Sem título, imagem acima é um spoiler.

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Karol caminhava desinteressada e pensativa, pesarosa, jogando seu corpo pelo mundo nas ruas do centro de uma cidade mediana e cinzenta. As ruas, sujas e escuras, esburacadas e desanimadoras, acolhiam-na. Um domingo de carnaval, triste e melancólico, uma tristeza que procede aos prazeres mundanos e carnais, um dia qualquer na mediana cidade de Joinville, um dia pacato, afinal. A cidade estava vazia, os boêmios e poetas pareciam se esconder após um dia cheio de sexo, drogas e outros vícios e as ruas, como só elas conseguem, exprimiam sua cacofonia surda de ruídos mecânicos e calculados, as buzinas e arrancadas de motos e carros distantes, os gritos de casais nos andares superiores de edifícios enormes e de inúmeras janelas e, claro, o silêncio. Os postes de luz, amarelos e ordinários, criavam sombras ilusórias, alongadas e sinistras, e a lua parecia tímida entre camadas impenetráveis de nuvens negras. Árvores gigantescas balançavam aos ritmos do vento e do tempo, uma dança macabra e negra, detentora de simbolismos e profecias ocultas. "Pelo menos não tá chovendo." Concluíra a garota, com certo desânimo.

Odiava o carnaval. Não combinava com os horrores poéticos e silenciosos de sua alma espectral, e tão pouco se identificava com as marchinhas e prazeres efêmeros, passageiros e ilusórios demais para seu gosto. E mais, a cidade de Joinville não gostava do carnaval, ousaria. Suas ruas banais e comuns, made in china, não combinavam com as alegrias inebriadas e descabidas daqueles jovens inconsequentes, o reflexo de uma juventude qualquer, perdidos todos em si mesmos. Todas aquelas cores, os cheiros, o lixo largado ao relento, nada era agradável naquele feriado, com exceção, claro, do feriado. Contudo, como teria de ser, trabalhara naquele dia. Seu patrão, um sujeito roliço chamado de Moisés, não lhe dera folga, uma emergência ou algo assim ocorrera. Não importava. Odiava o carnaval.

Morava pelas redondezas do centro, uma região verdadeiramente caótica durante o dia, porém, em meio a uma abafada madrugada, escura e silenciosa, nada se movia. A maioria das janelas cerradas, protegendo seus moradores dos dramas e paisagens noturnas, vampiros e notívagos, criaturas tumulares e vermes gordos, protegendo-os do mundo. Caminhava, como sempre o fez, sem nada a temer.

Aquele mesmo caminho fizera dezenas e dezenas de vezes, desde que começara a trabalhar no financeiro daquele mercadinho, o salário era bom e, além disso, era próximo de sua residência. Não gostava muito das pessoas de lá e, muitas vezes, por não passar muito de uma adolescente, e já que jovens fazem merda o tempo todo, era culpada por qualquer imprevisto ou problema que ocorresse, mesmo que não fosse de sua alçada. Mas estava tudo bem, emprego não é para se gostar, dissera sempre sua mãe, uma mulher sábia. Então era essa rotina. Estudava num cursinho pré-vestibular durante a manhã e comecinho da tarde e depois ia direto ao mercado, para uma misera jornada de 6 horas diárias, uma rotina boa, afinal. Era esforçada, e queria sair daquele mercado o quanto antes. Planejava voar mais alto, ainda que não tivesse certeza de que ares gostaria de adentrar, talvez engenharia ou algo do tipo. Não pensaria naquilo agora, não se aborreceria, não mais que o normal, afinal, odiava o carnaval.

De fato, a garota tinha um ponto. As ruas, antes somente largadas ao acaso pelas forças públicas, algumas, a maioria, esburacadas e mal iluminadas, agora, após um dia de folia e libertinagens, se encontravam recheadas de lixo e outros dejetos detestáveis. Passara por latinhas de cerveja amassadas e jogadas as sarjetas, bitucas e restos de cigarros, garrafas, pacotes, todo tipo de artificialidades e besteiras, tudo. Nos ares, fumaças opacas subiam de lugar algum. Seus passos, apressados e curtos, com saltos altos pontudos, ecoavam nas ruas.

Era uma garota bela, de rosto, de corpo e de tudo. Cabelos escuros e lisos percorriam suas costas, soltos e esvoaçantes, dançavam aos ventos como as imensas árvores que podia ver à distância, a Rua das Palmeiras. Esta, que não passava de uma passarela lajeada de pedras antigas com uma história antiga qualquer, algo sobre príncipes e afins, se apresentava ainda distante, muito chão a pisar, contudo, as palmeiras, que dão nome ao local, altas e imponentes, já se exibiam. Também não gostava muito do local, parecia ter de alguma maneira um mau agouro, uma aura, uma energia, algo, talvez a vulga imaginação alheia, enfim, não gostava do local. Talvez fosse sua idade, um dos lugares mais "clássicos" da cidade, se é que tal palavra poderia ser usada para Joinville, ordinária, e as imensas árvores, palmeiras tão antigas e solitárias como as ruas que lhes davam importância. Pareciam também estar sempre a observar, como um imenso ídolo ou um fetiche de povos pagãos e selvagens, com seus tambores graves e flautas agudas, uma melodia de uma pré existência, o ego do homem moderno. Suas folhas, não muitas, por sinal, balançavam ao acaso, ao sabor do vento, como os cabelos da jovem, tão bela e dissonante da cidade cinza e barulhenta.

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⏰ Last updated: Mar 15, 2019 ⏰

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Domingo de CinzasWhere stories live. Discover now