Cemitério de rosas CAPITULO V

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Após correr o máximo que pode, Egbert sentiu que já estava distante o bastante. Ele parou, pois havia lhes despistado, ao menos, por enquanto. Envolto na total escuridão, ele apoiou seus palmos em seus joelhos, ofegante, ele podia ouvir seu próprio coração bater. A besta, o machado de lenhador e todas as coisas de sua mochila haviam ficado para traz, pois ele havia as derrubado quando se levantara abruptamente. Seus olhos não podiam ver nem ao menos um palmo a sua frente. Sem outra opção, ele se viu obrigado a tatear na escuridão, assim como um cego. Egbert escorreu seus dedos por entre as formas de pedras ásperas e frias que compunham àquele lugar. Era tolice tentar voltar para casa, apesar da noite estar apenas começando, a melhor coisa a fazer era esperar o nascer do sol, pois as trevas eram suas aliadas e inimigas ao mesmo tempo.

Aquelas imagens, aquelas malditas imagens que acabara de testemunhar, pareciam se impregnar em sua mente, como uma perversa maldição. Já que um homem nu, sendo despedaçado por cães, não era algo que estava acostumado a ver. Àquele dia ficaria guardado em sua memória para sempre e nem mesmo seus pensamentos mais puros poderiam expurgar aquilo de sua consciência. Egbert lembrou da flecha que acertara mortalmente àquele sujeito. Ele nunca quis e nunca cogitou matar alguém antes, pensou que àquele tipo de situação nunca aconteceria com ele. Em determinado momento, ele deitou-se com seu peito para cima, sobre um banco plano e monolítico, ao encosto de uma cripta. O medo dentro de si já havia se esvaído, pois agora que jazia acolhido nas sombras, seu coração batia mais lentamente. Mesmo com o frio intenso, que aumentava durante a noite, ele não se sentiu desconfortável, pois madrugadas gélidas era algo com o que já estava acostumado.

Há pouco tempo, enquanto morava no albergue, observava a neve cair pela única janela do quarto, através de seu vidro embasado, podia ver além da rua principal, pois os postes que iluminavam a cidade, posicionados nas calçadas, seguiam por quilômetros até o fim da periferia. Na época, ele se perguntava várias vezes onde eles terminariam e o que havia além deles, a resposta era um cemitério vasto, que para sua surpresa, era quase tão perigoso quanto uma noite na floresta. Um cemitério no qual agora ele chamava de lar.

Enquanto observava as estrelas, entre suas lembranças que rodeavam sua mente, ele refletiu sobre o que havia acontecido durante àquele episódio brutal. A julgar pelo ritual que havia testemunhado, sabia que não eram simples criminosos violentos e desvairados, eram fanáticos religiosos. Eram veneradores de Walemath, um Deus pertencente a uma religião inominável surgida em eras antigas. Pouco se sabia sobre sua origem, apenas que fora criada por povos ancestrais e primitivos já inexistentes. Por mais distante que sua época de grandeza tenha sido, a religião moldou costumes e pensamentos, agora, implícitos neste reino em muitos outros. Seus membros acreditavam que a criação do mundo e que tudo o que há nele era obra de duas entidades.

A primeira se chamava Guiret, ele criou o mundo. Um mundo no começo, vazio e solitário. Como uma pintura em branco, ele seguiu preenchendo espaços vazios, aflorando a vida aos poucos. Ali, ele colonizou com seres de diferentes tamanhos, hábitos e espécies, os quais ele batizou de animais. Criou vastas extensões de vida, ele as batizou de plantas, assim surgiram as árvores, as flores, as folhas e as florestas.

A segunda entidade se chamava Walemath, vendo tudo que surgia, ele criou os humanos, seres que pensavam e progrediam mais. Também criou a fome, assim surgiu, a caça, a pesca e a coleta. Walemath criou a febre, as doenças e os enfermos, Guiret criou a cura. Walemath criou a tristeza e o luto, Guiret criou a alegria. Walemath criou as intrigas, surgindo assim o debate, os questionamentos e a guerra, Guiret criou a certeza e a paz. Vendo o grande crescimento dos seres, Walemath criou a morte, logo, àqueles que caminhavam por aquelas terras e nadavam por àqueles mares, encontravam um fim, Guiret criou a imortalidade. Walemath criou a dor e o sofrimento. Guiret criou o conforto. Walemath criou a luxúria e a libertinagem, Guiret criou a castidade. Walemath criou os inconsequentes e os impulsivos, Guiret criou os metódicos. Enquanto um criava o fogo o outro criava a chuva, enquanto um criava o dia e o sol, o outro criava a noite, a lua e as estrelas. A origem de tudo é derivada de uma disputa entre duas entidades rivais, era essa a crença de seus seguidores. Esta religião antiga se expandiu pelos reinos, crescendo com o passar das eras. Não se sabe onde ou quando exatamente, mas algumas vertentes surgiram, dividindo grandes sociedades em grupos.

Não era muito complexo observar seus comportamentos e discursos, e perceber que àqueles homens que o perseguiam, sedentos por sua morte, não eram diretamente praticantes de tal religião, mas sim, de uma vertente da mesma, bastante recente, na qual seus membros se intitulavam "As crianças do caos". O nome, apesar de dar margem a chacotas, virou sinônimo de medo para alguns viajantes e ciganos da região. Em suas crenças, acreditavam que Guiret era a representação do mal e que não deveriam usufruir de nada do que criara. Por outro lado, Walemath era a representação do bem, era a quem eles deveriam venerar enquanto vivessem. Viam os deuses como formas personificadas e negavam teorias a respeito da onipresença. Eles adoravam o confronto, a depravação e a inconsequência. Enxergavam beleza no luto, na doença e na morte alheia. Acreditavam no progresso através da guerra e do sofrimento. Quase todos os seus praticantes eram saqueadores, assassinos de aluguel, ladrões e contrabandistas.

Os pensamentos de Egbert aos poucos, se tornaram preguiçosos. Ele observava as estrelas, os pequenos pontos de luz pintados no céu preto, aos poucos, sua visão embasou-se como borrões no cosmo. Por fim, seus olhos pesaram e suas pálpebras se fecharam lentamente. Abrigado na escuridão, distante da luz, ele caiu em um sono tão profundo, que emergiu em seus sonhos psicodélicos de natureza quase febris.

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