrar, fechou a porta a suas costas, talvez ele as tranque por dentro — Uma das irmãs, a única que se mantinha calada até então, começou a falar, lhe dando mais descrições sobre a chave — Sim, eu me lembro disso, era uma chave grande, escura e adornada com um pequeno pomo de metal em formato de crânio — Ele enxergou verdades naquelas palavras.

Ao voltar para casa, Egbert falava consigo mesmo em voz baixa, tentando criar uma imagem em sua mente do que procurava — Chave grande, escura e com um pomo em formato de crânio. Não deve ser difícil encontrá-la, esta casa não é muito grande, Emmet deve tela escondido dentro de algo — Por mais otimistas que suas palavras fossem, ele não fazia idéia por onde começar sua procura. Ele iniciou entre os livros e atrás da prateleira, nas gavetas dos armários e embaixo da mobília, não estava em lugar nenhum. Havia uma grande chance de Emmet carregar aquela chave consigo o tempo todo, pois seu imenso cuidado com aquela cripta beirava a paranóia. Egbert percorreu a escada que dava acesso ao segundo andar. Lá, havia um corredor estreito que se estendia até uma porta selada por tábuas. A decoração se repetia, as paredes eram encobertas pelo mesmo papel de parede, o chão era feito do mesmo tipo de assoalho e os quadros de imagens escuras e de formas interpretativas estavam espalhados pelas paredes. A sua esquerda, haviam duas portas. Ao adentrar na primeira, se viu dentro de um pequeno quarto de poucos móveis, que aparentava estar abandonado. Havia uma cama de casal com lençóis entendidos e arrumados, a camada de poeira indicava que não eram limpos e nem usados há muito tempo. Além da cama, o criado mudo e o armário com gavetas vazias, não existia mais nada que pudesse investigar.

Ao adentrar na segunda porta, assustou-se, percebendo que não estava sozinho na casa. Para sua surpresa, se deparou com Emmet sentado a um gabinete. Com uma pena negra, longa e torta, ele escrevia em um manuscrito de forma rápida, ao ponto de seus rabiscares serem audíveis. Ele levantou sua cabeça brevemente e lhe cumprimentou de maneira trivial, com sua voz lenta e rouca como de costume — Boa tarde Egbert — Sua boca se mexeu, mas suas palavras não saíram. Egbert se manteve em silêncio por alguns instantes, até o coveiro voltar a falar — Ouvi alguns barulhos lá embaixo, parece que algo caiu — Ao tentar lhe explicar, suas palavras não demonstraram tanta certeza quanto deveria — Eu só estava procurando... Somente... Estava arrumando meus pertences, apenas isso e nada mais — Emmet havia percebido a mentira em suas palavras, ele podia não conversar com muita frequência com os vivos, mas talvez, por uma habilidade natural, sabia como se comportavam. — Vi você falando com as irmãs Mandrack, elas pareciam estarem curiosas — Desviando seu olhar rapidamente para um canto, viu uma prateleira, onde registros de capas duras e folhas grossas estavam ordenadamente enfileirados, contendo números romanos em suas lombadas do um ao doze. Egbert respondeu sua pergunta tentando parecer natural em suas explicações — As irmãs só estavam perguntando coisas sem muita relevância sobre o cemitério, sabe como é, elas falam demais — Emmet lhe observou como se aquelas palavras ofendessem sua inteligência, ele sabia de algo, mas Egbert não sabia o que era. Ele tentou mudar de assunto, pois aquelas perguntas o intimidavam — O que são estes registros aqui do lado? — Antes de continuar a escrever, ele mergulhou duas vezes a ponta da pluma no tinteiro. Sem ao menos virar a cabeça, lhe respondeu — São registros, do primeiro até o ultimo corpo que foi enterrado neste cemitério. Eles estão sendo registrados desde antes mesmo de eu vir para cá. Está muito ocupado com suas atividades ultimamente? — Sua resposta foi rápida e curta — Eu diria que os dias estão muito produtivos — Ao ouvir tal resposta, suas sobrancelhas se levantaram e algo que parecia ser um sorriso simulado surgiu de entre seus lábios. Talvez Emmet não fosse tão inexpressivo quanto de costume — Isso é muito bom, acredito que tenha estabelecido um ritmo estável e que talvez, você não precise mais de bilhetes para lhe dizer o que fazer — Egbert virou-se e caminhou em direção a porta. Antes de estender sua mão para segurar a maçaneta, Emmet chamou sua atenção — Espere! Há algo que quero que você me ajude. O coletor de corpos esteve presente enquanto você esteve fora, ele trouxe alguns corpos. Quatro mortos por enfermidades, dois vindos de uma briga de rua e mais dois baleados. Pode me ajudar a enterrá-los? — Ele lhe respondeu de imediato, tentando demonstrar eficiência — Sim, eu posso sim, eu só preciso de uma pá — O coveiro repousou a pena no tinteiro e com um único movimento, fechou o manuscrito. Já de pé, ele o pôs junto dos demais na prateleira, o empurrando até o fundo, assim, revelando sua lombada com o número treze.

Enquanto desciam as escadas, de volta ao primeiro andar, Egbert era instigado por sua própria curiosidade mais uma vez — Acho curioso o fato de chamá-lo de "Coletor de corpos". Por que não o chama pelo seu nome? — Emmet coçou seu queixo antes de responder — Porque eu não sei seu nome. Se é que ele possui um — Ele apanhou duas pás que estavam escoradas atrás de uma porta, uma para si e outra para Egbert.

A carroça estava do lado de fora, os corpos eram recentes, pois ainda não estavam fétidos. Eles demorariam o resto do dia para colocá-los em caixões e enterrá-los. As sombras projetadas no chão eram longas, o sol estava prestes a dormir novamente. Eles se mantiveram calados, ao som de pás cavando o chão e o aroma de terra molhada.

Uma frase rompeu àquele silencio sepulcral — Sabe Egbert, eu já tive um assistente como você. Ele era um comerciante falido vindo do "Ponto sem nome". Um sujeito passivo, perguntava pouco, falava demais, apesar disto, trabalhava bem. Segundo o que me contara, saiu de onde morava após uma desilusão amorosa. Era parecido com você em alguns aspectos, vestes simples e poucos lugares para ir além daqui. Ele fez questão de me contar sua história, empregos que teve, pessoas que conheceu e lugares que morou e pretendia morar. Lembro-me bem que os primeiros dias em que esteve aqui, foram bastante agitados. O coletor havia trazido um andarilho com uma flecha cravada no peito, dois mendigos congelados, um caçador morto por um glutão e mais uma velha senhora morta por causas naturais — Egbert, inconscientemente, havia parado de cavar, as palavras vinham até seus ouvidos de forma cada vez mais fúnebres. Enquanto o percebia mergulhar em lembranças antigas, podia ver no olhar de Emmet a veracidade dos fatos — Um dia meu assistente me falou que havia tomado a liberdade de destruir uma antiga cripta, pois ela era decrépita, não possuía nome e estava obstruindo seu caminho. É curioso como não conseguimos nos lembrar de algumas coisas quando ficamos com raiva, eu me recordo apenas dele tentando recolher seus dentes do chão com grande dificuldade, já que seus dedos estavam quebrados. Eu o matei logo em seguida. Bati em sua cabeça com a pá, uma, duas, três vezes, até perceber que estava golpeando um monte de miolos espalhados do chão. Sim Egbert, eu o matei, ele e boa parte daqueles fanáticos profanos que invadiram este lugar. Apesar de numerosos e violentos, nunca foram muito espertos. Com o passar dos anos, acabei esquecendo muitas coisas, lugares, nomes e até situações inteiras. Mas há algo que nunca esqueci, seus rostos, principalmente seus olhos, eles ficaram gravados em minha memória, me encarando como fantasmas sádicos, me perturbando como uma infame maldição, quanto mais eu os mato, mais eles se acumulam aqui. Nunca consegui expulsá-los, mas depois de um tempo, consegui me acostumar com eles. Hoje, dormir sem ver faces retorcidas em minha mente é só uma lembrança distante. Uma lembrança de tempos em que minha vida andava junto da calmaria e eu desconhecia a morte — O coveiro se aproximou de Egbert, que engoliu em seco. Parou ao seu lado, tocou seu ombro e lhe disse próximo de seu ouvido — Nunca mais tente entrar naquela cripta novamente, nunca — Sua voz demonstrava um ódio contido. Ele não só o havia visto conversando com as velhas, mas também o viu rodear a cripta como um rato-ladroeiro a procura de comida.

Como se nada tivesse acontecido, ele deitou sua pá sobre seu ombro, respirou fundo, como costumava fazer em seus breves intervalos de trabalho e lhe disse — Termine com isso, voltarei pela manhã — O coveiro virou suas costas e caminhou passivamente para longe, até perder-se de vista. Aquelas eram ameaças indiretas, ele queria intimidá-lo, ao menos, é o que parecia.

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